“Parirás com dor”, a condenação à Eva e estendida a todas as mulheres
pelo pecado original, segundo o livro Gênese da Bíblia, alimenta o
imaginário de que o destino da mulher é sofrer durante o parto,
especialmente num país de maioria cristã. Mas não basta sofrer, é
preciso sofrer em silêncio, ou pelo menos não causar incômodo aos
profissionais da assistência ao parto.
“Lady, a mãe não vai te esconder a dor, a dor do parto é de matar
assim, mas só que não fica fazendo escândalo, porque é pior. Eles vão te
deixando para trás, vão te maltratar. Seja forte!” O conselho de uma
mãe documentado na pesquisa Nascer no Brasil – Inquérito nacional sobre parto e nascimento
, publicada em 2014 pela Fiocruz, é um retrato da naturalização da
violência sofrida pelas mulheres que estão prestes a dar à luz no país.
Desde a posição considerada imprópria para dar vazão às contrações,
passando pela indução da dor, manobras e outras intervenções que causam
danos à mulher e ao bebê, até o tratamento hostil, o conjunto de
violências obstétricas faz parte do cotidiano das maternidades e
hospitais. De acordo com a pesquisa “Mulheres nos espaços público e privado brasileiros”,
feita pela Fundação Perseu Abramo em 2010, uma em cada quatro mulheres
já sofreu violência obstétrica no país, mas esse número pode ser ainda
maior porque a maioria não sabe identificar os maus tratos.
A desqualificação do termo “violência obstétrica” em despacho do
Ministério da Saúde por ter “conotação inadequada”, “não agrega valor” e
“prejudicar a busca do cuidado humanizado” causou indignação entre
pesquisadoras, ativistas e organizações sociais que lutam há anos para
que esse tipo de maus tratos e desrespeito seja identificado e
denunciado.
Segundo o documento do Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas (DAPES) da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), há
“impropriedade da expressão violência obstétrica no atendimento à
mulher, pois acredita-se que, tanto o profissional de saúde quanto os de
outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”.
O despacho motivou recomendação do Ministério Público Federal
ao Ministério da Saúde para que atue de forma a evitar a violência
obstétrica em vez de proibir o uso do termo. A procuradora da República
Ana Carolina Previtalli, responsável por um inquérito civil público com
relatos de denúncia de violência obstétrica, requer que o órgão
esclareça por meio de nota que o termo “violência obstétrica” é uma
expressão já consagrada. “A expressão pode ser usada por profissionais
de saúde, independentemente de outros termos de preferência do Governo
Federal”.
No documento, o Ministério da Saúde chega a afirmar que o termo não
condiz com a referência da Organização Mundial da Saúde (OMS) e que o
uso do termo violência só se justificaria se praticada de forma
intencional contra a paciente. O MPF rebateu, demonstrando que a OMS
reconhece a violência física e verbal no parto, independente da
intencionalidade do profissional em causar danos físicos, em documentos
como a “Declaração de Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e
maus-tratos durante o parto”, publicada em 2014.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) também recomendou
que o Ministério da Saúde desconsidere o despacho. Para o CNDH, negar a
violação de direitos da mulher na gravidez, parto e puerpério
representa um retrocesso nas políticas públicas de saúde da mulher e de
saúde materna.
MPF e CNDH concordam que a violência obstétrica deve ser reconhecida e
combatida como violência de gênero, nos termos da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher – “Convenção de Belém do Pará” (1994).
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – seção Goiás também repudiou o posicionamento do ministério.
“A OAB-GO e comissões que subscrevem repudiam a perpetuação destas
práticas ilegais e entende que despacho do Ministério da Saúde é um
atentado contra os direitos fundamentais das mulheres e das políticas
públicas de identificação, prevenção e erradicação da violência contra
mulher”.
“É uma maneira de ocultar o que está posto, que é a violência dentro
dos serviços, porque parar de falar ou de usar o nome não vai fazer com
que a violência acabe. Nós seríamos as primeiras a não falar sobre o
termo se isso tivesse como consequência acabar com a violência. A gente
sempre tipifica e mesmo que eles não queiram vamos afirmar a violência
obstétrica como uma questão de violência contra as mulheres”, argumentou
a pesquisadora Emanuelle Góes do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Conflito de visões sobre o parto
Em nota emitida após o despacho, o ministério explicou que a
posição é um atendimento às orientações sobre o uso do termo publicadas
pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em outubro de 2018, no parecer CFM 32/2018.
Trata-se de um atendimento à instrução e ao apelo de entidades médicas
para que o termo não seja usado de maneira indiscriminada,
“principalmente se associado a procedimentos técnicos indispensáveis
para resolução urgente de situações críticas à vida do binômio mãe-bebê
relacionados ao momento do parto”.
“O termo violência obstétrica, além de ser pejorativo, traz em seu
bojo riscos permanentes de conflito entre pacientes e médicos nos
serviços de saúde e, para efeito de pacificação e justiça, avalia que
tal termo seja abolido, e que as deficiências na assistência ao binômio
materno-fetal tenham outra abordagem e conceituação”, diz trecho do
parecer do CFM relatado por Ademar Carlos Augusto.
Para a pesquisadora da UFBA, apesar das violações não serem
exclusivamente causadas pelas/os obstetras, a lógica do cuidado pela
visão deste profissional afeta toda a assistência. “Eles são os
principais violadores, porque a partir do momento em que os médicos
reverem sua conduta, as outras áreas também vão fazer, nesse modelo em
que o médico dá a primeira e a última palavra, termina também
influenciando o cuidado, a atuação e a forma de conduzir o cuidado e
atenção”.
Autora dos artigos mais referenciados sobre o tema, Simone Diniz,
professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São
Paulo (USP), argumenta que a ausência de consenso científico precisa ser
entendida no contexto dos conflitos de interesses envolvidos nesta área
e não como justificativa para impor o abandono do termo.
“A gente tem que legitimar o termo violência obstétrica como forma de
violência institucional, como violência de gênero. Internacionalmente o
termo é mais entendido como abuso e desrespeito. De fato, não há
consenso, uns chamam de violência obstétrica, outros de abuso e
desrespeito no parto, como a OMS. Também gosto muito dos termos abuso e
desrespeito, acho autoexplicativo. Abuso e violência são sinônimos.
Violência obstétrica é um tema de pesquisa emergente e cada vez mais
consolidado”, defende Diniz.
Visibilizar para coibir a prática
No artigo científico Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil,
publicado em 2014, são citadas seis formas pelas quais as práticas de
violência durante o parto têm implicações sobre a morbimortalidade
materna. A morte de Alyne Pimentel no Rio de Janeiro em 2002,
jovem negra grávida de seis meses, levou à primeira condenação do
Estado brasileiro em razão de morte materna por negligência e descaso
das instituições de saúde, em um exemplo de violência obstétrica como
violação aos direitos humanos da mulher.
“Pior do que violência é a própria morte. Nestes casos, os
profissionais de saúde, o serviço, as instituições deixam o desfecho que
seria de duas vidas ser um desfecho de duas mortes, porque em geral os
casos de morte materna envolvem duas mortes: da mulher e do
recém-nascido”, afirma Emanuelle Goés, pesquisadora da UFBA.
A redução da Mortalidade Materna foi um dos piores indicadores que o
Brasil apresentou quando prestou contas às Nações Unidas, em 2015, sobre
o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio. Além de 62
mortes consideradas evitáveis para cada 100 mil nascidos vivos, enquanto
a meta prevê a metade, ainda registrou aumento em 2017 para 64 mortes. Esta mortalidade é maior em mulheres negras que têm duas vezes mais chances de morrer por gravidez.
“As pesquisas sobre atenção, acesso, utilização dos serviços de
saúde, mostram como a violência obstétrica se manifesta, inclusive
quando a gente adiciona a questão racial: as mulheres negras as mais
expostas de forma mais grave que pode levar ao quadro de letalidade,
morbidade ou morte”, assinala Góes.
Em países como Argentina e Venezuela a violência obstétrica é
tipificada em leis que visam coibir nacionalmente a prática. No Brasil,
estados e municípios já aprovaram leis que entre outras medidas ajudam
as mulheres a identificar a violência, como é o caso de Santa Catarina
e de Ponta Grossa, município do Paraná. Relatos de violência obstétrica
no Hospital Evangélico de Ponta Grossa motivaram a realização de uma Comissão Especial de Investigação (CEI) nas unidades de assistência ao parto do município, que resultou na paralisação das atividades daquele hospital.
“Se a gente não visibilizar deixa os profissionais de saúde
confortáveis para realizar qualquer procedimento. Então a partir do
momento que a gente conceitua, tipifica consegue dar uma maior clareza
quando o profissional realiza o tipo de ação e a gente consegue
enxergar, seja a mulher, doula, companheiro, profissional de saúde”,
coloca a pesquisadora.
“E como não definir violência obstétrica com tantas práticas expostas
desde amarrar as mulheres numa cama, realizar manobras que machucam
mesmo fisicamente, como a manobra de kristeller em que o profissional
sobe na barriga da mãe?”, questiona a entrevistada.
Chega de parto violento para vender cesárea
“Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse
jeito, né? Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha.” Essas
foram algumas das frases relatadas repetidamente por mulheres que deram à
luz em várias cidades do Brasil, ao “Parirás com dor”, dossiê
elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra
as Mulheres no Senado, em 2012. O dossiê constatou que muitas mulheres
ainda ficam sozinhas na hora do parto, pois são impedidas de ter um
acompanhante, o que fere a Lei Federal nº 11.108/2005, e o Estatuto da
Criança e do Adolescente, no caso das adolescentes grávidas.
A professora Simone Diniz considera que o despacho do Ministério da
Saúde é uma tentativa de censurar um tema consagrado na política pública
e na pesquisa, e que vem coibindo os abusos da assistência ao parto no
Brasil, como o impedimento de acompanhante durante o procedimento e a
prática de episiotomia
que chegava a atingir 90% das mulheres. “O discurso da violência
contribuiu para denunciar a desumanização do parto, para mudar a prática
em direção a um pouco mais de humanização e nesse sentido é muito útil.
Se o ministério preferir posso passar a usar o termo abuso e
desrespeito”, ironizou.
Para Diniz, o ministério não tem governabilidade sobre o termo. “O
ministério pode de impedir que seus documentos mencionem o tema, mas
isso é o máximo, porque as pessoas vão continuar discutindo, trata-se de
liberdade epistêmica, não nos privarão da liberdade de conceituar a
nossa experiência. O fato de ter feito uma nota tão desconexa, porque
não tem autoridade para censurar um tema, isso talvez contribua para
criar mais controvérsia e divulgar o assunto”.
No entendimento da pesquisadora, quando uma mulher é submetida a uma episiotomia
ou outro procedimento em desacordo com a sua vontade, o profissional
não poderia afirmar que não há intenção de provocar danos, porque a
autonomia da paciente é garantida pelo Código de ética médica. “A ideia
de intencionalidade é de desalinhamento com as evidências científicas.
Se o profissional força a mulher a se submeter a um procedimento que não
tem base em evidência científica de que é seguro naquela situação, há
intencionalidade. Quando viola o direito ao acompanhante há
intencionalidade, quando só oferece uma posição tem intencionalidade e
isso que é chamada de violência”.
Um exemplo de como a visão machista é familiar a esses espaços a
ponto de transformar uma violência de gênero em algo aceitável é o ponto
do marido, procedimento voltado unicamente para satisfazer o parceiro. A
prática foi denunciada pela jornalista Bruna de Lara em recente reportagem no The Intercept.
O procedimento inclui pontos além do necessário após a episiotomia para
apertar a entrada da vagina, com o intuito de torná-la mais estreita.
O Brasil é o segundo país com maior taxa de cesáreas no mundo. De
acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) 55,4%
do total de nascidos vivos em 2016 vieram ao mundo por meio deste
procedimento cirúrgico. Enquanto pela recomendação da OMS, o índice não
deveria ultrapassar 15%. No setor privado, a cirurgia já chegou a
atingir 88% dos nascimentos. A cesárea é uma intervenção efetiva para
salvar a vida de mães e bebês, porém apenas quando indicada por motivos
médicos.
“A ideia é que o parto em si é uma coisa muito terrível e os
obstetras estão lá para salvar as mulheres, então as mulheres têm que
aceitar o modelo de cesárea de rotina. Chega de parto violento para
vender cesárea, a violência no parto acontece pelo fato dos médicos não
seguirem os protocolos internacionais do que é seguro, efetivo e que
promove uma boa experiência das mulheres é estratégia para manter o
mercado de cesariana”, disse ela.
Embora 70% das brasileiras optem pelo parto normal no início da
gestação, são poucas as que conseguem, como diagnosticou a pesquisa
Nascer no Brasil. O levantamento constatou ainda que o modelo de atenção
ao parto normal no Brasil é extremamente medicalizado, com intervenções
excessivas e uso de procedimentos que, além de não serem recomendados
pela OMS como rotina, provocam dor e sofrimento desnecessários. “Este
modelo não inclui as boas práticas obstétricas”, afirmou a responsável pela pesquisa Maria do Carmo Leal.
“A naturalização da violência passa por aí, por considerar o parto um
estupro invertido. As mulheres passam por todas as intervenções do
abandono, elas querem uma experiência positiva. A OMS vem valorizando
muito a experiência parto. Por causa dessa naturalização de considerar o
parto como uma experiência sempre negativa, ficam tão aflitos quando a
realeza britânica resolve ter filhos sem intervenções e com parteira”.
Entramos em contato com o Conselho Federal de Medicina, mas não tivemos retorno.
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