Até cirurgias para colocar silicone fazem parte do esquema, dizem servidores. Ministério Público Federal vai investigar o caso. Crivella classificou denúncia como 'inverdade absoluta'.
Funcionários de hospital universitário afirmam que pacientes são indicados por pastores |
Funcionários do Hospital Universitário Gafrée e Guinle, na Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro, afirmam que muitos pacientes estão chegando a unidade com a indicação de pastores para conseguirem furar a fila do Sistema de Centrais de Regulação (Sisreg). O prefeito nega as acusações, que classifica como "inverdades".
O Ministério Público Federal (MPF) vai investigar o caso, como mostrou o Bom Dia Rio nesta quinta-feira (30).
A unidade de saúde tem contrato com a prefeitura e, em 2018, conseguiu praticamente dobrar a verba que recebe por ano.
“As pessoas não estão vindo mais pelo Sisreg com maior frequência. A maior fila hoje que tem lá é a fila que vêm indicadas pelo prefeito”, afirmou uma funcionária, que não quis se identificar.
Os servidores contaram que os pacientes indicados faziam cirurgias de catarata e de vesícula e que a rapidez no atendimento depende do prestígio do pastor que indica: se o nome for considerado influente, em poucas semanas o procedimento é realizado.
“Esse ano é que a coisa ficou muito gritante. A ponto de a gente não conseguir trabalhar. A gente chega no ambulatório agora, tem os pacientes que estão marcados, mas quando a gente vai ver tem mais de dez, 15 pacientes que a gente vai ver que é tudo indicado”, destacou a servidora.
Os trabalhadores explicam de maneira simples como o esquema funciona.
“Todos eles que vêm indicados passam na frente de todo mundo”, destacou a funcionária.
As cirurgias de catarata e vesícula são feitas aos sábados. É como se ocorresse um sistema de regulação próprio.
“O Sisreg do diretor, né? Aí o pessoal diz que, como o nome dele é Ferry, que é o ‘SisFerry’”, explicou.
Fernando Ferry é o superintendente do hospital. Ele diz que a unidade tem uma fila de 700 pacientes e todos saíram pelo sistema de regulação. Ele destacou ainda que, dependendo do caso, o paciente pode sair da fila do Sisreg e entrar em uma fila interna.
Ferry afirma que a obrigação dele com a Prefeitura do Rio é oferecer 20% dos leitos de internação. E que ele tem 80% dos leitos para internar quem ele quiser mas que todos os atendimentos são feitos regularmente.
Em fevereiro deste ano, a Prefeitura do Rio de Janeiro assinou um aditivo para aumentar o repasse anual ao Gaffrée e Guinle de R$ 12 milhões para R$ 21 milhões. O prefeito Marcelo Crivella foi quem assinou o documento permitindo o aumento da verba.
Mesmo sendo um hospital federal, é a prefeitura que regula os repasses às unidades de saúde. Desde então, o prefeito passou a ser visto com maior frequência no hospital, mesmo quando ele não está, as pessoas falam no nome dele.
“As pessoas, elas chegam lá aos sábados de manhã, procuram o diretor em nome do prefeito e em nome de alguém da Igreja Universal. E de uma assessora dele, que anda pelos corredores vestida com jaleco branco escrito ‘assistente do diretor’, que também recebe os pedidos que vêm para atendimento”, explicou a funcionária.
A assessora mencionada se chama Evangelista. Na denúncia, ela aparece como a responsável por fazer a fila andar.
“A gente está no atendimento, ela entra lá com as pessoas para serem atendidas. Aí ela chega e fala para o doutor: ‘Ah, eu vim aqui porque o doutor Ferry mandou atender essa pessoa ‘”, denunciou um funcionária.
Reunião no Palácio
Segundo os funcionários, as cirurgias fora da fila foram suspensas depois do encontro que o prefeito teve no Palácio da Cidade com líderes religiosos, no mês de julho. O Ministério Público afirmou que, na época, Marcelo Crivella ofereceu facilidades a pessoas ligadas à Igreja Universal.
“Desde esse dia, ele não tem tido atendimento aos sábados não. Até comecei a rir, porque não vi ninguém esperando por ele”, revelou uma funcionária.
O hospital federal já estava sendo investigado pelo Ministério Público Federal desde o fim de 2016. As primeiras denúncias eram de que a fila do Sisreg era longa e lenta. Agora, as novas revelações de funcionários foram incluídas nas investigações.
O MPF encaminhou ofício pedindo ao superintendente da unidade esclarecimento sobre as marcações de cirurgias e também de consultas.
“Todo mundo está indignado. O residente está indignado porque ele tem a fila de pacientes que ele atende e vem pelo Sisreg. Ele se compromete com esse paciente, aí chega a lista do diretor com mais não sei quantos e o diretor diz que tem que passar na frente. E fala isso, assim, abertamente, como se fosse normal. Isso todo mundo ouve, entendeu? Que o paciente fulano de tal, beltrano de tal tem que ser atendido antes de todo mundo”, destacou.
Implantes de silicone
As denúncias também falam que pessoas que não estão cadastradas na fila do Sisreg conseguem fazer cirurgias estéticas como lipoaspiração e implante de silicone.
“Não é só cirurgia reparadora, é cirurgia de silicone, botar silicone em pessoas. As pessoas têm medo de falar, sabe? De denunciar, só que chegou um momento que a gente cansou. A gente cansa dessas coisas, entendeu? Tem muita gente precisando sem, sabe? E passa na frente. Não existe isso. Só porque é do Crivella? Só por que é dele? E não é dele. Lá é um hospital federal, é um hospital meu, seu, de todos. Ele não pode fazer isso”, contou um funcionário.
O superintendente confirma que, para cirurgias plásticas, os pacientes não são vinculados ao Sisreg.
“Todos os atendimentos feitos no hospital com essa exceção, da cirurgia plástica, são feitos pelo Sisreg. Existe pedido, assim como existe pedido de pastor, existe pedido do aluno, existe pedido do funcionário. É o dia inteiro. Porque a rede de saúde pública está um caos. O Hospital Gaffrée e Guinle ainda está funcionando. O meu facebook pessoal é invadido diariamente por pedidos de pessoas desesperadas que não conseguem atendimento, fazer cirurgia, fazer nada. Esses pedidos vêm para o Gaffrée e Guinle mas eu exijo que eles estejam dentro do Sistema de Regulação”, destacou o superintendente.
O superintendente do hospital falou sobre a funcionária apontada por funcionários como responsável por organizar o esquema.
“A Evangelista é minha assessora direta. Quando existe algum pedido, por exemplo um pedido no meu Facebook. Ela entra em contato com a pessoa, levanta qual é o problema, pede para essa pessoa ir para o sistema de regulação, ser regulada e lá dentro o usuário escolher a unidade que quer ser atendido. Essa pessoa vem para dentro do hospital e quando ela chega aqui dentro ela faz a matrícula dela e ela vai entrar dentro do sistema, na fila que a gente tem interna. E aí ela vai ser atendida”, explicou Ferry.
Perguntado sobre a realização de cirurgias estéticas, o superintendente afirmou que este tipo de operação é feito na unidade e serve para os médicos residentes aprenderem. Eles fazem uma média de 20 cirurgias deste tipo por mês.
Ferry afirmou que, para estes procedimentos, não há regra e não respeita a fila do Sisreg.
“Procuramos a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica que cadastrou o Gaffrée e Guinle dentro dela. Mas para eu me cadastrar eu tenho que cumprir metas. Eles exigem que 15% deste volume de cirurgias sejam estéticas. Por força da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, os residentes têm que operar”, afirmou o superintendente.
Questionado sobre como funciona, ele afirmou que ela segue uma “fila espontânea”: “Elas vêm ao hospital e solicitam a cirurgia plástica. Não há sistema de regulação para isso”.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica afirmou que o serviço de cirurgia plástica do Hospital Gaffrée e Guinle não é credenciado na instituição, mas sim pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), já que é um hospital universitário, e segue as suas normas.
O MEC informou que a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica orienta que a unidade deve oferecer um mínimo de 85% de cirurgias reparadoras e máximo de 15% de cirurgias estritamente estéticas.
Defensoria Pública da União recrimina
O defensor público da União Daniel Macedo afirmou que nenhum procedimento pode ser realizado fora do sistema de regulação e condenou o recebimento de pedidos pelas redes sociais. Ele afirmou que atitudes como essa geram o apadrinhamento, o coleguismo e a apropriação privada da rede pública.
“A rede federal como um todo, assim como a rede estadual, normalmente oferece cirurgias de reconstrução, não são cirurgias plásticas estéticas. A Defensoria compreende a necessidade de formação de profissionais médicos nessa linha de atuação, mas a universidade tem que conciliar o interesse educacional com o interesse público. Se quer oferecer cirurgias estéticas, primeiro que se oferte para o Sisreg e a central estadual de regulação”, destacou Macedo.
Crivella nega
O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, falou negou as acusações.
"Absolutamente, isso é mais uma inverdade. Eu gostaria até que eses funcionários viessem à público para provar denuncias como essa. Vamos em frente. Quero aqui reafirmar categoricamente: isso é uma inverdade absurda. Eu não tenho acesso nenhum aos hospitais federais. Também não tenho acesso nenhum ao sistema de regulação", declarou o prefeito.
A Prefeitura do Rio afirmou que, como gestora do SUS, é responsável por repassar a verba para o Hospital Gaffréé e Guinle para serviços a pacientes encaminhados pelo Sisreg e ou pelo sistema estadual de regulação. A prefeitura confirmou que assinou o aditivo que aumentou o repasse para a unidade e sobre os outros questionamentos, afirmou que não comenta especulações.
Em outra nota, a Prefeitura do Rio de Janeiro diz que é fundamental que o Ministério Público Federal investigue a denúncia, que considera uma "manifestação de preconceito contra o povo evangélico e a religião do prefeito".
“Seria importante divulgar, por exemplo, notícias como a instalação do novo tomógrafo do Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, que dobrará a capacidade de atendimento a exames daquela unidade, beneficiando a população da Zona Oeste. Além disso, no ano passado a atual gestão aplicou 25,2% do Orçamento na saúde contra uma média de 22,9% do governo anterior. Também em 2017, foram feitas mais internações, consultas e cirurgias que no "Ano Olímpico", diz o texto enviado pela assessoria de imprensa.
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