Em nenhum momento, o médico ginecologista ou qualquer outro especialista deve ficar sozinho com a paciente na sala |
E esses são apenas os casos de conhecimento público. Mas, certamente há outros, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
No entanto, aqui não vamos falar da conduta específica de um profissional, mas sim de um contexto de violação de direito das mulheres no que se refere ao atendimento médico. O que os hospitais, organizações e entidades relacionadas têm feito, efetivamente, para frear crimes de violência contra a mulher?
A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro destaca que as mulheres podem ser acompanhadas por uma pessoa de sua livre escolha durante todo o trabalho de parto. "Esse direito das mulheres foi reforçado nas unidades da rede estadual, com a instalação de cartazes informativos. Além disso, as unidades de saúde seguem protocolos rígidos de segurança do paciente e parto seguro, que foram revisados por grupos técnicos", diz a pasta.
De acordo com Guilherme Nadais, médico e vice-presidente do Cremerj, o órgão tem como principal função fiscalizar as condições do exercício da profissão médica, receber denúncias e, se necessário, abrir sindicância para investigação. Ele também tem a responsabilidade de apurar e punir eventuais infrações éticas ou mesmo crime cometidos por médicos.
"O que a gente faz são palestras, educação continuada, instruímos as pessoas para evitar que ocorram essas práticas não condizentes com o ato médico, mas não seria factível ao conselho ter uma busca ativa das possíveis infrações éticas que ocorrem em todas as unidades de Saúde do Estado do Rio de Janeiro", argumenta Nadais.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), disse, em nota, que tem orientado os médicos sobre a forma de examinar o paciente ou aproximar-se dele para fazer o exame físico. "Quando é um exame ginecológico, urológico, ou proctológico, é necessário que exista um acompanhante de sala, que tenha um técnico ou um auxiliar que presencie o exame também", alega a entidade.
O Cremesp lembra também que o uso de câmeras de vigilância já existe em muitas instituições de assistência à saúde, mas é preciso observar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), uma vez que o paciente tem direito à sua privacidade e sigilo.
"Atualmente, muitos procedimentos cirúrgicos são filmados, gravados em mídia digital e entregues ao paciente quando recebem alta ou passam a compor o próprio prontuário. Sempre visando a proteção e segurança para ambas as partes, paciente e equipe", pontuou a pasta.
O Ministério da Saúde foi contatado, mas até a publicação dessa reportagem não tivemos resposta. A Federação Brasileira de Hospitais também não respondeu as solicitações.
Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) disse que não poderia acrescentar nenhum posicionamento à discussão porque, segundo ele, esses crimes não têm relação alguma com a entidade, que passou o bastão para a Sociedade Brasileira de Anestesiologia e demais órgãos relacionados.
Outra saída para inibir esses crimes seria haver uma ouvidoria eficiente ou outro canal onde a paciente pudesse denunciar sem medo de represálias
O que fazer para evitar crimes semelhantes às mulheres?
Saída de medicamentos e sedativos deve ser fiscalizada
Segundo os especialistas, raramente, alguma avaliação psicológica é feita na contratação de um médico |
Médicos são gente como todo mundo
"Não é feito absolutamente nenhuma avaliação da personalidade dessa pessoa, e se médicos não tivessem esses problemas, não se suicidavam e não matavam ninguém. Por essa negligência e outros fatores, a violência contra as mulheres no Brasil tem crescido assustadoramente", reflete a médica ginecologista.
"Então, isso daí (os crimes de estupro), na realidade, é só uma amostra do que está acontecendo com as mulheres no Brasil em todas as camadas sociais, em todas as profissões e em todos os setores que essa mulher transita", exemplifica Garcia.
Contudo, a ginecologista afirma que os médicos não estão acima de todos, mas, espera-se que o profissional de saúde que está cuidando da vida da paciente em um momento de vulnerabilidade tenha um cuidado maior.
Além disso, ao que tudo indica, avistamos apenas a ponta do iceberg, conforme elucida a defensora pública de São Paulo. "É possível que o número de casos de crimes de estupro seja bem maior, sobretudo, porque eles têm ocorrido em decorrência da sedação. Isso significa que muitas mulheres podem ainda nem saber que sofreram algum tipo de violação", diz a promotora.
Países modelos
Segundo os especialistas, alguns países têm modelos muito bem estruturados em termos de qualidade e segurança dos pacientes. Esse é o caso do Canadá, por exemplo. "Lá existe uma preocupação muito grande com a experiência do paciente, que analisa toda a sua jornada durante sua estadia no hospital. Isso faz com que o sistema esteja em constante melhora", destaca Branco, lembrando que o atendimento é avaliado desde o atendimento na recepção até procedimentos pós-cirúrgicos.
Segundo ele, Inglaterra, Portugal, Noruega e outros países europeus, nesse quesito, também se destacam. Entretanto, não dá para comparar, porque lá, o dinheiro gasto com saúde é muito maior.
"Enquanto entre 95 a 99% desses países têm certificados de qualidade, no Brasil, menos de 10% dos hospitais são acreditados. Isso já dá uma dimensão da diferença", avalia Branco.
Hospitais que adotam o Protocolo de Cirurgia Segura - um conjunto de regras estabelecidas em um consenso internacional comandado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para melhorar todos os âmbitos de uma cirurgia -, tendem a oferecer mais segurança às pacientes.
Ninguém age sozinho, dizem especialistas
"A verdade é que a ocorrência de um crime é responsabilidade de toda a sociedade. Mas no caso de uma equipe cirúrgica, eu acredito que todos deveriam ser responsabilizados, porque tem vários membros, tem um cirurgião, o primeiro auxiliar de instrumentação, a circulante, o anestesista. É uma responsabilidade coletiva, mas é importante dizer que há muitos crimes que não são flagrados", opina o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.
Ainda de acordo com Nadais, uma vez confirmado que houve um crime dessa natureza (de estupro), o médico deveria ser afastado definitivamente do exercício da profissão.
Para evitar o cenário que estamos descobrindo, a defensora pública acredita que penalizar uma única pessoa, no caso, os médicos responsáveis pelos crimes em si, não é o suficiente. "Essa responsabilização deve ocorrer em todas as instâncias, mas, nós observamos uma falha geral e o direito das mulheres só tem avançado a partir da violação de seus corpos e de suas vidas", comenta.
Médico colombiano não podia atuar no Brasil
Segundo o vice-presidente do Cremerj, na época em que ocorreram os crimes, em 2020 e 2021, o médico colombiano não estava habilitado para atuar no Brasil.
"Ele não tinha inscrição no Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, não tinha o revalida, que é a prova que faz com que o médico formado no estrangeiro valide seu diploma no Brasil e não era membro da Sociedade Brasileira de Anestesiologia", diz o médico.
Ele fez a prova do revalida no dia 3 de dezembro de 2021 e recebeu a expressão no CRM aqui do Rio de Janeiro no dia 31 de janeiro de 2022. Até então, ele estava num suposto programa de supervisão de uma universidade do Rio de Janeiro", acrescenta.
Teoricamente, o médico só poderia atuar no país a partir de 2023, e mesmo assim, não como anestesista. Em outras palavras: se os trâmites tivessem corrido de forma legal, ele não teria tido a "oportunidade" de cometer os crimes dos quais está sendo acusado.
"Ninguém comete um crime sem que outras pessoas tenham contribuído para sua execução. Ele (o médico colombiano) estava totalmente irregular aqui. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro vai apurar esses fatos, porque houve uma falha geral", afirma o vice-presidente do Cremerj.
Nesse sentido, o diretor de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, Jedson Nascimento, lembra que o anestesiologista precisa se especializar pelo período de três anos para atuar na área.
"Hoje, profissionais sérios estão sendo questionados por causa de um criminoso desqualificado que ocupou um espaço que não lhe cabia. O erro na contratação de profissionais inadequados recai sobre todos nós, sendo que pouco se houve falar em complicações cirúrgicas causadas pela anestesia. A busca pela qualidade é a nossa túnica", conclui o diretor.
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