terça-feira, 25 de julho de 2017

Famílias reclamam de negligência e mortes mal explicadas na Maternidade Interlagos, em SP

Entre as causas está um problema nacional: a falta de preparo nos hospitais para voltar a fazer partos normais
 
Tauana Camargo, desempregada e mãe de Davi, de 2 anos: "A médica pediu para segurar a contração, porque a maca não estava pronta" (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)
 
Era noite de 22 de maio, uma segunda-feira, quando Robert dos Santos irrompeu pelo pronto atendimento adentro, na Maternidade Interlagos, em São Paulo. Escoltava sua mulher, Joelma de Souza, de 23 anos, prestes a completar nove meses de gravidez. Haviam se deslocado de ônibus até a maternidade vindos de casa – uma construção de tijolos à vista, em uma viela sem número no bairro do Grajaú, ao sul do município. Robert acompanhou Joelma, com poucos centímetros de dilatação, enquanto a instalavam num quarto. Às 3 horas da madrugada, o bebê começava a sair. “Está nascendo. Olha só a cabecinha”, disse a médica ao pai. Em seguida, ela pediu a Joelma que caminhasse até a sala de parto, para “ajudar a nascer rápido”. Joelma se negou, mas a médica insistiu. Robert viu a mulher ceder, diante da pressão. Começaram a percorrer os cerca de 15 metros pelo centro obstétrico. De repente, Joelma parou. Robert se lembra de dois sons, num único momento. O primeiro foi o grito da mulher: “Está saindo!”. O pai só conseguiu ver o bebê escorregar por entre as pernas da mãe, sem uma mão para ampará-lo. E ouviu o segundo som, oco, breve e, para ele, ensurdecedor, do crânio do filho batendo contra o chão.
 
Disseram que o Davi era normal. Erraram no parto, pela violência, e me deram alta sem orientação"
TAUANA CAMARGO (acima), desempregada e mãe de Davi, de 2 anos. Ela diz não ter recebido a orientação para procurar um neurologista
 
Ao guiar a reportagem até sua casa, Robert coçava os olhos, cansados após uma madrugada em um bico para receber R$ 45. Haviam se passado semanas desde o ocorrido com seu filho. Ele relembra: “Vi tudo. O neném batendo a cabeça, o cordão umbilical pendurado. Fiquei desesperado”. O casal notificou a ouvidoria do hospital, protocolou um Boletim de Ocorrência e fez o pedido do prontuário médico, que só foi entregue a eles com a presença de um advogado da maternidade. “A gente está ali para ser acolhida num momento de dor, não para sofrer com negligência”, afirma Joelma. “A primeira coisa que pensei quando ele caiu foi: ‘Vai sobreviver?’”
 
Aninhado nos braços da mãe, com uma touca de tricô num dia frio, o recém-nascido Anthony Raul tem aparência frágil. Recebeu da família a alcunha de “guerreiro”. Por baixo do gorro, do lado direito da cabeça, 15 pontos costuram o corte linear recente da cirurgia. Com a queda, o bebê sofreu uma fratura craniana. A equipe da Maternidade Interlagos, onde ocorreu o tombo, insistia que o bebê estava bem. A família esperou quatro dias pela transferência da criança ao Hospital do Mandaqui, onde o bebê passou por  uma cirurgia para retirada do coágulo. Lá, a mãe recebeu o primeiro auxílio psicológico. “Na Maternidade Interlagos, não tive apoio nenhum”, afirma.
 
Joelma identifica um abuso: indica-se que a parturiente caminhe para auxiliar na evolução do parto, mas obrigá-la a fazer isso diante de negativas é desconsiderar seu direito de escolha. A maternidade apura o caso. Os médicos do hospital optaram por não ouvir, contrariando um princípio do parto humanizado, causa meritória, mas abraçada de jeito torto por maternidades no país. Na tentativa de abandonar o posto de campeão mundial de cesáreas, o Brasil adotou políticas públicas nesse sentido.
 
Em 2015, o Ministério da Saúde estima que o número de cesáreas caiu pela primeira vez desde 2010, em 1,5%. Dos partos, 45% foram vaginais. O índice ainda é muito baixo para a Organização Mundial da Saúde, que considera razoável a faixa de 85% a 90%. O SUS, com 60%, saiu-se melhor que a rede privada. No município de São Paulo, em 2016, houve índices bons para o país – as 17 maternidades municipais chegaram a 67% e as 19 estaduais a 63,5%. O programa de humanização implementado pela Secretaria de Estado da Saúde paulista é uma iniciativa para melhorar a assistência e elevar a fatia de partos vaginais. O Hospital Maternidade Interlagos faz parte da tentativa. O esforço, porém, exige correção.
 
Especialistas recomendam que, em cada 1.000 nascidos vivos, não passe de um dígito o número de mortes infantis causadas por afecções originadas no período perinatal (da 22a semana de gestação ao sétimo dia de vida do bebê). Essa taxa fica perto de cinco no bairro nobre do Itaim Bibi. Mas na parte da Zona Sul atendida pela Maternidade Interlagos, entre outros hospitais, o indicador avança pelo terreno dos dois dígitos. Em Cidade Dutra, chega a 10,3. Em Parelheiros, 10,8. No Grajaú, vai a 13,6.
 
Os índices foram calculados por ÉPOCA com dados da Fundação Seade – órgão de estatísticas do governo de São Paulo – de 2014. Desde 2005, o Grajaú permanece no topo do pódio sinistro de número de óbitos: foram 53 em 2014. A assistente de saúde Maria Anunciada da Silva, de 47 anos, viu de perto como se fazem os números ruins.
 
 
A cunhada de Maria Anunciada, Lucinei Oliveira, estava grávida e, no final do pré-natal, foi diagnosticada com diabetes e hipertensão. Problemas típicos da gravidez, mas inspiradores de cuidados. Em 27 de janeiro, ela foi internada. Seis dias depois, à tarde, Lucinei reclamou que o bebê pouco se mexia. A equipe de saúde disse que o feto estava bem. “Ela sentia o bebê fraco na barriga”, afirma a cunhada. As informações, segundo a família, eram desencontradas. “Ela me ligou falando que uma hora dariam alta, outra que induziriam ao parto. Depois, começou a tomar insulina”, diz Maria Anunciada. Seis horas depois das reclamações, o bebê morreu na barriga da mãe. No prontuário, há anotações da noite anterior ao óbito, de que o feto já estava pouco ativo e com a oxigenação prejudicada. Quase quatro horas após a morte do bebê, o hospital não havia dado a notícia ao pai. Ele chegou de madrugada e só teve permissão de visitar Lucinei após discutir com funcionários. Maria Anunciada chegou pouco depois do irmão e pressionou o hospital por providências. Sua cunhada carregava o filho morto no ventre.
 
Nesses casos, preconiza-se o aguardo da expulsão natural do feto ou a indução de um parto – não se recomenda cesárea, por risco de hemorragia. O parto não acontecia, por falta de uma sala disponível e de remédio para indução. “Só depois de muita briga arranjaram vaga”, diz Maria Anunciada. A família tinha pressa, compreensível. Esse tipo de situação demanda orientação atenciosa dos profissionais de saúde, mesmo que para convencer a paciente a aguardar um processo doloroso. Após 24 horas com o feto morto no ventre, porém, Lucinei estava exausta. Sentia falta de ar. O parto, afinal, ocorreu. Maria Anunciada acompanhou. Sua cunhada chegou a ver o rosto do filho, mas começou a ter hemorragia. Em horas, morreu.
 
O laudo da morte da mãe e do bebê é vago. Inclui “hemorragia aguda interna” e “anoxia antenatal”, expressões que não revelam os motivos do desfecho. A maternidade nega ter havido negligência. O Boletim de Ocorrência aponta “morte suspeita” e foi encaminhado ao 48o DP, que instaurou inquérito para investigar o caso. “Quero saber a verdade. Tenho certeza de que foi negligência”, afirma Maria Anunciada, após perder a cunhada e o sobrinho.
 
A família de Joelma de Souza, desempregada, mãe de Anthony Raul, de 1 mês, que caiu no chão ao nascer: "A primeira coisa que pensei quando ele caiu foi: ‘Vai sobreviver?'" (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)
Hemorragia, como a que vitimou Lucinei, é uma causa comum de mortalidade materna no país, mas o caso apresenta falhas específicas e recorrentes da Maternidade Interlagos, como a orientação precária à família, mesmo num atendimento prolongado por horas, em que não há a justificativa da urgência extrema. O pesquisador da Fiocruz e especialista em bioética Sergio Rego diz ser imperativo explicar a situação. “É uma grande violência não manter a paciente e seus familiares cientes do que está acontecendo”, afirma. Na origem do problema encontram-se falta de treinamento da equipe e imposição de barreiras que dificultam aosprofissionais de saúde discutir com a administração limitações e erros. Uma pessoa que trabalhou na Maternidade Interlagos por uma década notava distanciamento entre equipe de saúde e direção. Diz que havia defesa da humanização, mas não preparo dos funcionários para isso. “O discurso da diretora era pela humanização, mas havia uma diferença entre o que se falava e o que se fazia. É uma linha de produção de partos”, afirma. “Quando a sala de pré-parto estava cheia, a mulher ficava em uma maca com um colchãozinho de 3 milímetros. Internar alguém com pouca dilatação, colocar um soro com ocitocina, que aumenta a dor, e mandá-la ficar quieta é atendimento humanizado?” Tauana

Camargo, de 27 anos, considera-se exemplo desse tipo de atendimento.
 
A gente está ali para ser acolhida numa hora de dor, não sofrer com negligência"
JOELMA DE SOUZA (acima), desempregada, mãe de Anthony Raul, de 1 mês. O bebê caiu no chão ao nascer
 
Tauana diz não ter recebido orientação sobre a anomalia no filho. Após acompanhar seu bebê na UTI por oito dias, ela saiu do hospital com o filho no colo e um papel de alta nas mãos. A maternidade afirma ter prestado o atendimento adequado, incluindo de neurologista pediátrico. Em casa, Davi passou a ter convulsões, mas a mãe não conhecia os sintomas. “Disseram que o Davi era normal. Erraram desde o parto, pela violência, e depois me deram alta sem orientação.” Após cinco meses peregrinando em consultas, o diagnóstico foi de paralisia cerebral, epilepsia de difícil controle e disfagia (dificuldade em deglutir). Em dois anos de vida, Davi já ficou internado 12 vezes. Com a prática, Tauana faz as vezes de enfermeira. “Ele já teve uma parada cardíaca no meu colo”, diz.
 
 
A cada convulsão, milhares de neurônios de Davi morrem. Sem orientação, Tauana perdeu a chance de amenizar o agravamento do problema. Só muito depois da alta soube que a maternidade conhecia a condição do filho. Manifestou-se ali outra falha grave, e que se repete, da Maternidade Interlagos: a lentidão e  a falta de transparência no fornecimento, a alguns pacientes, dos documentos médicos. Só após sete meses e três solicitações de pedido do prontuário de Davi, Tauana conseguiu uma cópia do documento que era seu por direito. “Disseram que tinham perdido meu prontuário. Tive de fazer um escândalo”, diz Tauana. Encontrou no documento anotações sobre “crise convulsiva” e “introdução ao fenobarbital”, um anticonvulsivo. É raro que asfixia perinatal esteja associada à paralisia cerebral. Tauana fez exames a fim de saber se a situação de Davi tem causa genética. O resultado foi negativo. Ela quer processar o hospital, endossada pelo laudo de uma neurologista da própria maternidade.
 
Maria Anunciada da Silva, assistente de saúde, que perdeu a cunhada e o sobrinho na maternidade: "Só depois de muita briga arranjaram vaga para a minha cunhada"  (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)
 
Entre idas e vindas a hospitais, Tauana conheceu Silvane de Sousa, de 41 anos, moradora do Grajaú. Sua quarta filha, Vitória, também nasceu na Maternidade Interlagos, em 2014. Na gravidez mais recente, fez um parto prematuro, ao completar oito meses. Com o feto na posição invertida e sem disponibilidade de profissionais experientes para lidar com essa situação, o acordo com a maternidade era ela passar por uma cesárea. Na hora marcada, a médica que faria a cirurgia não apareceu. Vitória nasceu numa sala de pré-parto abarrotada de profissionais.“Quando puxaram minha filha, ela nasceu semimorta por dez minutos”, diz Silvane. A criança foi encaminhada à UTI neonatal, onde ficou por dez meses. Sofria de paralisia cerebral, epilepsia e disfagia (de causas não definidas). “Quase ninguém no hospital entendia meu sofrimento. Achavam ruim eu tomar café a mais. Foi humilhante.”
 
Quero saber a verdade. Tenho certeza de que foi negligência"
MARIA ANUNCIADA DA SILVA (acima), assistente de saúde, que perdeu a cunhada e o sobrinho na maternidade. Ela afirma não ter havido assistência nem orientação à família. O laudo é vago ao explicar as duas mortes
 
Silvane entrou com um processo contra a Maternidade Interlagos. Diz que a cesárea não foi feita por falta de sala disponível e não a avisaram que a clavícula esquerda da bebê havia sido quebrada no parto. “Diziam que era normal ficar roxo. Não me falaram a verdade.” Em dois anos e meio, a criança não ficou nem quatro meses em casa. Assim como no caso de Davi, o laudo de alta não tinha detalhes sobre o caso – mesmo após meses de UTI. “Pedi para o neurologista de outro hospital fazer um laudo”, diz. A filha de Silvane, Thais, de 24 anos, é testemunha da mãe no processo. “O médico me disse que a sala de cirurgia estava cheia e por isso não podia fazer a cesárea.” Ela também perdeu uma filha – a neta de Silvane – no mesmo hospital, cerca de dez anos anos antes. “Fizeram uma cesárea e só me deixaram vê-la no terceiro dia. Ela ficou entubada 18 dias com infecção hospitalar, mas até hoje não entendo o que aconteceu.” Segundo o hospital, uma apuração preliminar constatou que havia sala de parto disponível no dia em questão. O caso foi encaminhado à Comissão de Ética Médica e ao Conselho Regional de Medicina. Os três profissionais envolvidos na queixa não atuam mais na unidade.
 
 
 
 
Os maus-tratos que Silvane diz ter sofrido seguem a mesma linha de erros cometidos pela maternidade em outros casos. Não é simples estabelecer uma norma para partos vaginais, mais sujeitos a imprevistos do que cesáreas e demandantes de mais atenção. “É preciso ter métodos de ensino, tocar os profissionais envolvidos para desenvolverem empatia e raciocínio crítico”, afirma Sergio Rego, da Fiocruz.

Diante dos casos apresentados nesta reportagem, a Secretaria de Saúde paulista informou que o pronto-socorro da Maternidade Interlagos fez, nos últimos oito anos, mais de 20 mil partos e 110 mil atendimentos e que o índice de aprovação do hospital, crescente, é de 90,1%. A secretaria explica também que a média mensal de partos na unidade cresceu 25% e no pronto-socorro 40%, nos últimos meses. Além disso, afirma que a equipe do hospital é orientada e capacitada a atuar conforme as diretrizes do parto humanizado e que falhas na assistência são apuradas e as medidas cabíveis aplicadas. Em um período de oito anos, de acordo com a secretaria, mais de 20 mil partos e 110 mil atendimentos foram realizados no pronto-socorro.


Silvane Garcia, desempregada e mãe de Vitória, de 2 anos: “Quando puxaram minha filha, ela nasceu semimorta por dez minutos” (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)


Os abusos nem sempre são escancarados. Além da violência obstétrica, os julgamentos de casos de negligência, imperícia ou imprudência podem ser avaliados no âmbito criminal, por ação na Justiça, e administrativo, por investigação dos Conselhos Regionais de Medicina. Entre os passos na direção correta está a adoção da Caderneta da Gestante, do Ministério da Saúde. Também é preciso integrar equipes transdisciplinares, implementar protocolos para definir os riscos de cada gestação e acolher parturientes em salas PPP (de pré-parto, parto e pós-parto), que permitem que a mulher fique no mesmo ambiente ao longo de todo o procedimento. “Apenas focar no parto vaginal não é mudança real. A gente quer humanizar a assistência. Não quero aumentar a taxa de parto normal com aumento da mortalidade materna e perinatal”, afirma Melania Amorim, ginecologista obstetra e especialista em humanização. Rita Sanchez, obstetra do Hospital Israelita Albert Einstein, faz um alerta similar. “Os eventos adversos não podem aumentar. Não se pode fazer parto normal a qualquer custo.” E o custo, para as famílias ouvidas, foi extremo.

Quase ninguém no hospital entendia meu sofrimento. Foi muita humilhação"
SILVANE GARCIA DE SOUSA (acima), desempregada e mãe de Vitória, de 2 anos. A menina morreu durante a produção desta reportagem

Anthony Raul, o bebê que caiu no chão ao nascer, filho de Joelma e Robert, recupera-se em casa do traumatismo.

Maria Anunciada tenta apoiar o irmão, que perdeu o filho e a mulher, Lucinei. Ele só conseguiu voltar a entrar em casa meses após a tragédia.

Tauana, mãe de Davi, abandonou o emprego e vara madrugadas a conferir se o filho, hoje com 2 anos, respira. Ele recebe 11 medicações por dia.

Vitória, filha de Silvane, morreu durante a produção desta reportagem, aos 2 anos de idade, em 1º de junho, por uma infecção. Uma decisão judicial havia determinado que o Estado fornecesse a ela atendimento domiciliar. A criança não chegou a usufruir do cuidado. Silvane, agora, quer encontrar uma forma de ajudar mães que passam pelo mesmo problema.

Época
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário