A ASVEM-PE tem como objetivo principal fornecer informações que facilitem a identificação do provável erro médico e, ao mesmo tempo, auxiliar a população a reivindicar os seus direitos.
O Ministério da Saúde lançou, nesta semana, aplicativo com a versão digital do Cartão SUS, que é a identidade do cidadão no Sistema Único de Saúde. O Cartão SUS digital permite o cadastramento de alergias, telefones de emergência, calcula massa corpórea e facilita o acompanhamento da pressão e da glicemia por meio de gráficos.
O aplicativo está disponível para smartphones com sistema Android. A previsão é que, em novembro, ele também esteja disponível na Apple Store. A ideia é futuramente ampliar os serviços da ferramenta, de modo que o cartão indique, por exemplo, o serviço de saúde mais próximo e permita compartilhar informações entre pacientes e médicos.
De acordo com o Ministério da Saúde, a pesquisa Mobile Report, da Nielsen Ibope, mostrou que 68,4 milhões de pessoas usam internet pelo celular no Brasil. O objetivo é que essas pessoas também possam utilizar o aplicativo. Em 2014, o ministério destinou R$ 4 milhões para a compra de mais de 13 milhões de mídias plásticas do cartão.
A proposta do Cartão SUS é possibilitar a identificação única dos usuários do sistema em uma espécie de prontuário eletrônico que reúna todas as passagens do paciente pela rede pública de saúde.
O ministério destacou que as unidades da rede pública de saúde devem prestar atendimento à população, independentemente da apresentação do cartão. Se o paciente não tiver um número de Cartão SUS, o registro pode ser feito no momento do atendimento.
Ontem, o advogado gaúcho Marcelo Santos, no Facebook, fez um post emocionado sobre seu pai:
Esse remédio abaixo (Valcyte -cloridrato de valganciclovir)é comercializado pela bagatela de R$ 12.000,00 (doze mil reais), são 60 comprimidos, que custam R$ 200,00 cada um.
Meu pai precisou tomar esse medicamento porque adquiriu uma bactéria e teve que tomar um comprimido por dia, por 14 dias. Hoje estamos devolvendo o medicamento que poderá servir a outro paciente.
Sabem quanto ele gastou? NADA.
Ele fez todo seu tratamento gratuito: 4 anos em hemodiálise (cerca de R$ 6 mil reais por mês, que em 4 anos totaliza aproximadamente R$ 280.000,00 duzentos e oitenta mil reais) , um transplante de rim onde teve q ficar uma semana na UTI e 22 dias internado e agora revisões semanais em q ele faz exames toda semana na parte da manhã e ficam prontos a tarde para consulta, repito, toda semana.
Ele não teve custo algum. Sabem porque?
Porque ele tem o melhor plano de Saúde do mundo, o SUS, o Sistema Único de Saúde.
O SUS tem que melhorar, sim! mas o SUS salva muitas vidas.
Sobre o post, o comentário do professor Nilson Lage, precioso como sempre, dá o testemunho, sem hipocrisias, de um professor de universidades públicas, aposentado, que, aos 79 anos e do reconhecimento de milhares de seus ex-alunos, não tem razão ou interesses em fazer propaganda ou falar aquilo que é o coro geral. A propósito, Lage era estudante de medicina, quando abraçou, para não largar nunca, o jornalismo, nos anos 50.
Recebo vacinas todo ano e tomo diariamente dois medicamentos fornecidos pelo SUS. Já fui atendido quatro ou cinco vezes em unidades de pronto atendimento da rede oficial – sempre de forma correta. Tenho plano de saúde, mas pago consultas médicas, exceto nas especialidades em que as clínicas faturam adicionalmente com exames (oftalmológicas, por exemplo). A única vez que procurei atendimento de emergência pelo plano, o nível técnico foi inferior ao aceitável – e bem abaixo do oferecido na UPA.
Sei que a garantia de internação vale para doenças comuns, em prazo limitado; para coisas mais sérias, remédios caros, cirurgias complexas, males duráveis, só mesmo o SUS Mantenho o plano de saúde porque temo as limitações, flutuações e desvios da política instável do Brasil – que prejudicam e protelam principalmente atendimentos eletivos – e conheço os mecanismos de sabotagem desenvolvidos pelos que enriquecem com a doença dos outros. Creio que os médicos deveriam lutar por salários decentes no setor público, em lugar de se submeter à exploração nessas clínicas privadas ou tentar enriquecer à custa da ética profissional e dos compromissos humanos de seu ofício. Renda razoável, renúncia aos desvarios do consumo, emprego estável, oportunidade de aprimoramento em uma carreira – sem os exageros da “carreira de estado” – permitem vida decente e gratificante. Eu sei porque tive uma.
Precisamos de um bom sistema de saúde pública. Ninguém nega as deficiências do SUS e a tranquilidade de um seguro-saúde, quando se pode ter um.
Mas só o teremos quando valorizarmos o que temos de bom e ajudarmos a ser melhor, entendendo que a desmoralização do sistema público de saúde rende, aos planos privados, cerca de R$ 90 bilhões no Brasil, mais dinheiro do que o próprio Estado, e este dinheiro, em boa parte, também sai dos cofres públicos, via isenção de impostos)
Ao todo, 63% das operadoras de saúde têm dívidas com a saúde pública por terem gasto dinheiro do SUS atendendo a seus clientes por problemas nos serviços oferecidos
Do R$ 1,6 bilhão cobrado das operadoras para ressarcimento ao SUS, apenas 37% foram pagos
São Paulo – A maioria (63%) das dívidas das operadoras de planos de saúde com ressarcimentos ao Sistema Único de Saúde (SUS) por atendimentos prestados pela saúde pública a seus clientes não foram quitadas durante o ano passado, como apontou estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), com base em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), divulgado hoje (4).
O levantamento mostra que do R$ 1,6 bilhão cobrado das operadoras pela ANS para ressarcimento ao SUS, apenas 37% (R$ 621 milhões) foram pagos. Enquanto isso, 19% (R$ 331 milhões) foram parcelados e 44% (R$ 742 milhões) não foram nem pagos nem cobrados. O ressarcimento é garantido na chamada Lei de Planos de Saúde (9.656/1998), que estabelece que os atendimentos feitos pelo SUS aos consumidores das operadoras devem ser reembolsados pelas empresas aos cofres públicos.
“As pessoas contratam planos de saúde justamente por buscar uma alternativa ao atendimento do SUS. Quando a operadora recebe do consumidor e não presta o serviço contratado, ela acaba, na prática, vendendo uma vaga no sistema público. Ao não pagar essa dívida, a operadora onera ainda mais o sistema público e, ainda por cima, tem um lucro indevido”, afirma a advogada do Idec responsável pelo estudo, Joana Cruz.
trabalho também mostra que das 1.510 operadoras cobradas pela ANS, 76% ainda devem valores ao SUS. Apenas 24% das operadoras estão em dia com as contas, porcentual menor que o das operadoras que não pagaram nem sequer uma parcelaram de suas dívidas (26%). O Idec sugere que é necessário alterar a forma como a cobrança é feita, tomando as medidas mais eficazes contra os inadimplentes.
“O ressarcimento ao SUS é importante não só como mecanismo para compelir operadoras a cumprirem suas obrigações legais de cobertura de procedimentos para os consumidores de seus serviços, mas também como política pública necessária para garantir o financiamento e funcionamento da saúde pública, a fim de ‘desafogar’ o SUS”, explica Joana.
Dos mais de 200 milhões de residentes no Brasil, de acordo com dados do Censo 2013, 71,2% -- ou seja, 142,8 milhões – consultaram médico nos últimos 12 meses anteriores à data de referência da PNS 2013 (Pesquisa Nacional de Saúde), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nesta terça-feira (2). A pesquisa comprovou, ainda, que 14,1 milhões (7% dos residentes em domicílios particulares) deixaram de trabalhar, ir à escola ou realizar uma atividade habitual porque estavam resfriados, com enxaqueca ou não se sentiam bem.
O primeiro volume da PNS, divulgado em dezembro do ano passado, continha capítulos como a percepção do estado de saúde, as doenças crônicas não transmissíveis e o estilo de vida. Nesta edição, a Pesquisa Nacional de Saúde 2013 registra o acesso e utilização dos serviços de saúde, acidentes e violências. Veja a seguir alguns pontos da pesquisa:
Acesso à saúde
Das 30,7 milhões de pessoas que procuraram algum atendimento de saúde nas duas semanas anteriores à data da PNS, 97% afirmaram ter conseguido atendimento e 95,3% foram atendidas na primeira vez em que procuraram o serviço. Das pessoas que não conseguiram atendimento de saúde na primeira vez, 38,8% alegaram que não havia médico disponível e 32,7% não conseguiram vaga ou pegar senha.
Plano de saúde
Em 2013, 27,9% da população possuíam algum plano de saúde (médico ou odontológico). As regiões Sudeste (36,9%), Sul (32,8%) e Centro-Oeste (30,4%) apresentaram as maiores proporções; as regiões Norte (13,3%) e Nordeste (15,5%), as menores. A região Sudeste registrou percentual quase três vezes maior que o verificado na região Norte. Na área urbana (31,7%), o percentual de pessoas cobertas por plano de saúde era cerca de cinco vezes superior ao observado na área rural (6,2%).
Saúde da família
Do total, 53,4% dos domicílios estavam cadastrados em Unidades de Saúde da Família. Dentre os que se registraram há um ano ou mais, 17,7% nunca receberam visita de agente comunitário de saúde ou de um membro de equipe de saúde da família.
Internação em hospitais
Das 200,6 milhões de pessoas residentes no Brasil, 6% (12,1 milhões) ficaram internadas em hospitais por 24 horas ou mais nos últimos 12 meses anteriores à data da entrevista. A regiões que apresentaram proporções superiores à média nacional foram Sul (7,5%) e Centro-Oeste (7,4%). Tratamento clínico e cirurgia foram os dois tipos de atendimento mais frequentes nos casos de internação, sendo 42,4% e 24,2% em estabelecimentos de saúde pública. Em instituições privadas, os pesos se invertem: 29,8% procuraram tratamento clínico e 41,7%, cirurgias.
Discriminação no serviço de saúde
A PNS mostra que 10,6% da população brasileira adulta (15,5 milhões de pessoas) já se sentiram discriminadas na rede de saúde -- pública ou privada. A maioria disse ter sido tratada de forma diferenciada por motivos de natureza econômica: 53,9% em função da falta de dinheiro e 52,5% em razão da classe social.
Consulta ao dentista
A proporção de pessoas que consultaram dentista nos últimos 12 meses anteriores à data da entrevista foi de 44,4% (89,1 milhões). Quanto maior o nível de instrução, mais elevada a proporção de consulta ao dentista, variando de 36,6% (sem instrução ou com fundamental incompleto) a 67,4% (superior completo).
Problemas de saúde
A proporção de pessoas que deixaram de realizar atividades habituais por motivo de saúde foi maior entre as mulheres (8%) que entre os homens (5,9%). A pesquisa também investigou os motivos de saúde que impediram as pessoas de realizar suas atividades habituais: 17,8% citaram resfriado ou gripe e 10,5% relataram dor nas costas, problema no pescoço ou na nuca. Em relação à idade, observou-se que, quanto mais elevada, maior também a proporção do indicador, atingindo 11,5% entre as pessoas de 60 anos ou mais.
Dengue
Vale considerar que a PNS tem por base dados de 2013, antes de a epidemia de dengue levar o Ministério da Saúde a uma campanha nacional. Em 2013, 12,9% da população (25,8 milhões) disseram ter tido dengue alguma vez na vida. As proporções foram maiores que a média nacional nas regiões Norte (20,5%), Nordeste (18,5%) e Centro-Oeste (17,5%). Dos diagnosticados com dengue, a maioria era de mulheres (14,3%), acima da média nacional.
Medicamentos obtidos em rede pública
Pelo menos 6,4 milhões de pessoas (33,2%) fizeram uso de um dos medicamentos receitados no serviço público. Embora não houvesse grande diferença entre as regiões, essa divisão ficou mais clara em relação a cor e grau de instrução: quanto menor o nível de instrução (sem instrução ou fundamental incompleto), mais pessoas de cor parda (41,4%) obtiveram medicamentos. Do total de 19,3 milhões que tiveram medicamento receitado no último atendimento de saúde, 21,9% (4,2 milhões) conseguiram o remédio no Programa Farmácia Popular.
Acidentes e violência
A proporção de pessoas que se envolveram em acidente de trânsito com lesões corporais nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa foi de 3,1%, sendo a maioria homens (4,5%) e jovens. Dos que se envolveram em acidente de trânsito, 47,% deixaram de trabalhar, estudar e realizar outras atividades, enquanto 15,2% tiveram sequelas ou incapacidades. Em relação à violência, 3,1% das pessoas de 18 anos ou mais sofreram violência ou agressão de alguém conhecido. Nos 12 meses anteriores à realização da entrevista, 3,1% da população feminina com mais de 18 anos (2,5 milhões de mulheres) sofreram agressão física, verbal ou emocional cometida por pessoas que conheciam a vítima.
Saneamento
No Brasil, 60,9% dos domicílios (39,7 milhões) possuem banheiro ou sanitário e esgotamento sanitário por rede geral de esgoto ou pluvial. As regiões revelaram situações diferentes em relação a este indicador: enquanto no Sudeste a proporção foi de 86,3% dos domicílios, na região Norte foi de 15,5%
Coleta de lixo direta
No Brasil, 89,3% dos domicílios foram atendidos por serviço de coleta de lixo direta, o equivalente a 58,2 milhões de unidades domiciliares. As regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste apresentaram resultados superiores à média nacional, sendo a Sudeste a que registrou a maior proporção (95,7%). As regiões Norte e Nordeste apresentaram resultado inferior à média nacional: 78,8% e 79,1%, respectivamente.
Animais domésticos
A PNS 2013 estimou que 44,3% dos domicílios do país possuíam pelo menos um cachorro (28,9 milhões de casas). Em relação à presença de gatos, 17,7% dos domicílios do país possuíam pelo menos um, o equivalente a 11,5 milhões. Dentre os domicílios com algum cachorro ou gato, 75,4% (24,9 milhões) deles tiveram todos os animais vacinados contra raiva nos últimos 12 meses.
A falta de transparência que impera na medicina privada brasileira impede que os clientes tomem partido nas disputas do setor. No chororô recíproco de hospitais e planos de saúde, quem tem razão? Quem está saudável? Quem está moribundo? “Instituições como Albert Einstein e Sírio-Libanês estão bem, mas a maioria dos hospitais não está”, diz Bento, da Planisa. Muitos concorrentes oferecem serviços semelhantes. A clientela fica diluída. Sem volume de atendimento e com falhas de gestão, eles obtêm lucros modestos – quando lucram. Os 23 maiores hospitais dos Estados Unidos têm mais de 1.000 leitos. O Albert Einstein, considerado um gigante com 647 leitos, não estaria entre os 100 maiores americanos. Ainda assim, basta circular por São Paulo para perceber uma intensa expansão no setor hospitalar. Muitos viraram canteiro de obras. Até 2016, estão previstos 4.332 novos leitos nos hospitais privados do país.
“Os melhores crescem. Os menores e menos competitivos tendem a desaparecer”, diz Marcelo Caldeira Pedroso, professor do Departamento de Administração da FEA-USP. Há maior eficiência quando o volume de produção aumenta. “Quando conseguem aumentar o volume de serviços com uma adequada taxa de utilização, os hospitais tendem a reduzir o custo dos serviços prestados”, diz Pedroso. “É uma questão de economia de escala.” A Índia pode servir de inspiração aos hospitais brasileiros. Ao investir no volume de atendimentos, alguns hospitais atingiram alto nível de excelência médica com custos baixíssimos. Viraram um celebrado exemplo de inovação.
Na outra ponta, dos convênios, a saúde das empresas também é heterogênea. Alguns planos vão bem, outros estão quase quebrando. De forma geral, todos reclamam de falta de transparência e do aumento nas contas. “Os balanços dos planos de saúde são auditados. No restante da cadeia (hospitais, clínicas etc.) nem sempre”, diz Luiz Augusto Carneiro, do IESS. “É uma caixa-preta. Ninguém sabe quem ganha dinheiro.” Os custos hospitalares aumentaram 15,4% em 2012, segundo um estudo do IESS. O índice manteve-se acima da variação registrada pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no mesmo período, de 5,4%. Segundo Carneiro, o que chama a atenção é a diferença de 10 pontos percentuais, maior que a média histórica. Carneiro acredita no livre mercado. É um economista formado pela FGV do Rio de Janeiro, um grupo identificado com o liberalismo mais puro. Apesar disso, afirma que, sozinho, o mercado não será capaz de resolver as disputas improdutivas que prejudicam a sociedade. “Do jeito como a saúde funciona no Brasil, toda a estrutura se volta para incentivar o aumento de custos”, diz. “Quando o mercado não é capaz de resolver tantas falhas do próprio sistema – como o caso da assimetria de informação que compromete a comparação de preço e qualidade –, cabe ao governo criar mecanismos de transparência e incentivar a concorrência”, afirma. Segundo ele, as operadoras têm sentido inflação alta nos produtos de baixo valor. “A nova moda dos hospitais é cobrar muito por materiais de baixo custo”, diz Carneiro. Esparadrapo, paracetamol, seringa pesam no orçamento como nunca.
O remédio amargo
Nos últimos dez anos, o guru dos negócios Michael Porter, professor do Instituto de Estratégia e Competitividade da Harvard Business School, se dedicou a estudar os desafios dos diferentes sistemas de saúde adotados no mundo. “Precisamos transformar totalmente o sistema privado de saúde vigente nos Estados Unidos e no Brasil. Sabemos o caminho a seguir. O desafio é conseguir fazer as mudanças”, diz Porter.
No livro Redefining health care: creating value-based competition on results (algo como Redefinindo a atenção à saúde: criando competição baseada em valor sobre resultados), Porter discute por que as regras do livre mercado falharam na saúde. Num mercado normal, a competição leva a ganhos de qualidade e à redução de custos. A rápida difusão das novas tecnologias melhora o jeito de fazer as coisas. Excelentes competidores prosperam e crescem. É assim em todas as indústrias que funcionam segundo as leis da boa competição: computadores, celulares, bancos e muitas outras. Na saúde, não ocorre nada disso. Os custos são elevados e crescem cada vez mais. Os problemas de qualidade persistem. A falha da competição é evidente nas grandes e inexplicáveis diferenças no custo e na qualidade do mesmo tipo de assistência entre hospitais e em diferentes regiões geográficas. A competição não premia os melhores prestadores de serviço, nem faz os piores saírem do negócio. “Essas coisas são inconcebíveis num mercado que funciona bem e intoleráveis na saúde, porque a vida está sob ameaça”, escreve Porter. Por que, afinal, a competição falha no setor da saúde? Por que o valor, a qualidade do que é entregue ao paciente, não aumenta como nas outras indústrias? A razão, afirma Porter, não é a falta de competição, mas o tipo errado de competição. “Na saúde, ela ocorre em níveis errados e nas coisas erradas”, diz ele. “É uma competição de soma zero, em que os ganhos de um participante ocorrem à custa do prejuízo de outros.” Os participantes competem para jogar os custos ao outro, acumular poder de barganha e limitar serviços. “A única forma de reformar a assistência à saúde é reformar a natureza da competição”, diz Porter. É preciso realinhar a competição com o valor entregue ao paciente. Valor, na assistência à saúde, significa resultado obtido por unidade monetária gasta.
Para fomentar a competição que faz bem e melhorar o valor dos serviços entregues ao cliente, é preciso mudar o modelo de remuneração dos hospitais. Assim como Porter, especialistas brasileiros defendem a mudança do modelo de “conta aberta” para o modelo de pagamento por procedimento. Os hospitais passariam a receber um valor fixo de acordo com cada serviço prestado. Os valores seriam negociados entre hospitais e planos de saúde. Receberiam um valor X por uma cirurgia cardíaca, um valor Y pelo tratamento de um paciente com câncer etc.
No SUS, os hospitais são remunerados pelo governo dessa forma. Não podem cobrar por aspirina, agulha ou esparadrapo. Vários países europeus (como Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Espanha, Suíça, Suécia) também adotam o pagamento por procedimento. Desde os anos 1990, usam um modelo sofisticado, chamado de “diagnostic related groups” (DRG). Em português, significa “grupo de diagnóstico homogêneo”. Dependendo do tipo de paciente, o valor que o hospital recebe para o mesmo procedimento é diferente. Tratar uma pneumonia numa criança custa um determinado valor. Num idoso, custa mais. Num doente de aids, mais ainda. O DRG não funciona exatamente da mesma forma em todos os países. Cada um incorpora diferentes fórmulas de cálculo de remuneração, de acordo com peculiaridades e necessidades do país. Em geral, há uma compensação financeira para os hospitais com melhor desempenho, segundo critérios de qualidade e atendimento. Um estudo coordenado por Philipp Schuetz, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, avaliou resultados de instituições remuneradas segundo os dois sistemas, DRG e conta aberta, em hospitais da Suíça. Os pesquisadores compararam os dados de 925 pacientes atendidos para tratamento de pneumonia. Concluíram que a estadia hospitalar era 20% mais curta quando as instituições recebiam pelo sistema DRG.
Quando recebem por procedimento, os hospitais são estimulados a fazer um uso racional dos recursos da saúde. Negociam os preços com os fornecedores de materiais e adotam diretrizes de tratamento, com o objetivo de atingir os melhores resultados com o mínimo de gasto. O DRG é a nova sensação da área no Brasil. Tem sido defendido como uma solução tanto por hospitais como por operadoras. Mas é um sistema complexo. “O mercado da saúde deveria se chamar ‘fashion healthcare’. Cada hora é uma moda”, diz Luiz de Luca, superintendente corporativo do Hospital Samaritano. “O DRG foi inventado nos anos 1970, mas agora os brasileiros resolveram achar que ele serve para qualquer situação. Virou um vestidinho clássico. É o novo tubinho preto.”
Segundo De Luca, a maioria dos hospitais e operadoras brasileiras não sabe sequer como ele funciona. Para dar certo, é preciso avaliar se cada paciente tem doenças correlacionadas e avaliar o estágio de cada uma. Depois, ainda é preciso aplicar preços diferentes. “Podemos adotar o DRG, mas é preciso combinar com os russos (as operadoras) antes”, afirma. “As operadoras dizem que o DRG seria o jeito justo de remunerar. Na hora de fazer, alegam que não têm como colocar isso no sistema delas.” Está em curso uma discussão nacional para mudança do modelo de remuneração, promovida pela ANS. Afonso José de Matos, da Planisa, é o mediador de uma difícil negociação entre hospitais privados e planos de saúde. A discussão já dura três anos. No início, as partes não queriam dividir a mesma mesa.
Foram dezenas de reuniões. Uma por mês. Um novo modelo de remuneração (um método simplificado, para uma futura adoção do DRG) está em teste em 17 pares de hospitais e operadoras. É um primeiro passo. Segundo Matos, o modelo atual gera indignação. “Tem hospital que usa medicamento genérico e cobra o de marca. Nesse sistema, quem não tem princípios frauda”, diz Matos. Outro complicador é a falta de padrão. Se um hospital tem 50 médicos, cada um faz o que bem entende. Não pode ser assim. Um hospital precisa ter conduta, diretrizes médicas e se cercar de um bom sistema de custos para negociar com as operadoras. “O sistema precisa sair do ciclo maldito que temos hoje. Precisa sair da análise de conta e ir para o resultado. O que interessa é saber se curou o paciente”, diz Matos.
Essa também é a opinião do superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês, Gonzalo Vecina Neto. “Não tem cabimento continuarmos cobrando por mililitro de oxigênio consumido”, diz ele. Se hospitais e operadoras querem adotar o mesmo modelo, por que é tão difícil chegar a um acordo? Vecina diz que as duas partes estão sentadas à mesa, mas jogando pôquer. “Ninguém pisca, porque ninguém está a fim de perder. É muito difícil construir uma relação ganha-ganha na situação em que estamos”, afirma.
O acordo não sai porque envolve mexer nas margens de lucro. Na transição para o novo modelo, as operadoras querem que os hospitais cobrem os medicamentos e materiais a preço de custo, mas não parecem dispostas a aumentar a remuneração daqueles serviços que representam a missão essencial de um hospital: diagnosticar, tratar e curar com qualidade e segurança. A discussão vai longe. Os pacientes têm pressa.
Michael Porter (Foto: Elie Honein)
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A família de H.L., o médico internado no Albert Einstein que abriu esta reportagem, tem a esperança de que o plano de saúde assuma parte da dívida. A oftalmologista S.L., sua filha, diz que, um mês após a cirurgia, tentou transferir o pai para um hospital conveniado ao plano de saúde. Não conseguiu. “As instituições diziam não ter vaga na UTI”, afirma. “Ninguém quer assumir um caso complicado como esse.” A Unimed de Assis nega. Diz que ofereceu à família um hospital credenciado para a realização da cirurgia. Em nota encaminhada a ÉPOCA, afirma que o paciente “deixou clara sua opção para que o referido procedimento fosse realizado no Hospital Albert Einstein, assumindo o risco desta autonomia própria e singular. A operadora mantém a disponibilidade da rede credenciada para o tratamento do sócio cooperado H.L., postura adotada desde o início”.
A advogada de S.L. apresenta outra versão. “Comprovamos nos autos que o paciente só não foi transferido porque o hospital credenciado ao plano de saúde não aceitou recebê-lo”, diz Renata Vilhena Silva. Se a família deve cerca de R$ 5 milhões, afirma ela, é porque o hospital credenciado não aceitou esse paciente, e o plano de saúde não deu outra solução. “Minha cliente fez de tudo para transferir o pai”, afirma. O Einstein prefere não comentar o caso. Numa das mais recentes etapas da disputa, argumentou que o paciente pode ser atendido em casa. A família discorda. Diz que as condições de saúde dele variam abruptamente. “Se o levarmos para casa, em menos de uma hora ele pode voltar a precisar de UTI”, diz S.L. “O que o Einstein chama de situação estável significa cuidar dele 24 horas por dia: aspirar, virar, verificar a febre e correr para o hospital se a pressão cair.”
Até o fechamento desta edição, a família perdia o processo. Ainda cabe recurso. S.L. adiou o casamento. “Dói muito pensar que meu pai não poderá entrar na igreja comigo, como fez com minha irmã e minha prima”, diz.
Os boletos de cobrança continuam a deslizar sob sua porta.
O ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, anunciou hoje (26) mudanças na avaliação dos cursos e de estudantes de medicina.
De acordo com o ministro, todos os cursos da área serão avaliados in loco em 2016. A secretária de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), Marta Abramo, explicou que mesmo os cursos que tenham histórico de boas notas não serão dispensados da avaliação.
O MEC anunciou também mudanças na avaliação dos estudantes de medicina. Os exames serão feitos anualmente, com os alunos do segundo, quarto e sexto anos (o último do curso). “Dada a relevância da medicina, dado que ela está lidando com a vida das pessoas, decidimos avaliar três vezes ao longo do curso. A nossa rigidez em termos de qualidade dos cursos de medicina vai ser muito grande”, afirmou Janine.
Outra novidade é que, para cada aluno que se formar, a instituição de ensino terá que disponibilizar uma vaga de residência. “Se temos uma faculdade com 50 vagas, e a residência é de dois anos, precisaremos ter, na verdade, 100 vagas de residência – metade para o primeiro ano e metade para o segundo ano”, disse o ministro. Segundo o ministro, a intenção do governo é que todos os alunos tenham acesso à residência.
Sobre os cursos de medicina no âmbito do Programa Mais Médicos, o MEC diz que o edital de 2015 tem mais de 16 mil vagas em instituições no interior do país e mais de 10 mil vagas nas capitais. “O aumento das vagas é muito grande, mas é importante ressaltar que tudo isso se faz com qualidade”, afirmou o ministro.
De acordo com Renato Janine, um dos objetivos é descentralizar o ensino de medicina, ampliando o número de cursos e vagas no interior do país.
O ministro rebateu críticas feitas ontem (25) pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre as exigências para a criação de cursos. De acordo com o CRM, 25 escolas não atendem ao critério de cinco leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) para cada aluno de medicina matriculado. Janine ressaltou que a exigência é ter, na região de saúde (que pode reunir mais de um município), pelo menos cinco leitos do SUS por aluno e três estudantes por equipe de atenção básica, além de serviços de urgência e emergência ou pronto-socorro, o que significa que, dentro de uma distância razoável, onde se possa fazer o deslocamento com rapidez, pode ser utilizada a estrutura de saúde existente na região. (Agência Brasil/Marieta Cazarré)
Quem tem razão? “Muitas vezes os hospitais abusam. Noutras, as operadoras é que não ressarcem os valores que deveriam”, diz o economista da saúde André Medici, do Banco Mundial, em Washington. “Por precaução, os hospitais estabelecem preços mais altos para compensar as perdas que terão diante das negativas de pagamento pelos planos de saúde e pelos pacientes particulares inadimplentes.”
É assim que o dinheiro (do convênio, do cliente particular, do empregador, da sociedade) vai para o ralo sem produzir mais qualidade de vida. Os custos de saúde aumentam dramaticamente em todo o mundo. Uma das razões é a adoção de tecnologia. Exames, drogas e procedimentos sofisticados custam caro. Outra é o envelhecimento. Viver mais requer cuidados cada vez mais dispendiosos. Entre os idosos, 80% têm pelo menos uma doença. Mais de 30% têm três ou mais. O Brasil não se preparou para enfrentar a transição demográfica que se avizinha. Enquanto a Europa enriqueceu antes de envelhecer, o Brasil envelhece sem ter se tornado rico. Em 2030, o país terá mais de 40 milhões de idosos, ou 17% da população. Doerá no bolso.
Uma terceira razão leva ao aumento dos custos: a indefinição do valor dos serviços de saúde. É um fator incômodo, sobre o qual pouco se fala – e a que se dedica esta reportagem especial de ÉPOCA. “Os hospitais prestam serviço sem saber quanto ele custa; as operadoras pagam sem saber quanto ele vale”, diz Matos, da Planisa. “Fica uma discussão sem dados. Qualquer boteco faz isso melhor.”
Num sistema saudável, o bom hospital seria capaz de curar ou tratar adequadamente um paciente e, ainda por cima, gastar pouco. A qualidade técnica, a segurança e a eficiência no controle de custos atrairiam mais clientes e o fariam prosperar. No atual modelo brasileiro, a função do hospital é distorcida. Os hospitais passam a visar à doença. Quanto mais a situação do paciente se complica, melhor para eles. Quanto maior o uso de insumos banais como esparadrapo e seringa, mais ganham. Ao contrário do que o senso comum imagina, as maiores fontes de receita dos hospitais privados não são os exames sofisticados, os quartos luxuosos ou a especialidade dos médicos. “Os hospitais viraram grandes varejistas de insumos”, diz Sergio Bento, da Planisa. Durante 15 anos, ele foi gestor do Samaritano, em São Paulo. “Para os hospitais, insumo é receita – não custo.”
Existem 4.081 hospitais privados no Brasil. Desses, 2.615 têm fim lucrativo. A nata das instituições, aquelas que seguem um padrão elevado de assistência e gestão, compõe a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). São apenas 48. Seu presidente, Francisco Balestrin, reconhece a distorção mencionada por Bento e diz que a Anahp pretende liderar um movimento para combatê-la. “Todo mundo gosta de criticar, mas ninguém sabe a história por trás disso”, diz Balestrin. Diante do tabelamento de preços imposto pelo Plano Cruzado, em 1986, as taxas e os serviços cobrados pelos hospitais também foram congelados. As regras da economia mudaram nos anos seguintes. Por muito tempo, os hospitais não conseguiram reajustar seus preços.
Não demorou a surgir uma solução engenhosa: criar taxas para tudo. Taxa para aplicar injeção. Taxa para fazer curativo. Taxa de maca, para transportar o paciente de um lugar para o outro. “Hoje, as listas de preço parecem árvores de Natal”, diz Balestrin. “Isso foi necessário para garantir nossa sobrevivência diante do tabelamento de preços imposto pelo governo.” O Plano Cruzado é passado. Mesmo depois de 20 anos de estabilidade proporcionada pela nova moeda, o real, as regras insólitas que regem o relacionamento entre hospitais e planos de saúde não mudaram. “Aplicar os custos do hospital sobre o valor dos medicamentos e dos materiais é hoje a única forma de manter a saúde financeira das instituições”, diz Balestrin. Essa é uma longa tradição que precisa acabar.
Mais doença, mais dinheiro
No Brasil, o sistema privado remunera a doença – não a saúde. Os convênios pagam os hospitais de acordo com um modelo conhecido como “conta aberta”. Ou, em inglês, “fee for service” (pagamento por serviço). Uma conta é gerada para cada paciente. Todo e qualquer item usado no atendimento (dos mais banais aos mais sofisticados) é colocado na conta. A papelada é enviada ao plano de saúde ao longo da internação ou ao final do atendimento. Cem mulheres, 100 cesarianas, 100 contas diferentes. A operadora analisa cada uma e discute o que foi feito. Corta o que considera item desnecessário ou cobrança excessiva. A recusa de pagamento aos hospitais é chamada de “glosa”. As operadoras mantêm auditores nos hospitais para verificar se o que está na conta realmente consta no prontuário de cada paciente. Eles verificam tudo: coerência da indicação, duplicidade de itens etc. Isso custa. Manter esses batalhões de auditores representa o segundo maior gasto administrativo das operadoras. O primeiro é a equipe de vendas de planos de saúde. “É o custo da desconfiança”, diz Bento, da Planisa. “Com tudo isso, as operadoras têm uma margem de lucro muito pequena.” Não há mágica. Se o custo aumenta (administrativo ou derivado do tratamento), mais cedo ou mais tarde é repassado aos clientes individuais ou empresariais.
Isso ajuda a explicar por que, na maioria dos casos, exames e procedimentos mais caros só são realizados com autorização prévia do convênio. É uma novela que médicos e conveniados conhecem bem. O funcionário do hospital, o cliente ou ambos telefonam ao plano de saúde e passam longos minutos ouvindo musiquinhas de tirar qualquer um do sério. Com sorte, o procedimento é autorizado. Com frequência, é negado. À família, restam duas opções: procurar outro hospital ou assumir a conta. “De 2% a 4% dos pacientes dos hospitais são particulares. As tabelas de negociação com eles são de 30% a 40% superiores às cobradas das operadoras”, diz Bento. “É uma distorção.”
Muita gente acha que tem plano de saúde. Até que percebe que, na prática, é como se não tivesse. O número de reclamações contra os convênios cresceu 31% em 2013, na comparação com o ano anterior, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No ano passado, foram recebidas 102.232 queixas. Em 72% dos casos, a razão foi uma só: negativa de cobertura. Para coibi-la, a ANS aplica multas. Punições desse tipo só são pedagógicas se realmente doerem no bolso, o mesmo princípio das multas de trânsito.
Mas as operadoras encontraram um jeito de se safar da punição. Câmara e Senado aprovaram há poucas semanas uma nova sistemática para a cobrança dessas penalidades. Hoje funciona assim: a cada negativa de cobertura comprovada pela ANS, a empresa deve pagar uma multa de R$ 2 mil. Se a empresa nega dez procedimentos, pagará R$ 20 mil. Com a mudança aprovada pelo Congresso, se o plano de saúde negar de dois a 50 procedimentos, pagará apenas duas multas (R$ 4 mil, em vez de R$ 100 mil). Daí em diante, haverá uma escala. Quanto pior o serviço da operadora, menor será a multa. A mudança deseducativa só entrará em vigor se for sancionada pela presidente Dilma Rousseff. A exemplo do que aconteceu com a votação sobre o Código Florestal, o movimento #VetaDilma já está lançado.
Na solidão do corredor escuro
Os administradores dos hospitais costumam apresentar a mesma justificativa para os altos preços cobrados por insumos banais. O engenheiro Luiz de Luca, superintendente corporativo do Samaritano, faz uma comparação com uma garrafa d’água. “Todo mundo sabe que ela custa R$ 1,30 no supermercado, mas aceita pagar R$ 6,50 pelo mesmo produto num restaurante chique”, diz. “O consumidor paga porque acha que o restaurante vale a pena. Tudo depende da percepção de valor que o cliente tem. Com hospital, é a mesma coisa.” Para aceitar essa analogia, é preciso relevar diferenças cruciais entre os dois setores. Quem vai a um restaurante pode planejar o programa, consultar os preços e escolher aquele que cabe em seu bolso. Ninguém escolhe ficar doente. Quando a necessidade de cuidado se impõe, a família não está no controle da situação. Ela busca atendimento sem contar com o benefício de saber quanto terá de desembolsar ao final do tratamento.
O dramático, na saúde, é a falta de previsibilidade sobre as despesas. Mesmo que o paciente receba um orçamento do tratamento, ele sempre será impreciso. Segundo Balestrin, da Anahp, os hospitais mantêm listas de preços de procedimentos afixadas em lugar visível, mas ele reconhece que é preciso ir além. “Talvez falte um site onde as pessoas possam verificar os preços”, diz. “Ainda assim, as famílias não deveriam se fixar tanto no preço de cada item. É preciso pensar no custo final que os hospitais têm, e isso elas nunca conseguirão saber enquanto o sistema de pagamento for do tipo conta aberta.” Hospitais não lucram como bancos. “A margem de lucro operacional do Einstein e de muitos dos melhores hospitais de São Paulo é de 5%”, diz o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Hospital Albert Einstein. Comparar preços, diz ele, é um parâmetro errado. “Não adianta apresentar um menu para o cliente verificar preços. O que falta é compromisso com o resultado.”
Nos Estados Unidos, há um forte movimento pela transparência. A economista Bobbi Coluni realizou um estudo revelador para a empresa Truven Health Analytics. Ela analisou as variações de preços de 300 procedimentos hospitalares e ambulatoriais. Descobriu que o preço de uma artroscopia de joelho em Chicago variava de US$ 1.000 a US$ 5 mil. Concluiu que a sociedade americana economizaria US$ 36 bilhões por ano se os hospitais cobrassem, de todas as fontes pagadoras, o preço médio de mercado. “Os consumidores tomam decisões que provocam gastos sem ter a informação necessária para fazer bom uso do dinheiro”, disse Bobbi a ÉPOCA. “É preciso encorajá-los a exigir informação dos prestadores de serviço.” Segundo ela, isso criará competição, aumentará a eficiência e reduzirá custos. No ano passado, o governo americano criou dois sites para ajudar o cidadão a comparar e a escolher hospitais e planos de saúde. Nas páginas www.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar indicadores de qualidade de 3.300 hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. No Brasil, o discurso da transparência é mais eloquente que a prática. ÉPOCA pediu que Albert Einstein, Sírio-Libanês e Samaritano informassem os preços cobrados de pacientes particulares por dez procedimentos e produtos de uso corriqueiro. Itens como hemograma, tomografia, soro fisiológico, paracetamol, omeprazol e seringa descartável. Nenhum deles aceitou divulgar a informação.
“Hoje, você tem um médico na sua frente. Amanhã, um advogado”
A contadora Valquiria Catelli Nogueira dirige o departamento financeiro da Câmara Municipal de Paulínia, no interior de São Paulo. A familiaridade com os números não aliviou sua sensação de impotência diante da cobrança que lhe foi apresentada pelo Hospital Sírio-Libanês, há quase dois anos. Segundo o último registro do Tribunal de Justiça de São Paulo, ela deve R$ 447.003,86, sem os juros. É um valor superior ao da casa própria em que vive, avaliada, segundo ela, em R$ 390 mil. “Quando entramos num hospital, não imaginamos que cada agulhinha, cada esparadrapo será cobrado separadamente, item por item”, diz Valquiria. “Além da angústia provocada por uma doença grave, vivemos a agonia de não conseguir mensurar o valor de nada.”
O Sírio-Libanês entrou com uma ação de cobrança contra Valquiria porque ela assinou, como acompanhante, o documento de internação da comerciante Claudia Cristina Miranda, em julho de 2012. “Ela era como uma irmã”, afirma Valquiria. “Um anjo com quem tive o prazer de conviver.” As duas dividiram a casa e as despesas durante 12 anos. Claudia morreu no ano passado, aos 40 anos, de câncer de ovário. “Tenho a consciência de que fiz tudo o que estava a meu alcance para tentar salvá-la”, diz Valquiria. Uma das providências foi buscar a Justiça para garantir que ela pudesse ser submetida a uma cirurgia para extrair o tumor e aplicar quimioterapia na mesma operação. Era um recurso sofisticado, na época só feito em hospitais de primeira linha, como o Sírio-Libanês.
O plano de saúde, a Unimed de Campinas, não cobria o procedimento nem a internação no famoso hospital filantrópico paulistano, conhecido por atrair políticos e artistas. Com uma liminar judicial favorável, Claudia foi internada. “Estávamos tranquilas. Graças à decisão do juiz, sabíamos que não teríamos de arcar com as despesas de um hospital daquele nível”, diz Valquiria. Dez dias depois da cirurgia, Claudia precisou ser reinternada às pressas. Uma fístula próxima ao reto provocara uma infecção. Claudia entrou pelo pronto-socorro, como paciente particular. Assim como os irmãos, os sobrinhos e os pais idosos, Claudia vivia da renda de uma pequena loja de material de construção, em Campinas. Não tinha condições de arcar nem sequer com uma semana de Sírio-Libanês. O médico emitiu um relatório para ajudá-la a explicar ao juiz que a fístula era decorrente da cirurgia. A reinternação, segundo esse raciocínio, deveria ser custeada pelo plano de saúde. A Justiça não aceitou essa argumentação. “Hoje, você tem um médico na sua frente. Amanhã, um advogado”, diz Valquiria. Na ação contra a Unimed, Claudia e Valquiria foram representadas pela advogada Renata Vilhena Silva, especializada em Direito da Saúde. Segundo Renata, a pior coisa que pode acontecer a um paciente é precisar de um atendimento de alta complexidade e não o encontrar na rede credenciada. “Os clientes pagam um plano de saúde e têm um atendimento péssimo”, diz Renata. “Quando precisam de um tratamento de primeira linha, são obrigados a buscá-lo fora da rede credenciada e enfrentam essa incompatibilidade de preços praticada pelos hospitais.”
Em três meses de hospital, a conta de Claudia somou 2.754 itens. Em cada linha, aparece a descrição enigmática de materiais e preços impossíveis de comparar com coisa alguma. Valquiria tentou analisar a cobrança. Fracassou. Como saber se uma ampola de Sandostatin 0,1 mg/mL Inj (=100 mcg/mL) valia mesmo em agosto de 2012 os R$ 74,85 cobrados pelo hospital? Ou se, um mês antes, era aceitável pagar R$ 4,54 por uma Seringa Desc. 20 ml S/Agulha Bico Luer Lock? O peso da dívida aumentou o sofrimento de Claudia. “Ela ficava angustiada toda vez que alguém do departamento financeiro ligava no quarto e dizia a ela que a conta já havia chegado a R$ 100 mil, R$ 200 mil...”, diz Valquiria. O Sírio-Libanês afirma que sempre esteve à disposição dos familiares e da acompanhante de Claudia para oferecer todas as informações necessárias. Segundo o hospital, ações judiciais representam um último recurso. “Continuamos abertos, inclusive, a uma nova negociação, que leve a um acordo favorável a todos.” A Unimed de Campinas argumenta que Claudia buscou tratamento em um hospital não oferecido pelo plano contratado. Em nota enviada a ÉPOCA, a Unimed afirma: “Sob o prisma da regularidade, quer legal ou contratual, a Unimed Campinas em momento algum negou atendimento assistencial à beneficiária”. A briga jurídica entre a família de Claudia e o plano de saúde continua. Agora, no Superior Tribunal de Justiça.
“O plano de saúde disse ‘não’. Lá se foi o apartamento”
(Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
A dentista Rita de Cássia Moreira Correia, de 48 anos, vendeu um apartamento em Belém, no Pará, e pagou uma conta de R$ 448.182,33 ao Hospital Samaritano, em São Paulo. Rita mora em Paragominas, a 300 quilômetros de Belém. Católica, ela decidiu conhecer Fátima, em Portugal, em abril de 2011. No meio da viagem, a irmã que a acompanhava notou que seu lábio superior parecia ligeiramente adormecido. Na volta ao Brasil, durante uma escala em Brasília, o passaporte caiu de sua mão. Rita imaginou ter sofrido um AVC. Assim que chegou a Belém, com falta de sensibilidade no lado esquerdo do corpo, procurou um hospital credenciado ao plano de saúde Unimed. Os médicos diagnosticaram um tumor cerebral. Quando o neurocirurgião que a acompanhava precisou viajar por motivos particulares, ela decidiu não perder mais tempo. Pegou um avião e foi buscar uma segunda opinião em São Paulo. Agendou consulta com quatro especialistas durante a Semana Santa. O primeiro que a recebeu foi José Marcus Rotta, chefe do Grupo de Neuro-Oncologia da Universidade de São Paulo (USP). Assim que entrou no consultório, Rita notou a imagem de Nossa Senhora de Fátima sobre a estante. “Alguns podem chamar de coincidência. Eu chamo de Providência”, diz ela. “Foi a mão de Deus. Se não tivesse encontrado aquele médico, hoje estaria morta.”
Feita a conexão divina, faltava conquistar o entendimento entre os homens. O cirurgião operava no Hospital Samaritano, credenciado à Unimed Paulistana. O plano de saúde de Rita oferecia cobertura na rede nacional. Logo, ela acreditou que o tratamento em São Paulo seria coberto pela Unimed. Enquanto a família tentava conseguir uma autorização do plano de saúde para a internação, ela passou mal. Inconsciente, foi internada no Samaritano em caráter de urgência, como paciente particular. A autorização do convênio não saiu. “Paguei plano de saúde durante 12 anos. Quando precisei, fiquei desamparada”, diz. A neurocirurgia, feita no dia seguinte, foi bem-sucedida. Era só o começo do tratamento. Para combater o câncer – um tumor tecnicamente conhecido como linfoma não Hodgkin de sistema nervoso central –, Rita precisou de um transplante de células dela mesma. É um procedimento chamado de transplante autólogo, o mesmo que contribuiu para a recuperação do ator Reynaldo Gianecchini. Células saudáveis foram extraídas de sua medula óssea e guardadas. Em seguida, Rita enfrentou quatro sessões de quimioterapia em altas doses. Qualquer infecção poderia ser fatal.
Os médicos tinham a convicção de que ela não poderia ser transferida de hospital. Emitiram atestados com a informação de que se tratava de um caso gravíssimo. Segundo eles, Rita precisava ser atendida em um hospital de alta complexidade, como o Samaritano, por profissionais capacitados a realizar procedimentos sofisticados como aquele. Enquanto a briga com o plano de saúde se arrastava, a conta do hospital crescia: R$ 100 mil, R$ 150 mil, R$ 200 mil... Foi um caso difícil, de surpreendente sucesso. Três anos depois, Rita trabalha todos os dias no consultório. Exames recentes não detectaram qualquer sinal de retorno da doença.
Os 40 dias de internação em 2011 prolongaram-lhe a vida, mas consumiram cada tijolo do imóvel comprado a prestações ao longo de anos de trabalho. Rita saldou a dívida com o hospital. O sentimento de honestidade deu lugar ao arrependimento. “Foi um erro”, diz ela. “Se tivesse entrado com uma liminar na Justiça, não teria pagado essa conta.” Para tentar obrigar o plano de saúde a lhe restituir o dinheiro, Rita contratou o advogado Julius Conforti, especializado em Direito da Saúde. Segundo ele, vários fatos favorecem Rita nessa disputa: era uma situação gravíssima; não existia o tratamento necessário em Belém; o contrato garantia à paciente ser atendida num hospital da rede credenciada em São Paulo, e, além disso, ela foi internada em caráter de urgência. Conforti aconselha que as famílias não se desesperem ao receber a conta de um hospital. “Em vez de pagar, o melhor caminho é entrar com uma liminar judicial”, diz ele. “As pessoas vendem imóveis a preço de banana, dilapidam o patrimônio, depois tentam recuperá-lo na Justiça. Isso é possível, mas o processo costuma levar anos.” Procurada por ÉPOCA, a Unimed Belém não se pronunciou sobre o caso.
(Foto: Rafael Araujo/ÉPOCA)
Um mercado doente
Em quase todos os setores da economia, uma cadeia produtiva é formada por parceiros com dois objetivos comuns: atender a uma necessidade do cliente e lucrar. Só há queijo no café da manhã porque alguém tira o leite da vaca e vende ao laticínio. A empresa fabrica o produto e fornece ao supermercado. O consumidor decide o que comprar. Do campo à mesa, todos ganham. Uns mais, outros menos, mas a parceria que os economistas chamam de “cadeia de valor” é vantajosa para todos. Do contrário, ela se desfaz.
No ramo da saúde, a lógica é outra. Não há parceria entre os dois principais elos da cadeia – os hospitais e os planos de saúde. Há competição, disputa, desperdício de energia e recursos. Segundo as regras atuais desse mercado doente, o lucro do hospital significa o prejuízo do plano de saúde – e vice-versa. Para aumentar seus próprios ganhos, cada lado do balcão adota medidas que elevam os gastos da sociedade com saúde, sem aumentar o benefício entregue aos clientes.“O sistema de saúde é um não sistema. Cada um está preocupado com o seu”, diz Ana Maria Malik, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. “O Brasil sofre com doenças crônicas dispendiosas do século XXI, tem um sistema de saúde preparado para atender males do século XX e gestão do século XIX.”
As distorções que explicam a crise de saúde começam na base. Quando entrega o queijo ao supermercado, o produtor emite um boleto bancário. Sabe que, na data estabelecida, poderá contar com aquele pagamento. A relação comercial entre fornecedor e comprador em qualquer outra área funciona assim: uma empresa vende o produto e envia a fatura ao comprador.
“Na saúde, é diferente. O hospital manda as faturas para o plano de saúde, e ele decide se paga ou não”, diz Afonso José de Matos, professor de administração financeira e custos hospitalares da FGV e diretor presidente da Planisa. O embate é diário. Planos de saúde reclamam que os hospitais cobram muito mais do que valem os produtos empregados no tratamento de seus beneficiários. Hospitais argumentam que são obrigados a fazer isso porque os convênios se negam a reajustar tabelas de serviço. Ou simplesmente não pagam grande parte dos atendimentos já prestados.
(Reportagem publicada em 21/05/2014, por Cristiane Segatto - Época, e será postada aqui em quatro partes devido a relevância do assunto).
A medicina privada prolonga a vida como nunca. Isso pode significar a morte financeira das famílias abandonadas pelos planos de saúde. É possível curar esse mercado doente?
Quanto vale o ar que chega aos pulmões a cada inspiração? Ninguém pensa nisso enquanto respira, naturalmente, 25 mil vezes ao dia. É uma pergunta irrelevante na saúde – e crucial na doença. Por 24 horas de oxigênio, os melhores hospitais privados de São Paulo chegam a cobrar R$ 3 mil. Essa é só uma das preocupações da oftalmologista S.L., de 31 anos. Ela pertence a uma família de médicos que, há dois anos, vive um drama, em silêncio, num dos mais respeitados centros de saúde do país – o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
(Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
S.L. não roubou. Não matou. Não feriu os bons costumes. Ainda assim, esconde o rosto. Para quem se orgulhava de manter as finanças em dia, a cobrança é constrangedora. S.L. deve cerca de R$ 5 milhões. Foi processada pelo Einstein por não pagar uma conta impagável. Sua contravenção foi acompanhar o pai e assinar o documento de internação quando ele decidiu se submeter a uma cirurgia que tinha tudo para dar certo. No início de 2012, a família vivia uma vida confortável em Assis, interior de São Paulo. Seu pai, o médico H.L., era dono de uma clínica de oftalmologia. Aos 60 anos, ele decidira se submeter a uma troca de válvula cardíaca quando um exame revelou que ela não funcionava bem. O procedimento foi planejado com calma. H.L. escolheu o mesmo cirurgião que o operara, com sucesso, alguns anos antes no Albert Einstein. O plano de saúde – a Unimed de Assis – não oferecia cobertura naquele hospital. Segundo o orçamento emitido, a operação custaria R$ 120 mil. A Unimed aceitou fazer um reembolso de R$ 60 mil. O paciente pagaria o restante em dez parcelas.
O orçamento compreendia oito diárias de hospital. Segundo a previsão médica, após esse período, H.L receberia alta. Ele entrou no centro cirúrgico e nunca mais saiu do Einstein. Foi vítima de uma complicação pouco frequente. A artéria aorta se rompeu. Com pouco oxigênio, seu cérebro sofreu uma lesão permanente. H.L. não fala e não se mexe. Olha e pisca. “Tenho a sensação de que, às vezes, o cérebro dele conecta e, logo depois, desconecta”, diz a filha. “Em alguns momentos ele parece entender o que digo. Em outros, não.” Sem poder contar com os rendimentos dele, a família fechou a clínica de Assis, demitiu os funcionários, vendeu carros e equipamentos médicos. A conta cresce a cada dia. Cobranças chegam quase todo mês. Boletos de R$ 180 mil, R$ 250 mil, R$ 300 mil brotam sob a porta do apartamento, como se fossem contas de água e luz. Quando a cobrança chega, S.L. abre o envelope, espia o valor e joga a carta na gaveta de boletos do hospital. Foi preciso esvaziar uma gaveta inteira do guarda-roupa para acomodar as cobranças. A aparente indiferença esconde uma dor moral. Para os honestos, a inadimplência pode ser devastadora. S.L. recorreu aos antidepressivos para tentar suportar a ausência do pai e a falência da família. Com o nome registrado no cadastro nacional dos maus pagadores, ela não pode abrir conta em banco, nem sonhar com um financiamento imobiliário. Quando o oficial de justiça bate à porta do prédio para entregar uma nova intimação, a fofoca circula entre os vizinhos. S.L. encolhe os ombros. “Sinto vergonha. Uma vergonha enorme de algo que não fiz.”
Nos tribunais, o destino das famílias falidas
A história de S.L. não é um caso isolado. Nos Tribunais de Justiça do país, centenas de famílias falidas em decorrência de tratamento médico são processadas pelos hospitais. Devem o que não têm, ou valores equivalentes ao patrimônio familiar construído ao longo da vida. São cobranças de R$ 600 mil, R$ 750 mil, R$ 1,5 milhão, R$ 5 milhões. As contas não são apenas impagáveis. São excessivamente detalhadas e incompreensíveis. É impossível avaliar a coerência dos valores cobrados. Qual o preço justo de um par de luvas cirúrgicas? E das agulhas hipodérmicas com dispositivo de segurança, na espessura Y, do fornecedor Z? Por que o soro fisiológico custa o dobro do preço cobrado na farmácia da esquina? Como as taxas de materiais e procedimentos são definidas? Como compará-las aos hospitais de mesmo porte?
Todo mundo sabe quanto custa um iPad, uma Ferrari ou um pacote de sabão em pó. Se não sabe, pode descobrir com um simples clique. Bem diferente do que acontece na saúde. Quando está em jogo aquilo que existe de mais precioso – a vida –, o consumidor não encontra instrumentos para exercer seu poder de decisão. Exauridas financeira e emocionalmente, as famílias que recebem contas astronômicas tentam comparar os valores cobrados por medicamentos de baixo custo e materiais básicos com os preços encontrados no varejo. Os hospitais argumentam que essa é uma comparação esdrúxula, porque os custos da assistência numa instituição de alto nível são superiores aos da farmácia da esquina. É um parâmetro imperfeito, sem dúvida. Ainda assim, no obscuro mercado da saúde, é o único disponível ao cliente.
Nos últimos meses, ÉPOCA seguiu os passos de famílias arrasadas por um duplo infortúnio: uma doença grave e a falência financeira decorrente dela. Analisou as cobranças recebidas por pacientes particulares de hospitais de alto nível: Albert Einstein, Sírio-Libanês e Samaritano, todos na capital paulista. Comparou os valores de insumos e medicamentos básicos com os preços praticados em farmácias e sites de materiais cirúrgicos. Grandes diferenças apareceram. Em março de 2012, o Einstein cobrou da família de H.L R$ 150 por 100 unidades de luvas de procedimento não estéreis. Dois anos depois, ÉPOCA comprou o mesmo item por R$ 30,66 no site da Drogaria Onofre. Em julho de 2012, o Sírio-Libanês cobrou R$ 5,91 por um frasco de 500 mililitros de soro fisiológico 0,9%. Vinte meses depois, ÉPOCA comprou o mesmo produto por R$ 3,20. Em abril de 2011, uma cliente do Samaritano pagou R$ 12,92 por um frasco de 30 mililitros de Rinosoro. Três anos depois, ÉPOCA comprou o mesmo medicamento por R$ 6,88. Os exemplos estão distribuídos ao longo desta reportagem. Procurados por ÉPOCA, os hospitais preferiram não comentar as diferenças encontradas em cada item. A falta de critérios claros para definir preços, que confunde as famílias e esgota economias, afeta todo o sistema de saúde. A indefinição sobre o valor dos produtos e dos serviços contribui para o aumento dos custos. A sociedade gasta mais dinheiro sem, necessariamente, ganhar mais saúde. ÉPOCA pesquisou processos movidos contra pacientes e entrevistou dezenas de especialistas para tentar entender como essas distorções afetam o país. O resultado da investigação, apresentado nas próximas páginas, é nossa contribuição para o debate informado de um dos temas mais urgentes da sociedade brasileira.
O custo da saúde
A poucos meses das eleições, a saúde é apontada nas pesquisas como maior preocupação dos brasileiros. Soluções mágicas e programas paliativos provavelmente serão propostos nos próximos meses, graças à criatividade dos marqueteiros políticos. Nenhuma dessas medidas será capaz de transformar a realidade brasileira. Isso só acontecerá quando a sociedade exigir uma solução para as duas razões do mau desempenho do Brasil em saúde: falta de gestão e falta de dinheiro.
O país aplica em saúde 9% do PIB. É pouco. A França gasta 11,7%. A Alemanha, 11,5%. O Reino Unido, 9,6%. Os Estados Unidos, 17,6%. A Argentina aplica menos (8,3%), mas tem indicadores de saúde melhores que os nossos. Isso significa que nossos vizinhos conseguem fazer uma gestão mais eficiente dos recursos (leia o quadro abaixo). Nos principais países europeus, mais de 70% dos gastos com saúde saem dos cofres do governo. Do pouco que o Brasil destina à saúde, 47% é dinheiro público, derivado dos impostos pagos por cidadãos e empresas. A maior parte dos gastos (53%) sai do caixa dos empregadores, que contratam convênios médicos para os funcionários, e do orçamento das famílias que gastam com planos de saúde, médicos particulares e remédios. Os cidadãos são duplamente penalizados. Financiam um sistema público de saúde que funciona mal – e comprometem grande parte do orçamento familiar com tratamento médico.
Diante das falhas do Sistema Único de Saúde (SUS), ter um plano de saúde privado tornou-se uma das maiores aspirações da população. Nos últimos cinco anos, 10 milhões de cidadãos conquistaram a sonhada carteirinha. Há hoje 49 milhões de almas (25% da população) a acalentar a ilusão de nunca precisar do SUS. Nem de se internar como um paciente particular e receber uma conta impagável. Quem paga as altas mensalidades dos planos de saúde acredita na garantia de receber atendimento médico quando precisar. Essa é a premissa que sustenta o crescimento do mercado da saúde suplementar. A realidade é menos rósea. Quando o convênio se recusa a cobrir algum procedimento hospitalar ou, por qualquer razão, o paciente é internado num hospital privado sem ter plano de saúde, a família vive um choque de realidade. Descobre o abominável mundo dos custos de saúde. Ser admitido num hospital na categoria “paciente particular” é uma operação de altíssimo risco. Significa estar à mercê de um sistema de preços confuso, criado num ambiente de transparência zero. Durante ou depois da internação, o doente ou seu responsável legal se veem atolados em cobranças.
O avanço espetacular da medicina e dos custos de saúde impõe um paradoxo. Em muitos casos, a sobrevivência do paciente representa a morte financeira das famílias. Nos Estados Unidos, o risco de um doente de câncer declarar falência é 2,5 vezes o da população. A conclusão faz parte de um estudo conduzido por Scott Ramsey, do Fred Hutchinson Cancer Research Center. “Matar o paciente financeiramente também é desrespeitar o juramento de Hipócrates”, disse a ÉPOCA o oncologista Hagop Kantarjian, do MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas. Desde a Grécia Antiga, os médicos juram jamais aplicar tratamentos que possam causar dano ou malefício. Pode parecer mera questão semântica, mas Kantarjian levanta um dos mais atuais dilemas éticos da medicina. Em 2012, ele e outros médicos publicaram um manifesto contra o alto custo das novas drogas oncológicas na revista Blood, da Sociedade Americana de Hematologia. Os médicos ameaçavam deixar de recomendar aos hospitais a adoção das drogas mais recentes e caríssimas. A pressão surtiu efeito. Alguns fabricantes reduziram os preços dos novos medicamentos no mercado americano.
De onde vêm os preços
Respire fundo e conte até três. É preciso paciência para entender como são definidos os preços cobrados pelos serviços hospitalares. Eles são divididos em cinco categorias: diárias e taxas (como num hotel), medicamentos, materiais, gases medicinais (oxigênio e outros) e exames. Cada hospital define o valor da diária como bem entende. Para medicamentos, o parâmetro de cobrança é uma tabela chamada Brasíndice. As negociações com as operadoras de planos de saúde são feitas a partir dos valores dessa tabela, mas cada plano recebe descontos diferentes, dependendo do volume de pacientes que encaminha ao hospital. Para materiais, a referência é outra tabela, a Simpro. Se o cliente é atendido por meio do plano de saúde, ele não precisa queimar neurônios com isso. Se recebe a conta detalhada, como paciente particular, o pesadelo começa. O Ministério da Saúde deveria advertir: “Tentar consultar a Simpro na tentativa de comparar os valores com a conta hospitalar pode provocar colapso nervoso”. A lista de materiais ocupa 475 páginas. Os preços dos mais diversos insumos, nas mais variadas versões, fabricados por centenas de marcas, estão dispostos em tipologia minúscula. Quem procura o item “cateter” encontra milhares deles. Como saber que tipo foi usado no hospital, se as contas não trazem a especificação completa de cada produto? É um trabalho insano e possivelmente inútil. Os valores pagos por exames (tomografia, ressonância magnética e outros) são negociados com os convênios. A referência é uma terceira tabela, chamada Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), emitida pela Associação Médica Brasileira. Para próteses e aparelhos externos (órteses) não há tabela. O hospital negocia com os distribuidores.
Um exemplo: numa operação de coluna, o médico recebe uma caixa com cerca de 200 pequenas peças. Durante a cirurgia, escolhe o material a implantar no paciente – de acordo com o tamanho, o formato e a necessidade. O hospital não tem como controlar as decisões do médico nem o material usado dentro do centro cirúrgico. Os distribuidores não têm tabela de preço. De cada hospital, cobram um valor diferente. Esse sistema é um terreno fértil para fraudes e um incentivo ao desperdício. “Há casos em que o médico indica ao hospital a empresa que fornece o material e, ao mesmo tempo, recebe um incentivo do fabricante”, diz Sergio Bento, diretor técnico executivo da Planisa, uma consultoria especializada em gestão de hospitais e planos de saúde. O mercado das próteses e órteses virou caso de polícia em algumas cidades. No Paraná, deu origem a uma CPI da Assembleia Legislativa. A maior parte dos fornecedores de órteses, próteses e materiais especiais (chamados, segundo o jargão da saúde, de OPMEs) mantém cláusulas de confidencialidade em seus contratos com os hospitais. Proíbem a divulgação dos preços pagos por esses insumos. “Essa prática permite aos fornecedores cobrar de cada comprador um valor diferente pelo mesmo material”, diz o economista Luiz Augusto Carneiro, superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma entidade de pesquisa mantida por planos de saúde.
Esses materiais são o caso mais grave, mas não o único. Desde 2006, as empresas que vendem produtos médicos de alto custo – em geral, importados – são obrigadas a informar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) os preços que pretendem cobrar no Brasil. A Anvisa não tem o poder de regular preços, mas divulga comparações que ajudam os gestores públicos, os planos de saúde e os hospitais nas negociações. Em 2011, o preço médio pago pelos hospitais privados de São Paulo por um stent coronário (prótese metálica usada para desobstruir artérias) foi de R$ 14 mil. Menos que em Brasília (R$ 19 mil), Porto Alegre (R$ 20 mil), Fortaleza (R$ 21 mil) e Belém (R$ 22 mil). O preço de fábrica, informado à Anvisa pela empresa produtora, era R$ 19 mil. Na Alemanha, o mesmo produto custava € 642 (R$ 1.600). Na Espanha, € 1.500 (R$ 4 mil). Na Itália, € 728 (R$ 1.900). A alta carga tributária não é suficiente para explicar diferenças tão expressivas. “Ainda não sabemos por que esses produtos são tão mais caros no Brasil”, diz Renata Faria Pereira, do núcleo de assessoramento econômico em regulação da Anvisa. “O que contribui para os preços altos no Brasil é a assimetria de informação. O comprador e o gestor público não têm ideia do valor das coisas.”
Os preços inflam ao longo da cadeia da saúde. O fabricante ou importador vendem por X. O distribuidor cobra uma percentagem em cima desse valor quando negocia com o hospital. O hospital aplica outra quando negocia com o plano de saúde. E outra, bem maior, nos casos em que a negociação ocorre com o elo mais fraco de toda a cadeia: um paciente ou familiar em desespero. A disparidade de preços ocorre em todos os níveis. Até nos produtos de uso corriqueiro e baixo custo. No ano 2000, o engenheiro de produção Maurício Barbosa criou a Bionexo, uma comunidade eletrônica de negócios que hoje reúne mais de 800 hospitais e 15 mil fornecedores de todo o país. Ao acessá-la, o cliente consegue comparar os preços e condições de entrega de fornecedores de tudo o que ele precisa para funcionar: remédios, materiais, itens de gastronomia e de hotelaria. “Criamos uma oportunidade de transparência em compras de saúde”, afirma Barbosa. “A sociedade busca isso. Eu, como pessoa, busco isso.” A Bionexo sabe quanto cada cliente paga pelos mais diversos produtos e acompanha as variações de preço. ÉPOCA pediu que ela avaliasse a variação, em relação à média do mercado, dos preços cobrados dos pacientes citados nesta reportagem por alguns medicamentos básicos, como Rinosoro, Luftal, Plasil e Rivotril. A resposta revela as regras desse mercado: “A Bionexo, por contrato de confidencialidade, não torna públicas as informações sobre preços. Observando os medicamentos citados, podemos dizer que, no Brasil, eles podem variar em mais de 50% em função de volume, crédito e até marca”. Transparência é para poucos. Ao paciente, o cliente final da longa cadeia de negócios da saúde, resta a escuridão.
Entrevista realizada pelo Dr. Drauzio Varella a Ciryllo Cavalheiro Filho, médico, especialista em hemostasia, e faz parte do corpo clínico do Incor de São Paulo e do Hospital Sírio-Libanês.
Cada um de nós tem de 5 a 6 litros de sangue circulando pelo organismo. O coração bate, o sangue é impulsionado pelo sistema arterial e vai levar oxigênio para todas as células do corpo. Depois, retorna pelas veias até os pulmões onde é oxigenado e volta para o coração que, no pulsar seguinte, o espalha pelo corpo inteiro outra vez. Se não houvesse um meio de deter os pequenos orifícios que possam surgir nas artérias e veias, o sangue jorraria por eles provocando uma hemorragia permanente, porque o coração não para de bombeá-lo.
Por que, então, quando sofremos um corte, o sangue escorre um pouquinho e para? Porque é dotado de um sistema de coagulação altamente sofisticado e possui uma série de substâncias, por exemplo, as plaquetas, que convergem para o local e formam um trombo para bloquear o sangramento. Decorrido certo tempo, esse trombo se dissolve, o vaso é recanalizado e a circulação volta ao normal.
Há pessoas que, por alguma razão, apresentam distúrbios no mecanismo de hemostasia e formam trombos (coágulos) num lugar onde não existia sangramento. Como a estrutura desses trombos é sólida e mole, um fragmento pode desprender-se e seguir o trajeto da circulação venosa que retorna aos pulmões para o sangue ser oxigenado. Nos pulmões, o trombo provoca um entupimento – a embolia pulmonar – uma complicação grave e uma das raras causas de morte súbita.
Tromboses venosas constituem uma doença grave que pode levar a desfechos fatais por causa das embolias pulmonares.
E FATORES PREDISPONENTES DA TROMBOSE
Drauzio – Embora a população não saiba, trombose é um problema mais ou menos frequente no dia a dia dos médicos. Qual é a dimensão real dessa doença? Cyrillo Cavalheiro Fº – De maneira geral, pode-se dizer que, por ano, em cada mil pessoas, uma vai apresentar trombose. No Brasil, país de aproximadamente 170 milhões de habitantes, ocorrem por volta de 170 mil casos anuais. Em geral, as tromboses venosas se manifestam mais nos membros inferiores.
Drauzio – Quais as principais causas da trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – A imobilidade é a causa principal da trombose venosa, imobilidade que pode ocorrer não só durante as internações hospitalares, mas também durante as viagens prolongadas. A reposição hormonal na menopausa, tão discutida atualmente, e o cigarro, como via indireta de formação aterosclerótica e de placas arteriotrombóticas, também facilitam o desenvolvimento de embolias pulmonares.
Drauzio – Quais as pessoas que correm maior risco de desenvolver embolia pulmonar? Cyrillo Cavalheiro Fº – Costumo dizer que as pessoas nascem com predisposição trombótica. É sabido que indivíduos com tipo A, B e AB do sistema sanguíneo ABO têm de duas a quatro vezes maior possibilidade de desenvolver trombose do que os de tipo O.
Com o passar da idade, a predisposição trombótica vai aumentando. Além disso, varizes, cigarros e pílulas anticoncepcionais são fatores que pesam no aparecimento do problema.
Drauzio – E o colesterol elevado também pesa? Cyrillo Cavalheiro Fº – O colesterol elevado também pesa assim como influem fatores genéticos hereditários. Sabe-se que de 70% a 80% dos casos, os fenômenos trombóticos ocorrem em pessoas da mesma família.
Drauzio – Que cuidados as pessoas devem tomar se já houve um caso de trombose em um membro da família? Cavalheiro Fº – De maneira geral, quando forem submetidas a um procedimento cirúrgico ou fizerem uma viagem muito longa (quando falo em viagem, não me refiro apenas às viagens de avião, mas às de carro, de trem, de ônibus, etc.), devem proteger-se usando meias elásticas e adotando, sob orientação médica, no período pré e pós-operatório medidas de profilaxia farmacológica com o anticoagulante heparina.
SÍNDROME DA CLASSE ECONÔMICA
Drauzio – Você poderia explicar o que é a síndrome da classe econômica? Cyrillo Cavalheiro Fº – Desde 1940, a síndrome da classe econômica, ou síndrome do viajante, é descrita para caracterizar pacientes acometidos de embolia pulmonar depois de uma viagem de avião. Embora não se restrinja às viagens aéreas e apenas algumas pessoas que viajam na classe econômica formem trombos, a Organização Mundial de Saúde obriga as companhias de aviação a desenvolverem sistemas que previnam a incidência dessa patologia, porque a imobilidade a que se vê forçado o passageiro predispõe à trombose. No momento, uma empresa nacional enviou ao Incor vários equipamentos para verificar o de melhor desempenho na prevenção da trombose a fim de introduzi-lo nas aeronaves. Há um massageador, um “mexedor” de pernas parecido com uma ampulheta que o passageiro pisa alternadamente num lado e no outro, uma bomba pneumática e meias elásticas.
Vários são os fatores que interferem nesse processo de formação de trombos nas viagens de avião. Além da altitude e da baixa umidade relativa do ar, nos voos extremamente longos, muitas vezes o passageiro bebe ou toma medicamentos para dormir e acaba ficando numa posição desconfortável comprimindo as pernas contra o assento. Nixon, presidente dos Estados Unidos, teve duas embolias pulmonares no avião da presidência.
Drauzio – Quais são suas recomendações para quem viaja muito, especialmente se tiver histórico familiar de trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – Se a pessoa ou algum familiar próximo já tiveram trombose, é fundamental procurar um médico para ouvir as recomendações adequadas para o seu caso. Pessoalmente, faço uso de profilaxia medicamentosa, quando as pessoas já apresentaram um quadro de trombose.
Drauzio – Você prescreve remédios? Cyrillo Cavalheiro Fº – Para prevenir, não prescrevo. Muito se discute sobre a indicação do ácido acetilsalicílico, mas não existe prova documental de que ele seja um fator de proteção para a pessoa que vai viajar.
Embora algumas se sintam protegidas tomando aspirina antes de embarcar, o mais importante é a movimentação. O problema é que especialistas em medicina aeroespacial desaconselham andar dentro das aeronaves em virtude do perigo que representam as turbulências para o traumatismo craniano. Mesmo sentadas, porém, as pessoas podem massagear a panturrilha, pressionando-a de baixo para cima. Além disso, sob nenhum pretexto, devem ingerir bebidas alcoólicas, pois 60% dos pacientes que manifestaram essa síndrome haviam bebido. Segundo alguns estudos, o álcool é um fator predisponente, porque aumenta a diurese e a hemoconcentração.
MEIAS ELÁSTICAS
Drauzio – Qual é a eficácia do uso de meias elásticas? Cyrillo Cavalheiro Fº – As meias elásticas de fato protegem, mas devem ser colocadas corretamente não no aeroporto pouco antes do embarque, mas em casa, com as pernas erguidas e seu tamanho deve estar de acordo com o comprimento e o diâmetro dos membros inferiores de quem as usa. Muita gente compra meias apertadas demais ou pequenas. Infelizmente nesses dois casos, elas não oferecem o mesmo grau de proteção. Drauzio –De que forma as meias elásticas reduzem a incidência de trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – As artérias levam o sangue que sai do coração para circular pelo corpo e as veias o trazem de volta. Nas pessoas com varizes, as veias se dilatam e comprometem o funcionamento das válvulas, que atuam como comportas empurrando o sangue para o coração. O uso de meias elásticas favorece a aproximação dessas válvulas, fazendo com que funcionem adequadamente. SINTOMAS Drauzio – Quais os principais sintomas da trombose venosa? Cyrillo Cavalheiro Fº – Dor, inchaço e calor na perna. Pessoas com musculatura muito avantajada, às vezes, não apresentam inchaço, mas a dor sempre aparece.
Drauzio – Que tipo de compleição física favorece o desenvolvimento da trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – Os gordos e obesos apresentam maior possibilidade de desenvolver trombose, pois em geral se movimentam menos e o sedentarismo é fator predisponente dessa patologia.
DOENÇAS ASSOCIADAS À TROMBOSE
Drauzio – Quais doenças estão mais associadas ao risco de trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – Na verdade, 15% dos fenômenos trombóticos estão relacionados com o câncer e, muitas vezes, precedem o aparecimento do tumor. Em alguns casos, o diagnóstico da doença pode até ser retardado pelo tratamento da trombose. Por isso, alertamos nossos residentes para pesquisarem câncer nos pacientes jovens que, sem causa aparente, apresentem um quadro de formação de trombos.
Constituem, ainda, grupo de risco mulheres que tomam pílula anticoncepcional, apresentem histórico familiar da doença ou de abortos recorrentes por fatores hematológicos, pois esses episódios, às vezes, resultam de trombose nos vasos placentários. A eclâmpsia, isto é, o aumento da pressão arterial durante a gravidez, também se correlaciona com a incidência de trombose.
Drauzio – Diante dos sintomas da trombose, que medidas devem ser tomadas? Cyrillo Cavalheiro Fº – Deve-se procurar o médico imediatamente para fazer um diagnóstico precoce e evitar a embolia pulmonar. Muitas vezes, o inchaço na perna é atribuído a uma distensão muscular, tendinite ou a uma batida, o que mascara o quadro. Nesses casos, infelizmente, quando a súbita falta de ar se manifesta, pode ser tarde demais.
Drauzio – Muitas vezes, os próprios médicos menosprezam os sintomas e recomendam um anti-inflamatório, não é mesmo? Cyrillo Cavalheiro Fº – É muito importante que médico e paciente tenham noção do risco que correm. O médico precisa ser avisado dos casos de trombose na família ou de abortos de recorrência sempre que houver a possibilidade de um procedimento cirúrgico ou mesmo clínico, como uma pneumonia. Esse é um dado que muitos médicos se esquecem de perguntar ao levantar o histórico do paciente.
É importante ressaltar que não se sabe qual a razão, mas o fator V de Leyden, alteração genética muito prevalente na nossa população, provoca trombose não só nas pernas, mas no fígado, no cérebro e nas coronárias.
RISCO ASSOCIADO ÀS CIRURGIAS
Drauzio – Por que as cirurgias, especialmente as ortopédicas e as cardíacas, aumentam o risco de trombose? Cyrillo Cavalheiro Fº – Sem considerar o tipo sanguíneo e os predisponentes genéticos ou adquiridos, é a imobilidade pós-operatória a grande responsável pelos casos de trombose. Além disso, como o cirurgião pode ser obrigado a manusear muito próximo dos vasos e a colocar afastadores cirúrgicos que comprimam determinada veia, o risco de contrair a doença aumenta.
Pacientes com traumas medulares, que necessitam ficar meses ou o resto da vida acamados, devem fazer profilaxia não só farmacológica, mas também mecânica.
EMBOLIA PULMONAR
Drauzio – Como uma pessoa pode perceber que está tendo uma emboliapulmonar? Cyrillo Cavalheiro Fº – O principal sintoma é a súbita falta de ar, muitas vezes acompanhada de tosse, sem explicação cabível. É o caso do indivíduo que foi operado de apendicite e dez dias depois, tomando café em casa, cai morto. Vão achar que foi infarto. Não foi, foi embolia pulmonar.
Drauzio – Nunca me esqueço de um caso ocorrido há mais ou menos 20 anos com um paciente meu que tinha um tumor grande de estômago. Fez quimioterapia, o tumor reduziu e ele foi operado com sucesso. No dia em que teve alta, desceu sentado numa cadeira de rodas até a porta do hospital. Quando ficou em pé para entrar no carro do filho, caiu morto por causa de uma embolia pulmonar. Cyrillo Cavalheiro Fº – É trágico um caso desses. Os cirurgiões têm medo de hemorragias; eu, das embolias porque hemorragia a gente trata e embolia mata. Na verdade, não se sabe ao certo por quanto tempo deve ser mantida a profilaxia após procedimento cirúrgico ou clínico para prevenir uma trombose depois da alta hospitalar ou garantir a recuperação total do paciente.
TRATAMENTO PREVENTIVO
Drauzio – Como é feito o tratamento preventivo? Cyrillo Cavalheiro Fº – Geralmente, é preciso avaliar os riscos hemorrágicos e trombóticos que o paciente corre. Não se pode prescrever um medicamento que vá afinar seu sangue a tal ponto que provoque uma hemorragia. Entretanto, se teve uma trombose anterior bastante extensa, o tratamento deve ser severo e agressivo no período de internação. Recomenda-se também o uso de meias elásticas e de massageadores pneumáticos intermitentes, que estimulam as bombas venosas dos pés ou da batata das pernas durante o período em que estiver acamado.
Drauzio – Isso é feito antes da operação? Cyrillo Cavalheiro Fº – É feito antes e depois da cirurgia. Existe um estudo publicado em 2002 que mostra a igual eficácia da profilaxia aplicada 2h antes e 8h depois da cirurgia. Pessoalmente, prefiro adotar essas medidas depois da cirurgia.
Drauzio – Por quanto tempo esse tratamento deve ser mantido? Cyrillo Cavalheiro Fº – Na minha opinião, a profilaxia deve ser mantida até 15 dias após a recuperação total do paciente. Nos casos de lesão medular, mantenho-a por três meses. Drauzio – E quando a trombose já se instalou, qual é o procedimento?
Cyrillo Cavalheiro Fº – Nesses casos, são três os objetivos: não deixar que a trombose vire um coágulo e se dirija para os pulmões provocando uma embolia pulmonar; impedir que outra trombose se forme em outra parte do corpo, pois o sistema de coagulação naquele momento está comprometido e, por fim, não deixar que o trombo aumente.
Drauzio – Nesses casos, qual é o tratamento indicado? Cyrillo Cavalheiro Fº – Trata-se sempre com heparina, por via endovenosa ou subcutânea. Há dois tipos de heparina: a clássica e a de baixo peso molecular, mais utilizada hoje em dia, porque não apresenta as intercorrências da clássica que pode provocar osteoporose e queda de plaquetas.
Drauzio – Depois da fase com heparina de baixo peso molecular, pode-se usar a heparina clássica? Cyrillo Cavalheiro Fº – Isso depende do paciente. Se existe um fator hematológico e ele já apresentou um quadro de trombose, o tratamento é perene. A heparina clássica pode ser indicada se o paciente apresentou melhora clínica depois de 6 meses a um ano da primeira trombose, ou toda a vez que for submetido a um fator de risco.
Drauzio – O que você recomenda para as pessoas que já tiveram trombose venosa? Cyrillo Cavalheiro Fº – Na suspeita de qualquer sintoma, as pessoas que já tiveram trombose venosa devem entrar imediatamente em contato com seu médico. Fora isso, podem levar vida absolutamente normal. Devem adotar uma dieta balanceada, beber com muita parcimônia e moderação e praticar exercícios físicos com regularidade. Fumar é sempre contraindicado quaisquer que sejam as circunstâncias.