1) DA ESTRUTURA DO DELITO
O perito que, em processo civil, penal, administrativo, inquérito policial ou juízo arbitral, fizer “afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade”, incide no injusto penal do art. 342 do Código Penal. este artigo contém ainda uma majorante, ou uma causa de aumento de pena, no parágrafo primeiro – consistente de ter-se dado a fato mediante suborno, no âmbito de um processo penal, ou em processo civil em que figure como parte entidade pública – e também, no parágrafo segundo, uma causa de extinção da punibilidade, a retratação, antes da sentença, pelo falsário. Este delito pode ser perpetrado de forma comissiva ou omissiva, onde na primeira o agente faz uma afirmação falsa, apresentando como verdade o que não é, ou nega a verdade. Na forma comissiva – ou reticência – o perito cala ou oculta a verdade. São três, portanto, as modalidades da conduta delituosa neste crime: afirmar o que é falso como verdadeiro, negar uma verdade quando com ela confrontado, e calar-se sobre a verdade em questão.
O bem jurídico protegido que se visa proteger com o tipo penal é a Administração da Justiça[1],[2],[3], espécie do gênero Administração Pública, embora Binding, Maggiore e Antolisei considerassem ser este um delito contra os meios de prova, já tendo sido classificado por Mittermayer um delito contra a fé pública. Embora seja inegável que o atentado criminoso da falsa perícia prejudique sobremaneira a atividade persecutória da verdade exercida pelo Estado-juiz, a moderna dogmática penal considera que a maior atingida é mesmo a Justiça e sua atividade-fim de entregar uma prestação jurisdicional escorreita e bem fundamentada.
Para Bitencourt[4] e Prado[5] deve a verdade aqui ser entendida no seu sentido ideológico e relativo, não em sentido real e absoluto, significando isto que a configuração do delito exige que as afirmações do experto sejam tomadas tendo como referencial o quantum de sabedoria do perito, não a verdade objetiva e real. Isto é, a falsidade, para que haja adequação típica entre a declarada e a aferida, conforme Prado[6], “não reside na dissensão entre a afirmação e a verdade objetiva, mas entre o depoimento e a ciência da testemunha ou perito”.
É sinônimo de dizer que, nesta acepção, primeiro é preciso descobrir o quantum um perito realmente sabe, para só depois comparar-se este cabedal teórico de conhecimentos técnicos com o que foi por ele atestado no laudo pericial que elaborou no seio de um processo judicial. Deste mapeamento epistemológico seria então possível aferir, por confronto “direto” – entre o declarado e o sabido – se a declaração firmada a respeito de um ponto controvertido da prova técnica tem idoneidade suficiente para subsumir-se ao injusto penal do art. 342.
2) DA CONFIGURAÇÃO DO DELITO
Vale dizer, após este confronto conceitual entre o que seguramente sabe e o que comprovadamente infirmou no Laudo, estaria o perito apto a ter cometido o crime de falsa perícia. Aceitando-se a concepção bipartida do delito em que sua definição é um fato típico e antijurídico[7],[8],[9], sendo a culpabilidade um pressuposto da pena, é curial perceber que, com o dolo integrando a conduta, há, para a configuração do delito, que o perito tenha se portado com o propósito de falsear a verdade, segundo a doutrina de Nucci[10], Capez[11], Prado[12] e Bitencourt[13], para quem o nosso Código Penal, neste crime, adotou a teoria subjetivista. No douto ensinamento de Mirabete[14], “não é bastante, para a configuração do delito do art. 342, que haja divórcio entre a realidade concreta e o testemunho. É preciso que a pessoa que presta o depoimento tenha consciência de que opera esta deformidade positiva entre a narração e o fato”.
O erro, conforme Hungria[15], exclui o dolo. Afirma ele que “se o agente é vítima de erro, de uma falsa percepção da realidade, do próprio esquecimento ou de uma deformação inconsciente da lembrança, fica excluído o elemento subjetivo do crime.”
Consuma-se o crime de falsa perícia com a entrega do laudo que traz em seu bojo a falsidade pericial, sendo irrelevante que tenha ou na influído na decisão proferida no processo, tendo a classificação doutrinária de crime próprio, de mão própria, comissivo ou omissivo, de perigo concreto, formal, unissubjetivo e instantâneo, sendo admissível a tentativa. O sujeito passivo imediato do crime é o Estado, mas aquele litigante que veio a ser prejudicado pela falsidade é considerado sujeito ativo mediato, no escólio de Capez[16], que sustenta ainda, não se exigir nenhum fim específico, v.g., o fim de prejudicar outrem. Invocando a jurisprudência, Celso Delmanto[17] anota que embora a simples diferença de diagnósticos não leva à conclusão de ter havido propositada distorção da verdade (TJRJ, RT 584/391), pratica a falsidade o perito que “distorce a verdade com o objetivo preciso de favorecer alguém e influir sobre decisão judicial, enganando a autoridade julgadora, ainda que não atinja o fim desejado (TJSP, RT 507/346; STJ RT 707/367)”.
Rui Stoco[18], em viés garantista, obtempera que “nunca é demais insistir na falibilidade dos exames periciais, a prevenir que se não confundam com falsidades intencionais os erros devidos à própria deficiência científica”, colacionando ainda um excerto do julgado mencionado por Delmanto[19]:
“Para a instauração da ação penal por falsa perícia, mister se faz a existência de indícios do falseamento da verdade sobre dados objetivos colhidos pelo perito, ou mendacidade no seu parecer, não se configurando como tal a simples disparidade dos diagnósticos. (TJRJ – HC – Rel. Nicolau Mary Junior, RT 584/391)”
O E. Tribunal de Justiça de São Paulo nos fornece um lapidar aresto destacando a imprescindibilidade do dolo do agente para a existência do delito:
“FALSA PERÍCIA - Prova suficiente no sentido da autoria e materialidade - Insuficiência, todavia, com relação ao dolo do agente, de forma a não se autorizar o decreto condenatório - Fundamento legal da sentença no inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal - Hipótese, contudo, de que o fato não constituísse infração penal - Manutenção do decreto absolutório, mas com fundamento no inciso VI do artigo 386 do Código de Processo Penal - Provimento do recurso do Ministério Público para alteração do fundamento legal da absolvição. “ (TJSP, Apel. Crim. nº 169.764-3 - São Paulo - 4ª Câmara Criminal – Rel. Des. Christiano Kuntz – j. 01.10.96 - v.u.)
Também o próximo julgado, do mesmo E. Tribunal, espanca qualquer dúvida a respeito da imprescindibilidade de se ter configurado, em sede de investigação ou ação penal por falsa perícia, do elemento subjetivo do tipo, o dolo do agente:
“PROVA CRIMINAL - Perícia - Falsidade - Delito que exige para sua configuração a vontade livre do agente em fazer a falsa afirmação – lnocorrência, na espécie - Constrangimento ilegal - Ordem concedida para trancar a ação penal. JTJ 229/374”
Embora seja de natureza simples a conceituação do crime em estudo, é visível a dificuldade probatória de seus elementos constituintes, a uma, a discrepância entre o real conhecimento do perito acerca da questão em análise e sua manifestação, como expressão de uma inverdade; a duas, o dolo de falsear, independente da razão para tanto. Embora tormentosa a configuração, não se trata de tarefa impossível; veja-se, a propósito, a seguinte ementa:
“FALSA PERÍCIA - O juiz de primeiro grau condenou o denunciado pela prática do crime do artigo 342, § 1º do Código Penal - Recurso contra-arrazoado alegando preliminares e, no mérito, buscando a absolvição - A Procuradoria de Justiça opinou pelo seu improvimento - O Tribunal ad quem negou provimento ao apelo defensivo, visto que provadas tanto a autoria como a materialidade do delito, bem como o dolo com que se houve o agente. (TJSP - Apel. Crim. nº 233.604-3 - Birigüi- 2ª Câmara Criminal Extraordinária – Rel. Des. Marcondes D'Angelo -09.02.00 - v.u.)”
3) DO CONTEXTO MÉDICO PERICIAL – O CORPORATIVISMO
Entrementes, para guiar o estudo da falsa perícia, sobremaneira na área médica, é mister aprofundarmos no contexto em que se dá a perícia médica e as peculiaridades deste munus, para a seguir efetuar o exame do ferramental adjetivo que podem ensejar a propositura de uma ação penal com chances de produzir uma condenação.
Uma boa definição do comportamento ardiloso de que se reveste o perito que opera com a falsidade de índole criminosa é a fornecida pelo eminente Procurador de Justiça Marco Antônio de Barros[20]:
“O perito que falseia, oculta, distorce ou nega a verdade no laudo que subscreve, simplesmente produz o engodo que macula a sua participação no processo, aniquila a confiança que o juízo lhe depositara, prejudica sua própria carreira, e se transforma em criminoso, devendo responder pela prática do crime de falsa perícia (art. 342, §§ 1º e 2º, do CP).”
Trazendo para a seara médica a problemática enfrentada acima encontra um lamentoso eco em Célia Destri[21], que além de registrar a existência de um espírito de corpo na classe médica a prejudicar deliberadamente a apuração da verdade em casos de erro médico, assinala que:
“Na verdade, muitas vezes, por se valerem da confiança dos magistrados, os Peritos manipulam o laudo técnico a seu bel prazer e, infelizmente, não é hábito em nosso país que sejam processados, o que é uma lástima.”
A douta jurista, que vivenciou pessoalmente o erro médico, e continua a fazê-lo profissionalmente como advogada fundadora e Presidente da Associação das Vítimas de Erros Médicos (AVERMES), adverte ainda em sua obra[22]:
“Os erros médicos são cometidos desvairadamente, porém continuam sendo exceção e não regra, mas com a indulgência de alguns juízes, não podem continuar prevalecendo em virtude de laudos periciais que escondem, maquilam, e embotam com termos técnicos, os erros grosseiros de seus colegas, porque médico é amigo sincero de médico e não de magistrado, portanto, o Perito da confiança do juízo jamais será amigo sincero deste.”
A autora aponta um fato que lança uma presunção de suspeição sobre laudos periciais médicos, em decorrência do famoso corporativismo, ou da famosa máfia de branco. O certo é que não é incomum uma ação por erro médico, que contem as evidências do erro para um olhar imparcial e relativamente bem informado no assunto, ser derrubada por um laudo tendencioso e manipulado, na melhor das hipóteses por puro esprit de corps. Agregando valor a este raciocínio é a contribuição do eminente magistrado Miguel Kfouri[23], que traz à colação um emblemático aresto:
“É preciso inovar na questão da produção da prova médica em ações que tratam da responsabilidade dos profissionais da área da saúde (art. 1545 do CC). A culpa, elemento fundamental da responsabilidade civil (Clóvis Bevilácqua, Código Civil Comentado, Francisco Alves, 1943, V/326), passou a ser questionada e tende a sofrer um colapso pela tendência do direito contemporâneo, muito mais realista e próxima dos das vítimas do injusto. O direito do cidadão de obter um atendimento qualificado para a sua saúde deixou de ser discurso constitucional (art. 196 da Constituição da República) e passou a integrar a cartilha do consumidor que, indefeso, reclamava pela mudança do jogo de cartas marcadas que caracterizava, quase sempre, processos movidos contra médicos e hospitais.
O Judiciário precisa adaptar-se rapidamente a uma realidade assustadora, qual seja a de que estatísticas de erros médicos progridem em escala acentuada, pois somente as associações de vítimas de erros médicos do Rio de Janeiro e São Paulo têm 3100 processos na correndo na Justiça (“Quando os médicos erram”, Revista Veja, n.9, 83, mar.1999).
É permitido, dentro desse panorama e da tendência de valorizar a teoria da responsabilidade não apenas pelo fator ilicitude do ato objetivo que seria danoso, mas pelo conceito de dano injusto (interesse alheio violado por infração de norma jurídica), inverter o ônus da prova (art. 6º, VIII, da Lei nº 8.078/90) A Apelante da ação não necessita provar que ficou paraplégica ao procurar remédio para uma dor que parecia de torcicolo.
Os profissionais (pessoas físicas e jurídicas) que assumiram a obrigação de conferir um tratamento justo à paciente é que necessitam provar que não erraram e que a paraplegia era inevitável. A eles incumbe a explicação da conseqüência. A Apelante apresenta apenas a sua condição atual como requisito probatório. Será lícito ou humano exigir-lhe algo mais ? E ainda: seria correto obrigá-la, agora mais deserdada da fortuna material, a pagar médicos para provar que está em cadeira de rodas por erro médico ? O processo, em sendo conduzido no sistema tradicional, passa a ser autoritário, porque reduz as chances da vítima em obter uma cognição adequada.
A pessoa debilitada física e financeiramente perde o equilíbrio das armas do processo justo e isso é lamentável. Interliga-se um princípio ideológico (‘perseguir a verdade real’) com o da igualdade substancial. Para acabar com desigualdades ou suprir inferioridades o Juiz conta com um ‘valioso instrumento corretivo’ e que consiste ‘na possibilidade de adotar ex officio iniciativas relacionadas com a instrução do feito’ (Barbosa Moreira, “A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção do processo”. RePro 37/146, RT),
A hipossuficiência de uma das partes não é um handcap porque ‘o processo não é um jogo em que o mais capaz sai vencedor, mas um instrumento de justiça com o qual se pretende encontra o verdadeiro titular de um direito’ (José Roberto Santos Bedaque, “Garantia da amplitude de produção probatória”, Garantias Constitucionais do Processo Civil, obra coletiva, RT, 1999, p.175).
A decisão combatida rompe barreiras e desmistifica a posição de neutralidade do juiz, sabidamente decadente. Existe máfia branca sim, conforme denuncia Gerson Luiz Castelo Branco (“Aspectos da responsabilidade civil e do dano médico”, RT 733/63). Não interessa manter a tradição que não mais satisfaz e que aumenta o ceticismo popular contra a lei: importa reverter o quadro de inaptidão judiciário.” (TJSP, AgI. nº 99.305-4/6, Rel. Juiz Ênio Santarelli Zuliani – RF 348/317)
Ou seja, este lapidar aresto reconhece plenamente a existência da máfia de branco, e, no que tange à manipulação em prova pericial médica Célia Destri[24] acrescenta:
“Na realidade, o laudo médico pericial, deve merecer uma atenção ímpar por parte dos Magistrados porque, na grande maioria das vezes vem eivados de mentiras, contradições e termos criados pelos peritos que sequer se vêem na literatura médica. Um magistrado pode ser leigo na matéria técnica, mas, jamais poderá permitir que subestimem a sua inteligência, pois tem cultura, experiência e sapiência suficientes para não permitir que determinados peritos zombem de sua ignorância na parte técnica, pelos corredores do fórum, como muitas vezes tive o desprazer de presenciar.”
Sem nos preocuparmos com o aspecto estatístico do problema (taxa de procedência de ações por erro médico sobre o total dessas ações, por evidente fuga ao escopo criminal do thema) é um dado inerente ao problema da perícia médica o corporativismo reinante que, se detectado, é manifestação do animus necandi (o dolo) capaz de incriminar seu autor, à luz do art. 342 do CP.
Mister se faz,então, examinar os meandros da produção da prova pericial na área médica, com suas fincas no processo civil. O ínsito desembargador aposentado e advogado João Batista Lopes[25], obtempera que:
“A adoção do sistema do perito único, nomeado pelo juiz, representa inquestionável evolução, o que não significa, porém, que a prova pericial, na prática do foro, garanta a qualidade da prestação jurisdicional. Com efeito, seja pela dificuldade de se encontrarem profissionais, a um tempo, qualificados e probos, seja pelo custo de sua efetivação, seja pela freqüente morosidade em sua produção, a prova pericial tem representado, muitas vezes, fator de comprometimento da efetividade da jurisdição.”
O eminente jurista, pela prática forense que teve, também vivenciou de perto o problema da improbidade do experto como fator de prejuízo à prestação jurisdicional sem, contudo, atentar para a visão criminológica do problema. Naturalmente que esta é a atribuição precípua do juízo criminal, donde se busca agora, um julgado trazido por Alberto Silva Franco e Rui Stoco[26], que bem tratou do problema:
“Falsa Perícia. Caracterização. Dolo evidente. Perito que deliberadamente omitindo verdades, afirmando inverdades, elabora laudo favorecendo e inocentando os verdadeiros culpados – Recurso provido para condenar o réu à pena de dois anos de reclusão, facultando obtenção de prisão albergue, em primeira instância. (TJSP. Apel. Crim. – Rel. Adalberto Spagnuolo – RJTJSP 46/342-344)”
Em seguida, esses juristas[27] destacam uma parte do acórdão:
“O perito que, em seu laudo, distorce a verdade, com o objetivo preciso de favorecer alguém a influir sobre a decisão judicial, pratica o crime de falsa perícia, pois para a consumação do delito basta que seja falseado o medium cruenda veritatis, surgindo daí o perigo da injustiça da decisão (Hungria, Comentários, IX/78).”
Em outra magistral obra sobre o tema do erro médico Miguel Kfouri[28] chega a recomendar o seguinte aos julgadores, para compensar a tendenciosidade natural dos laudos perícias da área médica: “Em síntese, deverá – conforme caso – sobrepor-se aos laudos periciais, escoimando-os do ranço classista e decidir, até, contra eles”.
Também a nobre Profª. Drª. Elida Séguin[29], entoa o coro dos arautos a opor-se ao disseminado corporativismo, obtemperando que:
“Nosso objetivo não foi esgotar, neste capítulo, o tema iatrogenia, que sozinho merece um tratado, apenas conclamar e meditar sobre o silêncio de médicos que acobertam os erros e omissões de colegas, em nome de um corporativismo absurdo.”
Complementa, então, a douta jurista[30], embasada em sólida experiência profissional:
“A perícia é essencial na solução de litígios envolvendo o Biodireito, sendo lendária a assertiva de que os peritos médicos, por corporativismo, tendem a minimizar a responsabilidade da atuação do colega, procurando sempre enfatizar os riscos inerentes a qualquer procedimento médico e que se trata de uma relação voltada para que se empregue os melhores esforços e não a obrigação de um resultado de sucesso, fugindo ao enfrentamento do problema sob a desculpa de que não seria ético atacar o colega.”
4) DA IATROGENIA - FALÁCIA OU FATO DA VIDA?
Para não ficar apenas com a opinião de juristas a respeito de tema médico, colacionamos o magistério do eminente esculápio, o Prof. Dr. Irany Novah Moraes[31], que assim preleciona:
“A classe somente será respeitada e o médico reconquistará sua posição na sociedade se ele mesmo souber selecionar seus pares, não acobertando os erros dos faltosos e, assim, nivelando por baixo todo o grupo”.
Já o emérito magistrado Miguel Kfouri[32], neste diapasão, aduz que:
“Evidentemente, há natural tendência dos médicos ao exame mais tolerante do ato culposo, atribuído a colega seu. Tal afirmativa não encerra nenhum intuito de reprovação genérica ou acusação infundada. Apenas se quer dizer que o médico, ele próprio convicto de que deseja somente o melhor para o enfermo sob seu cuidado, busca automaticamente explicação (...) para o erro do demandado. Custa-lhe admitir que o colega foi imperito, imprudente, ou negligente. Prefere-se, por isso mesmo, utilizar expressões como intercorrência, acidente, complicação, fatalidade, ou mau resultado.”
As evasivas empregadas por um laudo médico pericial comprometido – com o corporativismo, por exemplo – começam a ser identificadas quando ele, tendenciosamente, ao invés de procurar objetivamente o nexo de causalidade entre a patologia surgida e as condições do paciente nas circunstâncias em que se deu o erro médico, atribuir demasiada ênfase à natureza humana, à falibilidade humana, à natureza não exata da medicina e, sobremaneira, quando busca o curinga da absolvição médica: a iatrogenia como pretensa causa do resultado desfavorável da cirurgia/tratamento.
Esta iatrogenia significa, em apertada síntese, uma reação natural, mas imprevisível, do corpo humano, ao “melhor da medicina”, reação esta devida a fatores intrínsecos do paciente mas inimputáveis aos galenos e que seria responsável pelos desdobramentos ruins. A iatrogenia, portanto – fenômeno do qual, se constatado, decorre a não responsabilização dos médicos – é um grande coringa, um lugar comum da mala praxis médica e, sobretudo, uma ferramenta muito útil aos peritos inescrupulosos.
A respeito da iatrogenia, o ínsito desembargador José Carlos Maldonado[33], especialista em Direito Médico, esclarece:
“Independentemente do enfoque que se dê, certo é que algumas ações médicas que provocam efeitos psicossomáticos indesejáveis, apesar de serem rotuladas como iatrogênicas, escondem, sob o manto da simulação, um dano que poderia ser evitado. (...)
A dificuldade de se comprovar a voluntariedade e/ou a culpabilidade do atuar médico é que tem permitido, como já destacado em obra anterior e aqui enunciado, o emprego da simulação iatrogênica e, conseqüentemente, a exclusão da responsabilidade civil.
Assim, uma vez descoberto esse vício procedimental que apenas busca encobrir o resultado desfavorável ao paciente, reconhece-se a conduta ilícita do médico passível de punição.”
Para se ficar em um exemplo da área oftalmológica vejamos o seguinte: durante ou logo após uma corriqueira cirurgia para extração da catarata, a literatura médica apresenta uma série de complicações que podem advir, sendo a hemorragia expulsiva da coróide (que leva à perda da visão por extravasamento do globo ocular) talvez, o único que se enquadre na definição stricto sensu de iatrogenia incontestavelmente.
Outro fenômeno danoso, por exemplo, o descolamento da retina é uma possibilidade real e concreta, agravada por diversos fatores intrínsecos ao olho a ser submetido à cirurgia; dificilmente poderá ser equiparado à iatrogenia pelo perito de forma irreversível ou inconteste.
Há casos de erros grosseiros que escapam, necessariamente, do fácil enquadramento no lugar comum da iatrogenia, tornando-se mais difícil de serem objetos de distorção de natureza pericial. Tais tipo de erros – de mais fácil configuração – parecem estar acontecendo mais freqüentemente do que se pensa, haja vista o testemunho de um experiente cirurgião norte-americano, Dr. Atul Gawande[34], descrevendo o caso de um cirurgião geral que examinou um homem desesperado de dores abdominais e, sem fazer tomografia computadorizada, presumiu que homem tivesse um cálculo renal; 18 horas depois, a tomografia mostrou um rompimento de aneurisma de aorta e o paciente morreu pouco depois.
Esse médico, então, atestou:
“Como poderia alguém que cometeu um erro dessa magnitude ter permissão para continuar a exercer a medicina ? Chamamos médicos desse tipo de incompetentes, sem ética, negligentes. Queremos vê-los punidos. E desse modo acabamos recorrendo ao sistema público que possuímos para lidar com erros: processos por erro médicos, escândalos na imprensa, suspensões, demissões.”
Embora refira-se à realidade norte-americana, mais ágil na apuração e punição da mala práxis médica, e também por ter referido um caso de erro crasso, não nos olvidemos que há um amplo espectro de erros que tendem a se beneficiar de perícias manipuladas ou até mesmo corrompidas, embora a prova disso seja árdua.
Entretanto, como o perito de processo civil por erro médico também é um médico, nunca é demais atentar para a seguinte lição do Dr. Atul Gawande[35]:
“Existe, contudo, uma verdade na medicina que complica esta visão simplificada de crimes e criminosos: todos os médicos cometem erros terríveis. Consideremos os casos que acabei de descrever. Eu os reuni simplesmente pedindo a cirurgiões respeitados que conheço – cirurgiões das melhores faculdades de medicina – para me relatarem erros que haviam cometido apenas no ano passado. Cada um deles tinha uma história para contar.”
5) UMA VISÃO DA IMPROBIDADE DO PERITO
Uma nova abordagem do problema da falsa perícia parece estar aflorando com a doutrina de eminentes juristas, em que se destaca o insigne membro do Parquet gaúcho, Prof. Dr. Fábio Medina Osório[36] que, indo além do usual, ressalta que a atividade do perito é uma função pública, em tudo e por tudo sujeito aos princípios norteadores desta atividade insculpidos no art. 37, caput, da Constituição Federal.
Sua visão, enfocando a nobreza da função pública da perícia, aborda a visão do desvio de comportamento configurador de improbidade administrativa, no seguinte pensar:
“Além de traduzir exercício de função pública, o laudo traduz ato essencial à função jurisdicional, quando reputado necessário. Uma premissa importante diz respeito à essencialidade do laudo pericial à liberdade intelectual e cognitiva do juiz e, em última instância, à sua independência funcional e ao predicado de imparcialidade. Um juiz auxiliado por perito inidôneo, seja em razão da crônica ineficiência, seja por força de parcialidade, não tem independência para decidir. A responsabilidade do perito é tão alta quanto a do juiz, em razão desta proximidade das respectivas funções. Os princípios e regras que dominam a atividade pericial partem de um substrato axiológico alimentado pela essencialidade do perito à Administração do sistema judicial.”
Uma nova vertente, então, se descortina para o enquadramento legal punitivo do experto inescrupuloso, qual seja, a ação de improbidade administrativa, conforme bem avaliado por este douto Promotor de Justiça.
6) DA PROVA DA FALSIDADE O que se deve então, na elucidação da presença ou não da vontade consciente dirigida a um fim, indispensável para configuração do crime em tela – haja vista que é impossível obter uma radiografia mediúnica da mente do experto ao confeccionar o laudo – é demonstrar, com uso das ferramentas processuais correntes, que assim o perito se houve no desempenho do munus: com dolo.
Se por um lado, não é a medicina ciência exata que a tudo responde de forma perfeitamente previsível, também não é o Direito Penal outra ciência exata, em que se exige a demonstração do dolo conforme a de um teorema matemático. A inexatidão inerente às duas ciências pode, na medicina, abrir espaço para a absolvição do galeno acusado por erro médico e, no direto penal, pode levar o facultativo que assumiu o encargo de funcionar como perito do juízo e falseou propositalmente a verdade para “ajudar” um colega, ser por este delito condenado mesmo sem uma demonstração matemática de que assim ele se portou na confecção do laudo tendencioso.
Agregando elementos à elucidação proposta, Marco Antônio de Barros[37] apregoa, com relação á perícia em processo penal:
“Sem dúvida imperdoável, sob todos os aspectos, a perícia feita em desconformidade com a verdade, haja vista a sua importância para o bom desempenho da persecução penal estatal. O exercício desta função requer obrigatória submissão à verdade.”
A mesma exigência, contudo, se aplica também à lide civil, pois a natureza da jurisdição, que é literalmente a de “dizer o direito”, não se compraz com a diferenciação entre sede penal ou civil da lide; em qualquer caso, a adstrição da perícia à verdade é essencial e inerente à própria natureza desta nobre atividade auxiliar do juízo.
A prova indiciária, por se valer mais da dedução do que da indução, em que pese assim ser intitulada no art. 239 do CPP, no magistério de Adalberto Camargo Aranha[38] tem natureza eminentemente dedutiva, pois, “a prova indiciária, ao reverso do afirmado pela lei processual penal, não é indutiva e sim dedutiva, resultando de um silogismo puro”. Já a presunção, no ensinamento deste jurista, significa “a dedução não evidente que o juiz faz, por si mesmo ou por um preceito legal, baseado num fato certo, por causa da conexão que este fato tem com o fato incerto que se pretende provar”.
No tocante ao pré-falado corporativismo reinante na classe médica, este é um fato notório que independe de prova. A questão que se põe no âmago de um processo criminal por falsa perícia é o quanto este fato notório teve o condão de influenciar na distorção do falsificado laudo, gerador da lide penal. A princípio, o melhor enquadramento deste fato notório é que ele consiste em uma praesumptio hominis, de onde o juiz tira suas conclusões da ordem natural das coisas (ou regras da experiência), distinguindo-se da presunção legal, na qual o legislador é quem formula a ilação a ser tirada do fato provado ou conhecido.
Há que se ter em mente, ainda, que em causas de especialidade médica em que o perito aceitou o encargo para o qual foi nomeado, há a presunção de que o experto seja especialista na matéria (v.g.: oftalmologia, nefrologia, oncologia, etc) o que por si só reduz seu grau de liberdade em termos de divergência da verdade. Não pode um especialista se dar ao luxo de cometer um erro inescusável de má avaliação (contradição com a verdade científica) do caso prático por desconhecimento explícito da matéria, detectável pelo confronto entre a opinio do experto e a literatura médica consagrada da especialidade.
Se tal erro pode perdoado como escusável no médico generalista (v.g., um clínico geral), no especialista ele é inescusável, propiciando assim mais um elemento de configuração da distorção proposital da verdade (científica) em debate. Há que se notar que mesmo em uma especialidade médica, como a oftalmologia, por exemplo, outras sub-especializações são contempladas, como a área de retina e vítreo, a de glaucoma, a ortóptica, etc.
Não sendo o juiz um conhecedor do assunto, é possível que seja enganado com a nomeação de um especialista em uma área que não tenha os conhecimentos necessários na sub-especialização a que se refere o cerne da lide civil, podendo, assim, surgir um laudo distorcido por ausência de conhecimento, do perito, na matéria específica da lide. Naturalmente que há o juiz de se contentar com a especialização ostentada (v.g., o oftalmologista como preparado a lidar com todas as variantes desta área médica), não podendo, na prática, haver a nomeação do profissional ideal para lidar com a questão médica específica dentro da sub-especialidade em que se insere o problema.
A presunção, é que basta a especialização na área afim do problema, não se admitindo, apenas, que um urologista vá periciar um caso de ortopedia, embora ambos sejam médicos e tenham estudado todos os ramos da medicina para obter o diploma.
Atendo-se ao caso de um médico especialista que não domina (mas se omite quanto a este desconhecimento) a sub-área em que se resolve a questão, mais fácil ficará detectar sua falsidade, pois seus erros mais grosseiros serão e, portanto, mais visíveis e inescusáveis. Uma coisa é o paciente com um problema procurar vários especialistas em busca de um diagnóstico acurado de seu mal; outra coisa, e bem diferente, é um perito nomeado pelo juízo, e compromissado, cometer gafes imperdoáveis, com afronta gritante à ciência médica, por contradição direta daquelas com a verdade científica, identificável em laborioso, mas possível, procedimento.
É que ao aceitar seu múnus de auxiliar do juízo na solução de uma lide (nestes termos: dirá se houve ou não o erro médico - de um colega de profissão - alegado no caso trazido à Justiça) não pode o perito se contentar em ser mais uma opinião, emitida mediante pagamento de uma consulta médica. Os honorários do perito em casos médicos, da ordem de 20 a 30 salários mínimos, são bem superiores ao preço de mercado de uma consulta médica justamente por isto: ele não é mais um a opinar, o perito é quem, com seu gabaritado (em tese) arrazoado, formalizado por meio de extenso laudo, vai influir decisivamente no convencimento judicial.
Embora não raro o juiz motive sua decisão per relationem, com base no laudo, esquivando-se com isto de analisar os detalhes decisivos do caso, é de se imaginar o prejuízo à Justiça quando o Laudo é manipulado e o magistrado não se dá conta disso, ou por sobrecarga de trabalho ou por simples inaptidão para lidar com o thema, embora isto nunca venha explicitado na motivação do decisum. É contra esta agressão à Justiça, contudo, que foi tipificado o crime da falsa perícia, no art. 342 do Código Penal.
O dolo de falsear a verdade, exigido para configuração do crime em tela, deverá ser aferido de acordo com as circunstâncias do caso concreto mas, em geral, o forte corporativismo que impregna a atividade médica já é um ponto de partida significativo. Outro parâmetro a ser sopesado é a escancarada afronta à ciência médica, pois uma vez detectado só encontra explicação no propósito de falsear a verdade, dado que é inescusável ao experto nomeado cometer erros grosseiros de avaliação.
Não se confunda aqui tais erros com a diferença de opiniões (v.g., a do perito e a do assistente técnico) sobre ponto em que haja fundada razão para a controvérsia, mas sim uma afirmação tendenciosa (isto é, prenhe de falsidade) do experto, quando pode ser facilmente refutada pela apresentação da literatura médica mais abalizada sobre a questão, ou também quando pode ser facilmente refutada pelos dados constantes no prontuário medico constante dos autos (a verdade fática trazida ao processo).
Embora a divergência entre o laudo oficial e o parecer do assistente técnico nada possa representar, de per si, quando o assistente técnico produziu parecer embasado cientificamente, citando literatura médica competente e o Laudo não, este fato é um plus no caminho da configuração do propósito escuso por parte do perito médico.
Se tiver havido na lide algum episódio de atrito sério entre perito e a parte, por exemplo, a argüição da suspeição do perito, que normalmente pede o afastamento do experto e o não pagamento dos honorários, cumulado com pedido de oficiar-se ao Conselho Profissional pedindo providências disciplinares contra o experto, a configuração do dolo da falsidade, mormente se produzido o laudo a posteriori deste incidente, vai se materializando com maior vigor.
Heleno Fragoso[39] assim definiu:
“Dolo é a consciência e vontade na realização da conduta típica. Compreende um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui a ação típica) e um elemento volitivo (vontade de realizá-la)”.
Damásio de Jesus[40], assentindo, escreve:
“O CP brasileiro adotou a teoria da vontade, pois o art. 18, I, determina: ‘Diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.’ Assim, não basta a representação do resultado; exige vontade de realizar a conduta e de produzir o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo).”
Juridicamente falando, provar é estabelecer a existência da verdade, e as provas são os meios pelos quais se procura estabelecê-la. Para Fernando Tourinho[41] “na verdade, provar significa fazer conhecer a outros uma verdade conhecida por nós. Nós a conhecemos; os outros não”.
Entrementes, pela inexistência de radiografia mental do acusado em que figure o dolo, nítido e claro como o sol de meio dia, o processo penal deve valer-se de instrumentos factíveis de produzir o convencimento judicial da existência da vontade consciente dirigida à confecção de um fim, tudo na conformidade do ordenamento processual. E, neste aspecto, os indícios, meio de prova pelo art. 239 do CPP, exercerão papel fundamental, ou mesmo crucial, pela dificuldade que há em estabelecer a retro-apontada – e necessária – divergência de quadros: Isto é, a discrepância entre o que o perito realmente conhece e o que ele afirmou no laudo, como fruto da sua vontade em beneficiar os colegas de profissão e/ou por motivo de suborno. Na ausência de prova de ter sido o laudo maculado, da forma como foi, por motivo de recebimento de propina, configurando-se assim o crime de concussão, só resta ao prejudicado a prova de motivo ideológico (corporativismo profissional, ranço pessoal, desídia intencional, etc) para a distorção pericial. Pedro Demercian e Jorge Maluly[42] assim comentam:
“No sistema de livre persuasão racional, como é o nosso, o indício será apreciado e valorado da mesma forma que as chamadas provas diretas. Como salienta Julio Fabbrini Mirabete (2000, p.318), no ‘sistema de livre convicção do juiz, encampado pelo Código, a prova indiciária, também chamada circunstancial, tem o mesmo valor das provas diretas, como se atesta na Exposição de Motivos, em que se afirma não haver uma hierarquia de provas por não existir necessariamente maior ou menor prestígio de uma com relação a qualquer outra (item VII). Assim, indícios múltiplos, concatenados e impregnados de elementos positivos de credibilidade são suficientes para dar base a uma decisão condenatória, máxime quando excluem qualquer hipótese favorável ao acusado.”
Fernando Capez[43] também segue o entendimento acerca do valor probatório dos indícios, explicando:
“A prova indiciária é tão válida como qualquer outra – tem tanto valor como as provas diretas –, como se vê na exposição de motivos, que afirma inexistir hierarquia de provas, isto porque, como referido, o Código de Processo Penal adotou o sistema da livre convicção do juiz, desde que tais indícios sejam sérios e fundados.”
Guilherme Nucci[44], acerca do thema, acrescenta:
“Conceito de indício: fornecido pela própria lei, trata-se de circunstância conhecida e provada que, relacionando-se com o fato, autoriza o juiz, por indução, a concluir pela existência de outra circunstância ou de outras. É prova indireta, embora não tenha, por causa disto, menor valia. O único fator – e principal – a ser observado é que o indício, solitário nos autos, não tem força suficiente para levar a uma condenação.”
A partir da doutrina exposta, o que se conclui é que não basta um indício, mas a concatenação de indícios coerentemente ordenados em uma direção possui a força probandi exigida, por ser o raciocínio jurídico utilizado uma ferramenta lógica, com base na indução. A este respeito nos ensina Miguel Reale[45] que a indução envolve, concomitantemente, elementos obtidos dedutivamente, além de trabalhar nesse contexto a intuição, restando, pois, claro que “todo raciocínio até certo ponto implica em uma sucessão de ‘evidências’”. E mais: “o certo é que na indução amplificadora, realizamos sempre uma conquista, a conquista de algo novo, que se refere a objetos reais e a relações entre objetos reais, tendo como ponto de partida a observação dos fatos.”
Reforçando a necessidade de o magistrado raciocinar logicamente para prolatar a sentença, tanto indutiva quanto dedutivamente, Fábio Coelho[46] apud Guilherme Nucci[47] sustenta que:
“A comprovação processual de um acontecimento não significa sua efetiva verificação. É claro que o homem desenvolveu várias técnicas de reprodução de fatos, mas o julgador imparcial, obrigatoriamente ausente no momento da ocorrência, tem da realidade apenas a versão processualmente construída. E, para o direito, interessa apenas esta versão.”
É Guilherme Nucci[48] quem complementa esta exposição, ao perlustrar: “desta forma, ao pronunciar uma sentença, o julgador leva em conta tanto a indução quanto a dedução, a intuição e o silogismo”. Neste ponto, também o pensamento lógico vem a socorrer a persecutio criminis. Assim, quando na peça de denúncia por falsa perícia é narrada uma substancial “sucessão de evidências” (cf. Miguel Reale, op.cit., retro) do dolo em falsear com a verdade (em que o corporativismo, ou esprit de corp, pode entrar coadjuvando uma presunção – juris tantum – de inidoneidade do experto médico), atentaria contra a lógica do razoável seu não acolhimento. Esta conclusão ampara-se na lição de Fábio Coelho[49]:
“O filósofo do direito Luis Recasens Siches tem uma contribuição bastante interessante para a discussão sobre a logicidade do direito. Para ele, quando o raciocínio jurídico empreendido a partir da lógica formal conduz a uma conclusão injusta, irritante, agressiva aos valores prestigiados pelo direito, o intérprete sente que há razões consistentes para afastá-las.”
Este seria precisamente o caso na refutação dos argumentos defensivos do experto acusado, quando lastreados em mitigação do valor probatório dos indícios coligidos na denúncia se, pela perspicácia da argumentação persecutória, lograram ser erigidos ao patamar de uma verdadeira “sucessão de evidências”.
Destarte, a vingarem os argumentos defensivos, a lógica do razoável restaria comprometida, e o direito não pode dela prescindir na tomada de decisão. Acresce em razões, neste sentido, o escólio de Alberto Silva Franco e Rui Stoco[50]:
“Na verdade, embora o indício seja uma prova indireta, tem aptidão para levar o Juiz a uma certeza, mediante o raciocínio sereno e ponderado em um processo onde se sobreleva a lógica, com a qual o direito sempre está interligado”.
É Mirabete[51], contudo, quem colaciona um ponderado julgado do STF:
“Os indícios, dado o livre convencimento do Juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. Entretanto, seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato provado seja lógico e próximo. (JSTF 182/356)”
Neste sentido, Mirabete[52] acrescenta ainda outro lapidar aresto, agora do TJSP:
“A lei processual penal abriga a prova indiciária (art. 239 do CPP). Sua aceitação como meio de prova harmoniza-se com o princípio do livre convencimento do juiz. Embora, para certos autores, a prova indiciária seja incompatível com a exigibilidade de certeza da sentença condenatória, se delas não usarmos grassará, muitas vezes, a impunidade. O que se torna indispensável é ter-se uma cautela maior sempre fundada no conhecimento e prudente critério que é dado ao julgador. (RT 718/394)”
Desenvolvendo seu estudo na linha da elevada tarefa de dizer o direito, ao tratar de suas peculiaridades, o Min. Sálvio de Figueiredo[53] homenageia os grandes juristas e, na esteira, os grandes juízes, assim explicando:
“Couture, com o seu refinado talento de jurista-poeta, afirmava ser a sentença uma ‘obra humana, uma criação da inteligência e da vontade, isto é, uma criatura do espírito do homem’. Talvez por esta razão, precedentemente tenha dito Cardozo, que ‘os grandes juízes, como os poetas, têm sempre um toque de gênio e intuição’.”
Naturalmente que para analisar um caso de prova de falsa perícia médica, em que muitas vezes será necessário adentrar em seara estranha à estritamente judicial, isto é, conceitos na própria área médica deverão ser visitados e aquilatados em face do conjunto probatório, uma engenhosidade intelectual maior do que a mediana é requerida, de modo a não propiciar a violação ao comando constitucional que determina que qualquer lesão a direito deverá ser objeto de apreciação judicial (art. 5º, inc. XXXV), sendo completa esta apreciação somente quando decidida motivadamente, por imposição de outra norma constitucional (a do art. 93, inc. IX). Uma substancial contribuição referente ao convencimento judicial acerca da ocorrência da infração penal é a oriunda do magistério de Marcellus Polastri[54], que assim vaticina:
“Obviamente, conforme bem ressalta Vicente Greco Filho, não se busca a certeza absoluta, a qual, aliás, é sempre impossível, mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado”.
Dispensando a certeza da ciência exata para prolação de sentença condenatória, desde que esta seja devidamente motivada e amparada em suporte probatório convincente, Fernando Almeida Pedroso[55] colaciona diversos julgados que reforçam o seguinte entendimento:
“Por conseguinte, possuem os indícios, não obstante despontem como modalidade indireta de prova, força instrutória bastante para a elucidação de fatos, podendo, inclusive, por si próprios, conduzir à prolação de sentença condenatória.”
7) CONCLUSÃO
Para a configuração da falsa perícia faz-se necessário a presença do animus em bigodear a verdade por parte do experto. Este dolo pode ser inferido do caso concreto quando este fornece o que Miguel Reale definiu acima como uma “sucessão de evidências” convergentes neste sentido, dependendo das nuances retratadas no processo originário cível, onde teria se dado o crime.
Embora não haja fórmulas pré-estabelecidas que levem retilineamente a esta constatação, deve-se lançar mão da força probandi dos indícios, todos coligidos da lide cível, valendo-se, ainda, das presunções hominis regentes, a primeira quanto ao corporativismo médico, e a segunda quanto à notória especialização do perito compromissado a afastar a ocasionalidade de erros grosseiros, assim demonstrados pela frontal agressão a conceitos médicos comprovados ou, ainda, pela acintosa distorção dos fatores intrínsecos á patologia da vítima do erro médico, comprovados pelas informações constantes no prontuário médico ou mesmo em exames complementares que constituem o acervo probatório da lide civil.
De resto, o convencimento judicial buscado pela persecutio criminis não pode afastar-se da natureza lógica da prolação da decisão judicial, devendo tal demonstração acompanhar os paradigmas reitores do pensamento jurídico de natureza condenatória.