A possibilidade de acolher ou rejeitar se perdeu na relação entre pacientes e médicos
* Cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia, J. J. Camargo gosta de ser escolhido.
O atendimento médico massificado retirou dos pacientes qualquer possibilidade de acolher por afeto ou rejeitar por antipatia. Há apenas que seguir a flecha da regulação no SUS ou a relação dos credenciados dos respectivos planos de saúde. E esperar que o tipo que o destino selecionou para recebê-los seja simpático e esteja num bom dia, e que essa sorte se repita nas outras consultas, quando tudo recomeça do zero. E as queixas poderão ser enviadas para a ouvidoria, que ninguém sabe bem o que é nem tem ânimo para descobrir.
O paciente tristemente perdeu o vínculo e trocou o "meu médico" pelo "meu convênio" — ou, ainda mais amplo, pelo "meu hospital". Mas não pensem que apenas os pacientes perderam, os médicos também foram fraudados. Como consequência, muitos deles envelhecerão sem ter provado um dos encantos desta maravilhosa profissão: o privilégio de ser escolhido. E na exposição para a escolha, todo o desafio da sedução e da conquista. E na entrega por empatia, toda a leveza de quem confia sem restrição.
O início da relação com a Clodomira não podia ter sido pior: "Você é o oitavo médico que eu consulto, os outros não acertaram!".
Na verdade, todos tinham acertado, mas, como ela não gostara da notícia, ficou procurando quem a desmentisse. Quando terminei a revisão dos exames, ela ainda conservava a maleta no colo e a língua afiada: "E aí, vais me dar um tratamento ou vou ter que continuar procurando um mais sabido no assunto?"
Ficou claro que não havia margem para negociação, e a resposta tinha de ser proporcional. E foi: "Dona Clodomira, a senhora teve muita sorte, porque descobriu um tumor pequeno e curável com uma cirurgia que eu sei fazer. Portanto, a sua peregrinação acabou aqui, e a senhora não vai mais a lugar nenhum!".
Pronto. As sobrancelhas se afastaram quando as rugas da angústia desapareceram, a maleta escorreu para o pé da cadeira e, com um meio sorriso enviesado, ela olhou para a filha e se rendeu: "Mas um tipo com tanta certeza não pode estar errado!".
Para sorte de ambos, não estava. Ela se curou, eu ganhei uma amiga de uma simplicidade comovente. Nenhuma reconsulta sem algo para agradecer. Podia ser uma rapadura ou um punhado de ervilha, que nunca me animei em lhe contar o quanto odiava.
Na visita de revisão dos 10 anos da cirurgia, um presente inesquecível: uma galinha numa sacola de estopa, que ela jurou que na Estação Rodoviária ainda se debatia, mas que agora tinha o pescoço caído. Sentamos num banco da velha pracinha em frente ao hospital e conversamos muito. Contou da morte do marido e da responsabilidade de cuidar que os filhos não perdessem o rumo.
Quando nos despedimos, uma confissão enternecedora: "Acho que você é o meu melhor amigo".
Maravilhosa sensação de se descobrir médico por inteiro e mais vivo do que nunca. Pena que a pobre galinha continuasse lá, estatelada, com aquela cara de morta.
Lindo exemplo de Competência e Humildade!!!
ResponderExcluir