sábado, 27 de fevereiro de 2016

Médico com 90% de partos normais no curriculum afirma: “É possível não se corromper e oferecer segurança no parto”

Dr. Braulio Zorzella faz o parto da pequena Sophie Stuchi em 11/05/2015. Foto: Anna Amorim
Dr. Braulio Zorzella faz o parto da pequena Sophie Stuchi em 11/05/2015. Foto: Anna Amorim


Em tempos que os índices de parto normal e cesárea praticados pelos obstetras podem ser consultados pelos pacientes causando a revolta de alguns médicos, Dr. Braulio Zorzella, 38 anos, não tem o que esconder nem do que se envergonhar. Pelo contrário. É dele um índice digno de aplausos: nos últimos 12 meses fez 80 partos – apenas 8 foram cesarianas, ou seja, com a ajuda dele 72 mulheres deram à luz seus filhos por parto normal.
 
Desde que Zorzella terminou a residência em Ginecologia e Obstetrícia em 2005, na Unesp, Universidade Estadual Paulista, sempre teve altos índices de parto normal. Ele lembra de dois professores que o inspiraram, mas mesmo antes de se formar já se considerava um humanista quando o assunto era a forma de nascer. “Depois de formado fui me especializando sozinho, procurando informação e pessoas que pensavam igual a mim”, explica. “Nesta época, de cada dez partos que eu fazia em média sete eram partos normais. Fui melhorando como médico aos poucos, a partir do momento que comecei a acreditar mais na mulher, no corpo, na mente e determinação dela, quando comecei a acreditar que o parto é um evento natural e fisiológico”, conta. Há cinco anos Dr. Zorzella também não faz nenhuma episiotomia – corte no períneo, região entre a vagina e o ânus, para ampliar o canal de parto e “ajudar” o bebê a nascer – prática adotada amplamente no Brasil, apesar de a Organização Mundial da Saúde afirmar ser necessária em apenas 10%  dos partos normais.
 
Conforme ia aumentando o número de atendimentos, passou a entender melhor o trabalho de parto, e melhorar seus índices, conta. “Eu achava que algumas mulheres não dilatavam. E indicava cesárea com parada da dilatação com três centímetros, por exemplo. Hoje já entendo que fiz isso quando elas estavam nos pródromos. A mulher em pródromos está em fase anterior ao trabalho parto. Algumas mulheres ficam muito tempo nessa fase e, se o obstetra não tem essa percepção, acha que ela não está dilatando.”
 
Dr. Bráulio no trabalho de parto de Patrícia Marietti.
Dr. Bráulio (à esquerda) acompanha o trabalho de parto de Patrícia Marietti. Lucas nasceu no dia 01/02/2015
Foto: Sam Golob
 
Sem corte e também sem anestesia
 
Apenas 10% das mulheres que no último ano tiveram parto normal com a ajuda de Zorzella pediram anestesia. O assunto “dor” é tratado durante todo o pré-natal em conversas entre o médico e a paciente, explica. “Pergunto sempre quais são seus medos e como ela encara a dor do parto. Eu sempre estimulo a tentar parir sem analgesia. A dor é relativa, subjetiva. Tem mulher que acha que não vai aguentar e aguenta. Mas a tranquilizo, dizendo que sempre haverá um anestesista disponível se ela precisar e que essa dor é boa, porque vem com uma grande recompensa no final”, conta. A tentativa de evitar a anestesia obedece evidências científicas. “O trabalho de parto pode ficar mais lento com a analgesia, além de aumentar a necessidade de outras intervenções como o uso de ocitocina e extratores fetais como fórceps e vácuo-extrator”, completa.
 
Zorzella sempre atendeu em grandes hospitais e confessa que ainda é visto como um “outsider” nesse mundo onde o normal é fazer uma cesariana agendada. “Fui trabalhar em um hospital que tinha mais de 15 obstetras. Todos cesaristas. Muitos eram 100% cesaristas. Dois deles faziam um parto normal de vez em quando e diziam que não avançavam mais porque não conseguiam nesse sistema atual”, conta. O “sistema”, segundo Zorzella, é regido por planos de saúde que pagam pouco, por uma cultura que valoriza a cesárea e por médicos que, muitas vezes, também acreditam que o a cesárea é a melhor solução para a mulher, o que passa longe da realidade, segundo ele. “Uma cesárea desnecessária aumenta em até 120 vezes o risco de problemas respiratórios no bebê, traz dificuldades relacionadas ao não amadurecimento de outros órgãos como refluxo gastro-esofágico e o intestino preso. Para a mulher aumenta em seis vezes o índice de mortalidade materna, em duas a perda de sangue durante o parto, além de outros problemas habituais comuns a todo pós-operatório”, completa.
 
Dr. Braulio de mãos dadas com Bruna Martins. Elói nasceu apenas 3 horas depois do início do trabalho de parto, na banheira de casa, em 29/11/2014. Foto: Sam Golob
Dr. Braulio de mãos dadas com Bruna Martins. Elói nasceu apenas 3 horas
depois do início do trabalho de parto, na banheira de casa, em 29/11/2014.
 Foto: Sam Golob
 
Dá para fazer parto normal pelo convênio?

É possível fazer parto normal recebendo tão pouco do convênio?, pergunto. “Sim. É possível, mas não a longo prazo. Apenas por ideologia ou sacerdócio”, afirma. Zorzella deixou de atender os planos de saúde depois de muitos anos de baixa remuneração. “Eu mantinha meus costumeiros índices de parto normal, mas me matava de trabalhar e no final do mês não era recompensado financeiramente. Hoje atendo somente particular e faço, em média, sete partos por mês”, conta. Mas, para ele, a baixa remuneração não pode ser desculpa para os índices altíssimos de cesáreas no Brasil – cerca de 84% na rede particular e 52% na rede pública, enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda cerca de 15% de cesarianas como índice aceitável. “Com organização, perseverança, amor e fé no que se faz é possível mudar o sistema, é possível não se corromper e oferecer segurança no parto e satisfação da mulher e do bebê nessa hora”, afirma.
 
Mudanças propostas pela ANS são um “bom começo”, segundo o médico
 
No último dia 6 de julho a ANS, Agência Nacional de Saúde Suplementar, lançou um pacote de medidas para tentar diminuir os números alarmantes de cesáreas no Brasil. Uma dessas medidas, inicialmente, proibia a marcação de partos cirúrgicos sem que a mãe entrasse em trabalho de parto. Chegou-se a afirmar que os planos de saúde não pagariam por esse procedimento se não houvesse evidências de que era necessário. Mas a ANS recuou e a cesárea agendada voltou a ser permitida, desde que a mãe assine um Termo de Consentimento, documento que lista todos os riscos de uma cesárea sem necessidade. (Veja um modelo do Termo de Consentimento de cesárea a pedido aqui).
 
Dr. Zorzella acha que a medida é positiva. “Muito ainda tem que ser feito e aprimorado. Mas já é um começo”, afirma. Sobre o consentimento para fazer cesárea eletiva ele também se mostra favorável. “Já existe um grande ‘mercado das cesáreas': profissionais que se especializaram nisso e mulheres que querem isso. Nesse momento atual, não dá pra proibir esse método. Primeiro porque as mulheres vão se sentir desrespeitadas na sua vontade, ou seja, feridas em sua autonomia, algo que tanto valorizamos no parto humanizado. Em segundo lugar, porque ainda demorará muitos anos para existir uma estrutura física e de pessoal que atenda o parto normal com qualidade. Havendo uma proibição da cesárea eletiva, mulheres vão ser forçadas a ter parto normal sem querer e talvez pior: serão atendidas por profissionais que não tem boa prática com parto normal. Então o que eu acho o ideal nesse momento é que as mulheres tenham acesso ao parto normal humanizado e que aos poucos se extingua o parto tradicional intervencionista. Que as mulheres tenham acesso à cesárea a pedido, feita em trabalho de parto, aos poucos extinguindo-se aquela feita com hora marcada. Com isso, naturalmente, as mulheres e os profissionais vão migrando para o parto humanizado por ser muito mais seguro e com índices de satisfação muito maiores”, afirma.
 
Priscila Suyama sendo assistida em seu parto domiciliar. Pietro nasceu no dia 03/04/2015. Foto: Sam Golob
Priscila Suyama sendo assistida por Dr. Braulio em seu parto domiciliar. Pietro nasceu no dia 03/04/2015.
 Foto: Sam Golob
 
 
Quais são as indicações reais de cesárea?
 
Como foram apenas oito cesarianas em um ano, Dr. Zorzella sabe de cor os motivos pelos quais teve de desistir do parto normal e fazer uma cirurgia em suas pacientes. As razões que levam a uma cesária são a grosso modo, segundo ele, apenas três. Quando depois da dilatação total da mãe nota-se que não há “passagem” para o bebê, a chamada “desproporção céfalo-pélvica”, quando não há oxigênio suficiente para a mãe ou para o bebê – e são os batimentos cardíacos fetais, líquido amniótico ou até a coleta de sangue do couro cabeludo do bebê que indicam a necessidade de uma cesárea ou quando alguma doença compromete o parto normal, como placenta prévia, herpes ativo, alguns miomas e HIV com uma carga viral acima de um índice estabelecido. Apenas.
 
Parto em casa é seguro? É sim, senhor!
 
Além dos hospitais  Samaritano e São Luiz em São Paulo e dos hospitais Santa Lucinda e Modelo, em Sorocaba, Dr. Braulio atende partos domiciliares. “O parto domiciliar planejado, com equipe transdisciplinar disponível e experiente e com logística para transferência para o hospital se necessário é sim muito seguro”, garante. A cesárea não é necessariamente uma opção mais confiável por ser feita sempre dentro de um hospital. “Existem cesáreas péssimas, feitas em péssimas condições e com equipes despreparadas”, afirma. Perguntado se estamos em um momento de mais consciência e entendimento da mulher, é categórico: “As coisas estão mudando agora. Chegamos no limite do absurdo, as mulheres acordaram e estão mudando isso”, completa.
 

Estudante de medicina escreve desabafo depois de assistir a parto violento feito por professora: “Chorei de raiva e frustração no quarto dos internos”

“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também

parto violento


“Menina de 16 anos, grávida pela primeira vez, chega à maternidade, com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação. Não se  queixava de dores fortes, apenas desconforto e certo cansaço. Andamos pelos corredores, do lado de fora da sala do pré-parto, das 23h até meia-noite.
 
Tudo corria bem, eu fazia massagens na sua região lombar quando, de repente, a médica plantonista apareceu no local para atender outra paciente que estava na mesma sala, já que não há pré-parto individual. Ignorando o meu relato de que a paciente estava evoluindo super bem prescreveu ocitocina* (hormônio usado para estimular as contrações) diretamente no soro, sem uso de bomba de infusão, a correr, sem um controle preciso do número de gotas, apesar de a paciente e a mãe dela terem dito que não queriam.
 
“A obstetra aqui sou eu!”, disse.
 
A paciente começou a sentir contrações dolorosas, ficando impossibilitada de caminhar.
 
A obstetra mandou ela se deitar na cama, para novo exame de toque, dizendo “Ah, você está fazendo é fiasco!” e rompeu a bolsa da parturiente. Líquido claro. Os batimentos cardíacos do bebê estavam ótimos, eu captava com o sonar a cada dez minutos, preocupada com tanta ocitocina. Eu tentava argumentar com a obstetra: “Dra, ela estava com contrações efetivas, ritmadas.” Mas ouvi: “Agora são meia-noite e meia. Vamos acabar com isso já!” E repetiu a pérola: “Quem é a obstetra aqui? É tu?”
 
Bom, lá pelas duas da manhã, a paciente já estava com dilatação total, mas o bebê ainda estava alto. E a “Dra” tascou outro soro com ocitocina na moça, sob protestos da paciente, da mãe, que era sua acompanhante, e meus.
 
Na sequência levei uma super bronca porque deixei a paciente beber água.
 
Bom, quando o bebê desceu e estava quase nascendo, a doutora, com gestos rudes, fez a paciente levantar-se do leito e me pediu para levá-la para a sala de parto, a cerca de dez metros dali. Disse para eu me paramentar, porque seria eu que daria assistência àquele parto. Minha colega estagiária, também interna, fazia o acompanhamento dos batimentos cardíacos do bebê que estavam ótimos, em 140 por minuto, e posicionamos a paciente deitada, em litotomia. A cabeça do bebê vinha descendo lentamente, mas descia. Os batimentos do bebê continuavam excelentes. Mas a obstetra, impaciente, gritou para minha colega realizar manobra de Kristeller* (manobra proibida, por ser perigosa para mãe e bebê, que consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê). Ela se negou e eu disse para ela que nós não realizávamos aquilo. A médica brigou conosco, xingou todo mundo e mandou a enfermeira subir na escadinha e fazer. A enfermeira quase montou na paciente, que berrava para que parassem. A menina dizia que doía muito e que não conseguia respirar.
 
“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também.
 
Eu dizia que não tinha necessidade daquilo, que o bebê estava descendo. Foi um pandemônio.  A obstetra se enfureceu, tirou-me de campo e fez episiotomia* (corte entre a vagina e o períneo da mulher, também abolido por muitos médicos humanizados, para “facilitar” a saída do bebê).
 
Minha colega auscultou novamente o bebê: os batimentos cardíacos estavam ótimos, 136 por minuto.
Não contente, a médica pediu para a enfermeira trazer o fórceps. Quando ela colocou, a paciente berrou de dor. E o corte, já enorme e feito contra a vontade de paciente, aumentou ainda mais, como um rasgo.
 
A médica puxou o bebê com o fórceps, desnecessariamente ao meu ver, porque o bebê descia, ainda que lentamente, era só ter paciência já que os batimentos cardíacos mostravam que tudo evoluía bem, não havia sofrimento fetal. Até o dorso do bebê estava à esquerda, como manda o figurino.
 
A médica olhou para mim, ao final e disse: “Você que ficou aí parada, sutura aqui a episiotomia!”. Levei mais de uma hora para suturar aquele corte.
 
Eu e minha colega anotamos tudo no prontuário. A “doutora” não gostou do nosso registro e “passou a limpo o prontuário”, fazendo nova folha de registro! E foi dormir.
 
Para completar ainda recebi bronca por “ter deixado a familiar entrar”. Quando retruquei dizendo que é lei federal, ouvi: “Mas eles não sabem!”
 
A minha paciente chorou e a mãe dela disse: “É assim mesmo, filha”. Eu disse que não, não era, que não precisava ser assim, horrível, enquanto suturava aquele corte profundo, enorme, que ia até quase a nádega da moça.
 
Quando solicitei à enfermagem gelo perineal, para reduzir o edema, elas disseram: “Só se a Dra. prescrever!” Daí me humilhei na frente da obstetra para conseguir que fosse colocada a compressa de gelo. Consegui, mas ouvi que tinha sido bom “para ela ver que pôr filho no mundo não é brincadeira!”
 
Daí eu entendi que ela fez tudo isso porque a moça tinha apenas 16 anos.
 
Também doeu ver que as pessoas não têm consciência de que isso é violência, mesmo depois de alertamos, eu e minha colega.
 
A mãe dela disse, no fim: “Olha, doutoras, eu não vou denunciar a médica porque a gente precisa dos médicos! A gente nunca deve fazer uma coisa dessas com quem cuida da gente!”
 
Foi de partir coração ouvir isso. A minha colega e eu choramos de raiva, de frustração, de tudo, no quarto dos internos. Esse foi o caso mais criminoso e horrível que eu assisti, o parto mais violento.”
*Explicações sobre os termos foram feitas pelo blog, sob supervisão da médica.
 
Raquel*(nome trocado), 30 anos, é estudante de medicina e só permitiu que esse relato fosse publicado no blog se a identidade dela, do hospital e da obstetra fossem mantidas em sigilo. A profissional em questão é professora no curso de medicina e ela, claro, teme represálias.

Estadão

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Maternidade pública de Curitiba é “laboratório de inovação” em parto normal


Fernanda Joly  e seu bebê, Yago, na Maternidade do Bairro Novo | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Fernanda Joly e seu bebê, Yago, na Maternidade do Bairro Novo

No extremo sul de Curitiba, o Sistema Único de Saúde (SUS) se aproxima de uma revolução no parto. Nos últimos dois anos, a Maternidade do Bairro Novo atingiu a taxa de 75% de partos normais, a dez pontos de atingir a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS). O segredo do sucesso não é nenhum aparato tecnológico de ponta; e sim o capital humano. Medidas simples ajudam a “humanizar” o nascimento, com o auxílio das próprias gestantes e de seus acompanhantes.
 

 
É o caso da ocitocina (hormônio que estimula contrações), aplicado em forma de soro somente em casos em que é realmente necessário. No lugar do medicamento, enfermeiras e técnicas orientam a paciente em técnicas de relaxamento. Além de estimular a produção natural do hormônio, ajuda a minimizar a dor.
“O que você precisa no parto é de cuidado, porque o bebê nasce sozinho”, resume Marcelexandra Rabelo (conhecida como Marcele), uma das seis enfermeiras obstétricas do Bairro Novo, hoje coordenadora da equipe.
 
O centro cirúrgico fica na penumbra, com luz reduzida e sons de relaxamento. A mãe é instruída a caminhar, não ficar de jejum e aprende posições que aliviam a dor, como o quatro apoios. O acompanhante é incentivado a participar de todo o processo e até ajuda na hora de fazer massagem, se a mãe quiser.
 
Apenas 11% dos partos normais na Maternidade do Bairro Novo são em litotomia (posição em que a mulher fica deitada de costas, com as pernas em 90º). Os outros 89% são em posições verticalizadas. A episiotomia –corte vaginal para facilitar a passagem do bebê – ficou restrita, no ano passado, a 9% dos partos normais realizados.
O médico só é convocado nos casos em que pode haver algum tipo de complicação clínica. Por lei, enfermeiras podem ser responsáveis pelo parto, desde que tenham formação em obstetrícia.
 
 

Após o nascimento, o bebê é levado imediatamente ao colo da mãe. O contato “pele a pele” dura cerca de uma hora, e neste período há o incentivo à amamentação. O cordão umbilical é cortado entre o 1.º e 3.º minuto de vida, e não imediatamente após o nascimento. Após quatro horas, o primeiro banho, em um balde. Nas 48 horas que se seguem até a alta, o recém-nascido fica no quarto.
Essas medidas não foram inventadas no Bairro Novo. São parte de uma cartilha de “boas práticas para o parto e nascimento”, preconizada pela OMS, e adotada pelo Ministério da Saúde, no Brasil, em especial após a implantação da Rede Cegonha, em 2011.
 
Um dos desafios da equipe é a conscientização. Por regra, o pré-natal pelo SUS é feito na Unidade Básica de Saúde (UBS), e muitas mães desconhecem os princípios da “humanização”. A maternidade faz uma consulta na 37.ª semana de gestação, em que a paciente conhece o local e monta o plano de parto, documento em que lista o que gostaria ou não que ocorra na hora do nascimento.
Entre outubro e novembro do ano passado, as residentes de enfermagem fizeram um mutirão nas UBS do Boqueirão, Pinheirinho, Bairro Novo e Sítio Cercado, bairros atendidos. O objetivo era ter um papo “olho no olho” com as profissionais que acompanham a gestante no pré-natal, explicar “a filosofia voltada ao atendimento humanizado, que na verdade é o parto respeitoso”, explica Marcele.


“Muito bem tratada”

 
Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
 
Fernanda Joly chegou às 2h da madrugada na Maternidade do Novo Mundo. Era o dia 13 de janeiro, que seria coroado com a chegada de Yago, seis horas depois. No tempo em que esperou (já meio impaciente, “queria que ele nascesse logo”), Fernanda ganhou massagem, tomou banho, caminhou. E esperou. Não tinha ideia do que era “parto humanizado”, mas resumiu nas suas palavras: “fui muito bem tratada”. Michael Carvalho, o pai, ficou junto o tempo o todo. E descobriu que, mesmo como acompanhante, podia participar de tudo. E não ficar só aguardando na sala de espera. Atleticano, Yago nasceu com 52 cm e 3,9 kg. É o primeiro filho do casal.
 

Histórico

 
Construído pela Prefeitura de Curitiba em 1996, o Centro Comunitário Bairro Novo era administrado pelo Hospital Evangélico quando passou para as mãos do município, em março de 2013. A Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde (Feaes) assumiu a gestão e contratou as primeiras enfermeiras obstétricas no final de 2013. Os métodos humanizados começaram a ser implantados em 2014. De lá para cá, a média de partos normais é de 75%, e chegou a passar de 80% em maio de 2014 e agosto de 2015.
 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Programas de residência formam médicos para o interior do Brasil

 | Josue Teixeira/Arquivo/ Gazeta do Povo
Josue Teixeira/Arquivo/ Gazeta do Povo


Até 2019, o governo quer atingir 18 mil bolsas de residência, sendo que 89% disso será para titular médicos de família
 
A especialização médica, ou residência, tem buscado formar e fixar no interior do país o maior número possível de médicos de família, aqueles que no passado iam até a casa do paciente, sabiam da história de vida dele e das condições sociais às quais ele estava submetido.
 
O motivo é estratégico: um profissional com esta formação consegue solucionar até 80% das demandas clínicas de uma pessoa doente em uma simples consulta ­geralmente feita em unidades básicas de atendimento, segundo o Ministério da Saúde.
 
“O trabalho deste médico gera uma reação em cadeia que lá na frente desafoga hospitais e dá mais qualidade de vida à população”, diz Hélder Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação, do ministério.
A meta é ousada. Até 2019, o governo quer atingir 18 mil bolsas de residência – sendo que 89% disso será para titular médicos de família ­ e especializar mais 14 mil médicos que já estão no mercado para se tornarem professores da pós.
 
Todo esse esforço prevê alcançar, ao menos, cem municípios que estão sendo contemplados pela expansão de cursos de graduação na área e pelo aumento do número de profissionais ligados ao programa federal Mais Médicos, pontua o secretário.
 
O plano, no entanto, contrasta com o número de bolsas que a pasta colocou em operação entre 2010 e 2015, por exemplo. Dos 6.585 benefícios, 17% atenderam áreas prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS), entre elas, a medicina de família.
 
“Vejo um esforço muito grande do governo pela busca da especialidade, mas acho pouco provável que esta meta seja atingida nesse curto intervalo de tempo”, afirma Thiago Trindade, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade).
 

No meio da floresta

 
Coari, cidade de 83 mil habitantes, no Amazonas, estampa o desafio. Lá, só se chega de barco ou avião. Grande parte dos médicos que trabalham na cidade são “de temporada” – ficam, no máximo, duas semanas por lá tratando doenças como dengue, malária e hepatites em comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas e depois vão embora. Menos Ricardo Santos Faria, 38.
 
Já fixado nesta porção isolada do Brasil, Faria é um das centenas de médicos que estão sendo capacitados para criar programas de residência médica, do governo federal, na área de família. “É o maior desafio que resolvi enfrentar na minha carreira”, diz.
 
Em 2015, durante oito meses, ele enfrentou uma maratona de viagens entre Coari e São Paulo para estudar no Instituto de Ensino e Pesquisa, do Hospital Sírio-Libanês, uma das instituições que firmaram convênio com o Ministério da Saúde para formar médicos com esta especialização.
 
“Obtive no curso competências de liderança e gestão para não só fundar, mas manter e fortalecer a residência médica que será desenvolvida em Coari”, conta.
Faria terá o desafio de unir a prefeitura, a secretaria de saúde local e a universidade ­ a cidade terá, a partir de agosto, um curso de medicina ofertado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) para pôr a residência em operação.
 
A nova graduação, diz Faria, já seguirá os preceitos da medicina de família, com alunos trabalhando desde o primeiro ano de curso em postos de saúde e comunidades rurais.
 
O Sírio atua em três frentes no programa, conta Roberto de Queiroz Padilha, o superintendente do instituto de ensino do hospital. “Estamos formando gestores, professores e residentes. São 1.600 vagas distribuídas entre os três públicos-alvo. Levamos o jeito Sírio de fazer medicina e esse médico capacitado devolve o que aprendeu para a comunidade”, afirma Padilha.
 
Depois de formado, o residente precisa trabalhar por dois anos em projetos de saúde do SUS.
 
O Hospital Alemão Oswaldo Cruz, outro parceiro do governo, aposta na formação de professores de residência. Até 2017, a instituição colocará no mercado 1.200 profissionais com esta titulação. “O curso tem 20 horas presenciais e 60 a distância e tem atraído médicos de todas as partes do país”, afirma.
 
A sociedade brasileira de medicina de família também entrou na linha de produção de novos especialistas em família e comunidade. A entidade abrirá, a partir de março, uma especialização lato sensu, de 360 horas, voltada a formar pelo menos 800 residentes em preceptoria, com habilidade em docência médica.
 

Homens vão menos ao médico que as mulheres e não cuidam tanto da saúde


GAZETA de COSMÓPOLIS



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Os novos desafios da terapia renal em Pernambuco



Pernambuco tem mais de 4,9 mil pessoas em hemodiálise. Precisa ampliar serviços/ Bobby Fabisak/ JC Imagem
Serviços de hemodiálise estão com lotação total e falta abrir mais vagas

Prolongar a permanência de novos doentes renais nas urgências, por falta de vagas nos serviços de terapia renal, é rotina que desde 2013 rende investigação do Ministério Público de Pernambuco. Passados 20 anos da Tragédia da Hemodiálise, esse é um dos desafios atuais. As promotoras da Saúde Helena Capela e Ivana Botelho também apuram o descumprimento de exigências do Ministério da Saúde, como a que limita em 35 o número de pacientes por médico nas sessões, e problemas estruturais de salas de hemodiálise em grandes hospitais. Em audiência realizada há 18 dias, o MPPE cobrou da Secretaria Estadual de Saúde (SES) a reativação da Câmara Técnica de Nefrologia.
 
A presidente local da Sociedade Brasileira de Nefrologia, Maria de Fátima Carvalho, informa que a defasagem na tabela do SUS tem limitado a expansão dos serviços e novos pedidos de credenciamento. “Para cobrir as despesas, o Ministério da Saúde deveria corrigir os valores em 25%”, diz. O governo federal paga menos de R$ 200 pela sessão de paciente sem HIV e um pouco mais quando o doente é soropositivo. Segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde, são mais de 4,9 mil pessoas fazendo hemodiálise em 22 serviços, 18 deles privados.
 
Entre os doentes, estão os que se submetem a transplante e retornam por uma nova falência renal. Caso de Nadilson Gomes, que se livrou da contaminação no Instituto de Doenças Renais (IDR) em 1996 porque tinha se mudado para São Paulo. “Mais de 50 colegas faleceram”, lembra. Agora faz hemodiálise na única clínica de Caruaru, que atende pessoas de toda a região. O serviço estadual, aberto depois da tragédia, foi desativado. Embora o tratamento seja hoje superior, os usuários reclamam dos lanches. “Nos dão pão com margarina, um copo de suco ou café”, contam. Nem sempre recebem em dia os medicamentos especiais da SES e, quando passam mal, esperam até oito horas pela transferência.
 
VIGIlÂNCIA CONSTANTE, DEFENDE ANVISA
 
Jarbas Barbosa defende vigilância constante à qualidade da água e ocorrências inusitadas em saúde /Karina Zambrana – SGEP/MS
Jarbas Barbosa defende vigilância constante à qualidade da água e a ocorrências inusitadas em saúde
 /Karina Zambrana – SGEP/MS
Secretário de Saúde de Pernambuco em 1996 e atual presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o médico Jarbas Barbosa defende vigilância máxima às regras existentes de controle de qualidade da água e de funcionamento das clínicas de hemodiálise. “É preciso assegurar que as normas estão sendo cumpridas e a notificação imediata de qualquer acontecimento inusitado”, afirma.

 Barbosa lembra que no ano da tragédia de Caruaru, o Brasil nem tinha normas de segurança e qualidade em serviços de hemodiálise. “Havia raros relatos de surtos semelhantes em outros países, como no Canadá, mas eram serviços de hemodiálise com uma quantidade pequena de pacientes. Esclarecer a causa da intoxicação serviu para estabelecer padrões de segurança”, observa.
Sobre as determinações mais recentes, que vêm sendo questionadas pelas clínicas de diálise, por causa do custo adicional com pessoal, Jarbas Barbosa lembra que a Anvisa utilizou a melhor evidência disponível e a experiência de outros países. “Essas normas passaram por consulta pública e foram consideradas como as mais adequadas para garantir a segurança dos pacientes. Não há previsão de revisão das mesmas. As Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde devem fiscalizar a implantação”, diz.

 O presidente da Anvisa, que nas duas últimas décadas ajudou o Ministério da Saúde a montar um novo sistema de controle de doenças, lembra que o Brasil conviveu com diversas emergências de saúde pública, de natureza e amplitude distintas nas duas últimas décadas. “De cada uma delas é preciso avaliar cuidadosamente o que poderia ter sido feito de melhor maneira, preparando-se, assim, para uma próxima emergência”, considera. No caso atual de zika vírus e microcefalia, “situação inusitada e de muita gravidade” enfrentada pelo Brasil e de interesse internacional decretado pela Organização Mundial de Saúde, ele afirma que exige mobilização sem precedentes para combate do transmissor do vírus e intensa cooperação entre órgãos científicos de vários países para desenvolvimento de uma vacina.

 A Secretaria Estadual de Saúde alega que se esforça para ampliar a oferta de terapia renal, elevando de dois para para 12 o número de vagas em residência médica de nefrologia. Abriu credenciamento para hemodialise e ofertou em 2015 novos acessos no Recife e em Olinda. Afirma que a qualificação dos serviços é prioridade.
 
 Compesa e Apevisa fazem controle da água 
 
Apenas duas clínicas de hemodiálise de Pernambuco usam água de superfície, em Salgueiro e em Petrolina. Todas as demais são abastecidas por poços artesianos e, nos dois casos, além do controle sanitário, o sistema de filtragem da água, por osmose reversa, evita que toxinas, como as liberadas por cianobactérias, entrem em contato com o sangue do paciente.

 Jaime Brito, gerente-geral da Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa), informa que, mensalmente, as clínicas são visitadas e feitas análises bacteriológicas e de pesquisa de cianobactérias. “Foi uma medida dura, mas com resultado muito bom, não tivemos nenhum problema até hoje, de cianobactéria ou de outra contaminação microbiológica”, afirma.

 Maria Julita Formiga, especialista em Gestão da Qualidade da Companhia de Saneamento de Pernambuco (Compesa), explica que a pesquisa de cianobactérias nos mananciais é feita semanalmente quando são encontradas mais de 20 mil células por mililitro d’água ou a cada mês quando a densidade é 50% menor. “As florações são mais intensas no verão.
 
Todos os 230 mananciais são monitorados e elas são encontradas na Barragem do Carpina, Tapacurá e Jucazinho, mas em níveis aceitáveis”, explica. Testes mais específicos para identificar a presença de toxinas também são feitos quando há um aumento das cianobactérias. Todas as análises são realizadas no próprio laboratório da Compesa. Se o teor ultrapassar o limite permitido, a companhia suspende o uso da água da fonte contaminada enquanto é feita a remoção do material.
 
 

Estudo para saber ação tardia de toxina não prosperou

IMG100216001


Estudo prospectivo, que um grupo de especialistas tentou fazer a partir de 2006 para conhecer os efeitos tardios da intoxicação dos pacientes do Instituto de Doenças Renais de Caruaru, caso conhecido como Tragédia da Hemodiálise, não foi adiante. A bióloga Sandra Azevedo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e primeira a suspeita de cianobactérias, explica que faltou apoio em Pernambuco. O médico Victorino Spinelli, hepatologista que ajudou a elucidar a causa das mortes dos pacientes em 1996, tem interesse em revê-los. “Necropsia feita nos mortos mostravam alterações idênticas no fígado. É importante reavaliar os sobreviventes”, diz.
Na entrevista a seguir, Sandra fala das cianobactérias, como elas se proliferam no momento e como seria importante um estudo a cerca dos sobreviventes.
Bióloga Sandra Azevedo foi a primeira a suspeitar da presença de cianobactérias na água que intoxicou pacientes/ ABC/Divulgação
Bióloga Sandra Azevedo foi a primeira a suspeitar da presença de cianobactérias na água que intoxicou pacientes/ ABC/Divulgação
JC – Por que o estudo prospectivo sobre os sobreviventes, que pretendia fazer em 2006 com o professor Wayne Carmichael (EUA) e pesquisadores pernambucanos, não se concretizou?

SANDRA AZEVEDO – O professor Carmichael se aposentou no fim de 2006 e nosso esforço naquele ano não resultou em nada, pois não conseguimos ter as informações de que precisávamos para saber como estavam os pacientes intoxicados que haviam sobrevivido. Foi muito frustrante. Infelizmente, ficamos devendo ao mundo esse conhecimento. O objetivo era avaliar as consequências após dez anos da exposição a altas doses de microcistinas e como o organismo se recuperou. Só conseguimos saber quem ainda estava vivo e quem tinha falecido. O CNPq chegou a custear viagem e estada minha e do professor Carmichael a Pernambuco.
 
JC – O que suas pesquisas com cianobactérias têm mostrado?

SANDRA – Estamos estudando a associação de cianobactérias com alguns tipos de vírus, o que ainda vai dar muito o que falar. Elas não são microalgas e sim bactérias gram-negativas que fazem fotossíntese.Têm alta capacidade de se adaptar em ambientes com água contaminada. A degradação dos nossos ambientes aquáticos está facilitando muito a vida delas. O Nordeste brasileiro continua sendo um local muito vulnerável para a dominância de cianobactérias. Tem temperaturas altas na água durante todo o ano, água com alta concentração de nutrientes, como nitrogênio e fósforo, especialmente devido à falta de saneamento básico, entrada de esgotos sem nenhum tratamento nos mananciais, além de práticas agrícolas não adequadas. Mudanças climáticas globais estão intensificando períodos extremos de seca ou de chuvas, o que também facilita as cianobactérias. Ao longo desses 20 anos constatamos que a ocorrência de cianobactérias tóxicas passou a ser regra e não exceção na maioria dos mananciais brasileiros, não só no Nordeste.
 
JC – Se a Tragédia da Hemodiálise ocorresse hoje, a tecnologia encurtaria os passos da investigação?

SANDRA – Sim, pois temos novos equipamentos e técnicas que nos permitiriam ter as análises finalizadas de forma muito mais rápida e eficiente. Mas, precisamos considerar que muito do avanço nessa aérea se deu pela tragédia de Caruaru. A própria Organização Mundial de Saúde editou um livro sobre causas e consequências da presença de cianobactérias tóxicas em mananciais de abastecimento, em 1998. O Ministério da Saúde, ainda em 1996, editou uma norma obrigando que todas as clínicas de hemodiálise passassem a fazer a purificação da água por osmose reversa, o que não era obrigatório até então e em 2000, com a revisão da portaria de potabilidade de água para o consumo humano, o ministério incluiu o monitoramento de cianobactérias e limites máximos aceitáveis de cianotoxinas na água para consumo humano, tornando o Brasil o primeiro País a incorporar esses conceitos na forma de lei.
 
JC – A descoberta sobre a ação de cianobactérias na Tragédia da Hemodiálise mudou sua trajetória?

SANDRA – Nunca se tinha demonstrado que essas toxinas eram capazes de provocar morte humana. O caso de Caruaru não deixou dúvidas a respeito. Uma maior atenção passou a ser dada ao tratamento da água e o setor de saúde passou a conhecer nova fonte de contaminantes. Em 1996, graças a ações muito precisas e corretas da Secretaria de Saúde de Pernambuco e da Compesa, foi possível saber que o reservatório de Tabocas tinha número elevado de células de cianobactérias tóxicas e que três tipos de microcistina tinham entrado na corrente sanguínea dos pacientes.
 

Vítimas da tragédia de Caruaru ainda lutam por indenização


Maria José só recebeu uma parte da indenização há menos de quatro anos, depois da morte do filho Daniel / Foto de Bobby Fabisak/ JC Imagem
Maria José só recebeu uma parte da indenização há menos de quatro anos,
 depois da morte do filho Daniel / Foto de Bobby Fabisak/ JC Imagem

O pagamento de indenizações às vitimas da contaminação ocorrida em 1996, no Instituto de Doenças Renais (IDR), em Caruaru, Agreste de Pernambuco, está parado. Aliás, só começou em 2012, 16 anos depois da sentença que responsabilizou os donos da clínica por danos morais em razão do alto teor de cianobactérias presentes na água da diálise e de outros problemas do serviço. Embora os pedidos de execução tenham prioridade na 2ª Vara Cível da cidade, faltam bens a serem penhorados. A clínica não mais existe como pessoa jurídica.
 
“Não conseguimos pagar nem a metade dos valores”, afirma o juiz da 2ª Vara Cível, José Tadeu dos Passos e Silva. Segundo ele, cabe aos advogados das famílias prejudicadas indicar os bens dos proprietários do antigo IDR, o que não tem sido fácil. Quanto mais demora, maior é o tempo para que os condenados se desfaçam de algum patrimônio. A sentença das indenizações foi concedida em resposta à ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual, no mesmo ano da tragédia. Recursos junto a diferentes instâncias do Judiciário atrapalharam seu cumprimento.
 
Em 2012, o juiz só conseguiu liberar pagamentos depois que a advogada Maria da Conceição de França, representante de um grupo de 11 pessoas, descobriu que os donos da clínica tinham outro serviço, em Petrolina (Sertão), e recebiam recursos do SUS. A unidade foi desabilitada pelo governo logo depois. “Consegui bloquear cerca de R$ 1 milhão, que foi rateado entre sobreviventes e familiares”, explica Passos e Silva. Para alguns dos beneficiários, o valor não ultrapassou R$ 4 mil, menos de 10% do esperado (100 salários mínimos para dependentes dos falecidos e 90 para sobreviventes).

“Pobre ganha, mas não leva”, diz a advogada Maria da Conceição de França, que defende agricultores, garis, donas de casa. Mesmo assim, ela não perde as esperanças. No processo criminal, os proprietários do IDR foram absolvidos, só restando a condenação civil, por danos morais.  O JC tentou ouvir os donos do instituto, mas não conseguiu localizá-los.

 O juiz Marupiraja Ramos, autor da condenação em 1996, concluiu o julgamento em tempo recorde, cinco meses, quando avaliou cinco mil páginas. Para ele, o direito à indenização, reconhecido mas não garantido às vítimas, causa frustração e revela os problemas do Judiciário. O Novo Código de Processo Civil, que entra em vigor este ano, pode favorecer medidas cautelares mais ágeis em situações parecidas, explica. Com atualizações, a reparação determinada por Marupiraja chegaria hoje a cerca de R$ 600 mil, calcula. Ao menos 80 famílias das mais de 140 atingidas pela tragédia teriam requerido indenização.

“É falta de humanidade. Minha irmã, Cláudia Regina de Lima, tinha 21 anos em 1996, vomitava sangue e sobreviveu ainda até 2001. Não fomos indenizados e a filha dela, uma criança na época, não teve sequer direito à pensão do INSS”, conta Wilma de Lima, 34. Logo após a morte de Cláudia, ela também teve diagnóstico de insuficiência renal e passou a reviver a tragédia toda semana quando era submetida à hemodiálise. “Graças a Deus consegui meu transplante.”

Maria José da Silva, 76, mãe de Daniel Barbosa, outra vítima já falecida, e Quitério Marcos da Silva, 41, paciente que recentemente fez transplante, chegaram a receber três parcelas do dinheiro, no entanto, insuficientes para cobrir despesas atuais ou compensar as anteriores com deslocamento, alimentação, compra de remédios e exames laboratoriais. As famílias não tiveram assistência psicológica nem de serviço social. Nenhum ambulatório de referência foi aberto para que os sobreviventes pudessem ser acompanhados a longo prazo.


Quitério, sobrevivente da contaminação no IDR, quer o valor integral decretado pela Justiça/ Foto de Bobby Fabisak/ JC Imagem
Quitério, sobrevivente da contaminação no IDR, quer o valor integral decretado pela Justiça
 Foto de Bobby Fabisak/ JC Imagem
Publicado por Verônica Almeida - JC Mais Saúde

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Mulher fala de sofrimento após ter intestino perfurado em parto e faz alerta a médicos: 'Sejam humanos'


Amanda teve o intestino perfurado durante o parto.

No Centro de Terapia Intensiva onde Amanda Andrade, de 23 anos, passou 26 dias, a forte medicação não impedia que percebesse o burburinho entre os enfermeiros. Com o intestino perfurado durante o parto do seu primeiro filho, no Hospital da Luz, em São Paulo, a forte infecção que tomou conta do seu corpo reduzia muito as chances de sobrevivência. Já internada, vez ou outra entreouvia “Coitada!”, entre um suspiro e outro da equipe. Mas, se a dor física foi grande, a mãe lamenta ainda mais ter “perdido” o primeiro mês de vida do pequeno, e principalmente o susto no reencontro com ele - que não a reconheceu de imediato.
 
Quatro meses depois, na fase final de recuperação, Amanda faz um alerta a médicos:

— Médicos, sejam humanos! É preciso se importar mais com as pessoas, porque podia ter morrido sem nunca ter conseguido cuidar do meu filho. Consegui superar e sinto apenas um pouco de dor, mas tiraram de mim o primeiro mês de vida dele. Enquanto estava internada, via, nas fotos, o rosto triste do meu bebê. Não vi o umbigo cair, não pude amamentar. E o pior: ele não me reconheceu quando voltei. Mal conseguia segurá-lo nos braços — lamenta a jovem, que vive com a família em Itapecerica da Serra, no estado de São Paulo.

Segundo Amanda, que trabalha com o marido como comerciante, a equipe médica foi informada sobre dor e desconforto que sentia em diversas situações, mas a examinou quando perdeu a consciência:
— Ainda no hospital, depois de ganhar meu filho, reclamei de dor diversas vezes, pedi ajuda, e disseram que era gases. Deram laxante, mas só piorou — diz Amanda, que precisou voltar ao hospital um dia depois de receber alta, quando a situação se tornou insuportável: — Continuavam achando que era prisão de ventre e só tomaram uma atitude quando apaguei — explicou a mãe, que só acordou quatro dias depois, amarrada, entubada e na cama do CTI já de outro hospital: — Hoje sei que sou um milagre. Ficaram as cicatrizes na barriga, muito grandes, e não quero que isso volte a acontecer com ninguém — afirma.
 
Com os pontos finalmente cicatrizados, já que Amanda teve que voltar para casa com o corte aberto por conta da forte infecção, a mãe comemora poder cuidar do filho sozinha e retomar, aos poucos à vida normal.
 
— Quando voltei para casa, fiquei um pouco triste por ter acontecido isso tudo e imaginando como seria se estivesse aqui desde o começo, porque planejei amamentar desde o começo, queria ter feito muitas coisas por ele, mas agora é hora de pensar no futuro e de deixar o meu recado para outras pessoas — diz a jovem, que acionou um advogado e se prepara para processar o hospital onde o acidente aconteceu.

Extra - Carla Nascimento



 
 
 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Erros de recém-formados em casos médicos básicos preocupam Cremesp

Entre 60% e 78% dos inscritos em prova erraram diagnósticos como asma.
Conselheiro atribui problema a grade curricular e excesso de faculdades.



O exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) de 2015, que registrou 48,13% de reprovação entre os participantes, revelou elevado nível de desconhecimento dos recém-formados em medicina em procedimentos considerados básicos.
 
A prova com 120 questões de múltipla escolha obteve índices de erro entre 60% e 78% em problemas como insuficiência renal crônica, hipertensão arterial e asma brônquica.
 
Os equívocos estão diretamente associados a falhas nas práticas de ensino e ao excesso de faculdades de medicina abertas no Estado, afirma o conselheiro corregedor Eduardo Luiz Bin, de Ribeirão Preto (SP) - cidade em que duas das três faculdades com alunos participantes na prova - USP e Unaerp - tiveram média de acertos igual ou acima de 60%.
 
"Isso mostra que muitas das escolas ainda não estão com uma grade curricular à altura para formar esses alunos, porque é o básico da medicina", afirma Bin.

Erros básicos

 O exame aplicado entre 2.726 alunos egressos de 30 cursos de medicina do Estado consistiu de 120 questões de múltipla escolha sobre clínica médica, clínica cirúrgica, pediatria, ginecologia, obstetrícia, saúde pública, saúde mental, bioética e ciências básicas.
 
Nos testes, 78% dos médicos não acertaram quando questionados sobre a manifestação laboratorial para insuficiência renal crônica. Também se destacaram números dos que não souberam identificar características de esquizofrenia - 73% -, transtorno bipolar - 72% -, asma brônquica em crianças - 64% - e tratamento do infarto agudo do miocárdio - 63%.
 
 
Apesar de ressaltar que os números são melhores do que nas provas anteriores do Cremesp, o conselheiro corregedor em Ribeirão aponta que os dados são preocupantes, sobretudo porque dizem respeito a procedimentos rotineiros dos profissionais.
 
Segundo Luiz Bin, o desempenho dos alunos nessas questões está diretamente ligado à qualidade do aprendizado nas faculdades, cada vez mais numerosas no Estado diante de um número insuficiente de professores capacitados para a didática.
 
"Não existe a formação do professor da universidade, porque o doutorando, o mestrando demora tempo. Para se formar um professor de faculdade de medicina vai-se aí em torno de cinco a dez anos e as faculdades estão sendo abertas quase que mensalmente", critica.
 
Como consequência, os estudantes acabam aprendendo com profissionais que não foram preparados para a didática, diz Bin.
 
"Os alunos aprendem com médicos da região onde é aberta a faculdade com um pouquinho mais de segurança, mas que não têm a capacidade didática de passar os conhecimentos deles. Isso vai ao encontro desse nível de erros que a gente está vendo aqui, porque são alunos que foram orientados por professores que não são professores na verdade."
 
48% de reprovação

Quase a metade dos médicos recém-formados que prestaram o exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) foi reprovada no ano passado.
 
Além de servir de parâmetro para a qualidade da formação dos estudantes, a participação na prova, realizada há 11 anos, tem se tornado requisito para inscrição em programas de residência médica e em concursos para atuação em hospitais da rede pública em São Paulo.
 
Segundo dados divulgados na quarta-feira (17) pelo Cremesp, 48,13% dos 2.726 profissionais que se formaram - ou 1.312 - acertaram menos de 60% das questões da prova, índice considerado mínimo para aprovação pela entidade.
 
O número de reprovações foi mais acentuado entre egressos de universidades particulares - 58% - e foi constatado também entre 26,4% dos formados em instituições públicas.
 
O índice geral de reprovação é inferior em relação a exames anteriores, como o de 2015, em 55%.

Do G1 Ribeirão e Franca

Exame do Cremesp reprova 55% dos alunos recém-formados em medicina

Índice é menor do que o do ano anterior, de 59,2%.
Reprovação não impede obtenção do diploma e exercício da profissão.


Números mostram alto índice de reprovação no Exame do Cremesp (Foto: Cauê Fabiano/G1)
Números mostram alto índice de reprovação no exame do Cremesp
(Foto: Cauê Fabiano/G1)

Dos 2.891 recém-formados em medicina que fizeram o exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), 55% do total (1.589 estudantes) foram reprovados. O índice é menor do que o registrado no ano passado, quando 59,2% não acertaram o mínimo exigido (60% das questões) e foram reprovados. Mas foi maior do que em 2013 - índice de 54,2% de reprovados. 
Todo estudante que se formou em medicina e quer se inscrever no conselho paulista precisa fazer o exame para poder tirar o registro do CRM (Conselho Regional de Medicina) e atuar como médico no estado. Apesar de ser um exame obrigatório, mesmo quem for reprovado também pode obter o registro.
 
Isso porque, por força de lei, o conselho não pode condicionar o registro médico ao resultado de uma prova. Para tanto, seria preciso uma lei federal, como acontece com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
 
O exame do Cremesp de 2014, realizado em outubro passado, apontou também que a reprovação foi maior entre os formados em instituições de ensino privadas (65,1%). Entre os alunos de escolas públicas, o índice foi de 33%.
 
Com abstenção de apenas 0,9%, o número de participantes em 2014 foi o maior desde que o exame começou a ser aplicado, há dez anos.
 
Erro em questões consideradas fáceis

 Segundo critérios da Fundação Carlos Chagas (FCC), que aplicou o exame, 33% das questões foram consideradas "fáceis", 4,6% foram "muito fáceis" e 32,4%, "médias". As demais questões (29,6% do total) eram "difíceis".
 
O Cremesp afirma que os recém-formados erraram questões básicas sobre atendimento inicial de vítima de acidente automobilístico, atentado de vítima de ferimento por arma branca, pneumonia, pancreatite aguda e pedra na vesícula.
 
Por exemplo, dois a cada três candidatos erraram o diagnóstico de uma lactante de seis semanas com tosse leve há dez dias, sem febre e com a respiração acelerada. Este mesmo percentual não soube avaliar o risco operatório para uma mulher com pedra na vesícula, diabética, hipertensiva e com histórico de angina (estreitamento de artérias que provoca dor no peito) durante esforços moderados.
 
Do G1, em São Paulo - Cauê Fabiano
 
 


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Médico de Florianópolis é preso após investigação de crime sexual contra pelo menos 14 pacientes

Justiça acata denúncia do Ministério Público com base em dois inquéritos da Polícia Civil

Omar César Ferreira de Castro ficará detido na 6ª Delegacia de Polícia Civil e,
 depois, segue para o presídio masculino de Florianópolis.
Foto: Betina Humeres / Agencia RBS

 
O médico Omar César Ferreira de Castro, 66 anos, foi preso temporariamente e teve três CPUs dos computadores de seu consultório no Centro de Florianópolis apreendidas na manhã desta terça-feira, 16. O nutrólogo é acusado pela Polícia Civil de ter cometido crime sexual contra pelo menos 14 pacientes. As vítimas confirmam estupro em boletins de ocorrência registrados na 6ª Delegacia de Polícia, onde foram instaurados dois inquéritos policiais e para onde Castro foi levado. Os atos teriam acontecido nos últimos três anos dentro do consultório do nutrólogo — localizado no topo do Ceisa Center, na Avenida Prefeito Osmar Cunha.
 
A ação teve início às 8h21min, dez minutos depois da chegada do médico ao consultório. Três recepcionistas responderam a perguntas dos policiais. Quarenta minutos depois, Castro deixou o local acompanhado pelos policiais. Estava algemado, protegia os punhos com uma toalha branca e chorava. À reportagem do DC, ele disse que não tinha conseguido falar com seu advogado nem sabia do que estava sendo acusado. O mandado de prisão, busca e apreensão cumprido por seis policiais também aconteceu na residência dele. 
 
Ainda em janeiro, o titular da Delegacia de Proteção à Mulher, Criança e Idoso da Capital, Ricardo Lemos Thomé, encaminhou a investigação à 3ª Vara Criminal do Fórum de Florianópolis para ser examinada pelo promotor de justiça Fernando Linhares da Silva Júnior. Desde 2 de fevereiro os pedidos de prisão temporária e concessão de mandado de busca e apreensão aguardavam expedição dos mandados pelo juiz Rafael Sandi da 3ª Vara Criminal da Comarca da Capital. 
— Eu já havia enviado o inquérito ao Ministério Público no ano passado, mas decidi reabrir na primeira semana deste ano porque uma das vítimas contou ter sido penetrada pelo médico, dentro do consultório, e levou adiante a representação. 
 
Agora, diz o delegado, todos os casos, inclusive os que não teriam tido "conjunção carnal", estão reunidos nos inquéritos, que detalham o depoimento de oito vítimas. O policial se diz convencido da veracidade dos relatos.
 
— Existe muita coerência nos históricos trazidos pelas 14 mulheres ouvidas, que até então não se conheciam, e sobre os detalhes de como o médico abusava delas — afirma Thomé.
 
Além disso, diz, a conduta adotada — de mãos nas costas, massagem, carícias, toques sexuais, beijos forçados, constrangimento e uso da força — é comum nos relatos. Eventuais acareações e outros testemunhos devem auxiliar na conclusão das investigações, conforme consta na representação do inquérito policial.
 
Conduta não mudou mesmo depois de ser chamado na DP
Para o delegado Ricardo Thomé, as vítimas sofrem um "covarde ataque do médico" por encontrarem-se fragilizadas em sua autoestima – buscam emagrecimento – e não saberem ou não poderem distinguir exame clínico de ataque com conotação e objetivo sexual. Ele também cita no inquérito o constrangimento e a violência moral, o perigo iminente e a concretização de abuso e uso de força, como está detalhado no depoimento de uma das vítimas, na época com 18 anos, prestado em 17 de março de 2013.
 
O policial entende que o médico preparou o consultório como um terreno seguro para satisfazer seus desejos sexuais. Ele comprova o raciocínio a partir dos depoimentos, que falam da distribuição das salas, do distanciamento entre a recepção e o local de atendimento, e do volume alto do som ambiente.
 
O denunciado já havia sido chamado na delegacia, onde negou as acusações. O delegado observa que mesmo depois desse comparecimento, no segundo semestre do ano passado, o médico não mudou a conduta com relação a essa prática. No último dia 28 de janeiro, uma vítima entrou com representação contra Omar César Ferreira de Castro por um fato ocorrido naquela manhã.
 
Ao atendê-la, o médico teria acariciado seu ombro, tentado beijá-la e feito elogios que a deixaram constrangida. "Acredito que se tivesse gritado pedindo ajuda ninguém teria ouvido, uma vez que o som ambiente estava muito alto e que o consultório ficava afastado da sala de espera e da recepção", relatou a mulher no depoimento. 
 
A delegada Patrícia Maria Zimmermann d'Ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção da Criança, Adolescente, Mulher e Idoso na Grande Florianópolis, prevê que novos casos devem ser registrados após a prisão temporária.
 
— Acreditamos que com a visibilidade do fato outras vítimas vão se sentir estimuladas a denunciar.
De acordo com o Código Penal, "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso" configura crime de estupro. A pena varia de seis a 10 anos de prisão. O estupro é considerado crime hediondo desde 2013, após decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mesmo sem morte ou grave lesão da vítima.  
 
Vítimas relatam carícias, beijos e até penetração
 
Desde novembro do ano passado a reportagem acompanha o caso. Mas para não dificultar a conclusão do trabalho policial, foi aguardado pelo desfecho judicial. Em janeiro, duas mulheres que procuraram a polícia para denunciar a conduta do nutrólogo conversaram com a equipe. Um dos encontros ocorreu na manhã de 21 de janeiro, na casa de uma delas, em um bairro de Florianópolis. Apesar de as entrevistadas falarem abertamente sobre o ocorrido, estão identificadas por pseudônimos. As mulheres também aceitaram ser fotografadas, mas as imagens preservam as identidades.
 
Íris*, 30 anos, é servidora pública e conta que fazia tratamento para emagrecer na clínica do nutrólogo — especialidade médica que estuda, pesquisa e avalia os impactos da ingestão dos nutrientes no organismo, conforme a Associação Brasileira de Nutrologia.
 
Até janeiro de 2015, ela não havia tido problemas com o profissional. Naquele começo de ano, foi até o consultório acompanhada de uma amiga, que ficou aguardando do lado de fora. A paciente relata que, horas antes, havia tomado um anestésico por causa de uma micropigmentação nas sobrancelhas.
 
— Como estava um pouco sonolenta quando cheguei ao consultório, conversei com o médico que queria apenas me pesar e ir embora descansar. Mas aí ele começou a conversar comigo, dizer que estava tudo bem e me deu um copo de água. Depois disso, só lembro de mim numa maca com as calças abaixadas, tentando empurrá-lo, e ele com uma camisinha nas mãos — relembra. 
 
A paciente diz que, depois de sair do consultório, dormiu por 12 horas. Ao acordar, lembrou-se de flashes da cena. Ficou horrorizada com o que havia acontecido e decidiu voltar à clínica para confrontar o médico. Isso ocorreu três dias depois. Porém, precaveu-se: antes de entrar, acionou o gravador do celular guardado na bolsa. Mais tarde, explica, o áudio foi entregue por ela à Polícia Civil e anexado ao boletim de ocorrência. 
 
— Ao chegar, disse a ele que parecia ter acontecido algo estranho. Foi quando ele me disse: "tu não lembra? A gente transou duas vezes e foi bem gostoso" — diz.
 
A paciente lamenta ter passado por uma situação tão degradante. Não queria acreditar no que estava ouvindo e sua primeira reação foi de negar o fato ao médico. A segunda, ir embora às pressas do consultório. Agora, um ano depois, o sentimento mudou:
 
— Às vezes me desespero, pois parece que a investigação se arrasta e outras mulheres podem estar sendo vítimas também — disse a funcionária pública, formada em Direito.
 
Depois do ocorrido, Íris foi à Maternidade Carlos Corrêa, na Capital. No local, foi orientada a realizar exame de corpo de delito e a tomar medicamentos indicados em caso de violência sexual, pelo período de um mês — entre eles, o antirretroviral AZT, usado para o tratamento da Aids. Mas reclama de não ter feito um exame toxicológico, que ajudaria a identificar a presença de substâncias anestésicas na corrente sanguínea.
 
A veterinária Francisca*, 41, se apresenta como outra vítima. Na primeira consulta, também em janeiro do ano passado, diz já ter estranhado o teor da conversa do profissional. 
 
— Ele me disse que usava camisinha em todas as suas relações sexuais e me perguntou se eu fazia o mesmo. Achei aquilo estranho: por que um nutrólogo me perguntaria isso?
 
Mas foi na hora de ser examinada pelo profissional que vivenciou o mais surpreendente. 
 
— Quando me levantei, ele pegou na minha mão e disse que me transformaria em uma miss. Aí ele foi para trás de mim, começou a apalpar as minhas costas e a me encoxar (sic). Ele queria encostar o pênis nas minhas nádegas, mas fui me afastando — diz.
 
Na hora de ir embora, Francisca diz que foi novamente constrangida. Desta vez, por um beijo de língua do médico.
 
Abalada pelo que passou, a veterinária contou com um apoio muito importante, do pai. Foi ele o maior incentivador para que levasse o caso adiante. O encorajamento paterno foi fundamental para que descobrisse que outras mulheres passavam pela mesma humilhação.
 
— Ao ir à DP fazer o BO, soube que havia outros cinco casos registrados contra o mesmo médico — conta Francisca.
 
Mas, aí, acredita, houve um problema que, conforme ela, não deveria acontecer em uma delegacia de polícia que trata de crimes contra a dignidade sexual das pessoas:
 
— Passaram-se seis meses e não fui chamada para representar, isso fez com que meu o registro perdesse a validade. Hoje eu e outras mulheres somos testemunhas do caso de estupro da Íris — explica Francisca, que se reúne periodicamente com outras vítimas do médico.
 
Acusado nega e defesa considera informações frágeis
 
A reportagem entrou em contato com a defesa do médico Omar César Ferreira de Castro numa tarde de quinta-feira, 28 de janeiro. Por telefone, o advogado Alceu Oliveira Pinto Júnior confirmou que representa o nutrólogo em um inquérito instaurado na 6ª Delegacia de Polícia Civil. Ele defende o profissional contra uma acusação de estupro e desconhece os outros boletins de ocorrência registrados.
 
— Não tenho tantas informações. Só acompanhei um depoimento no segundo semestre do ano passado. Mas ele (o médico) nega todas as circunstâncias. As informações levantadas são frágeis. É a palavra dela (vítima), que temo que possa ter mais peso nesse caso, contra a dele (médico).
 
Conforme a defesa, Castro ficou sabendo da acusação somente na delegacia, onde negou tudo. Ainda segundo o advogado, o áudio com a suposta confissão apresentado pela vítima não tem qualidade para servir como prova.
 
— É a prova do processo, mas até onde eu sei precisou ir à perícia devido à baixa qualidade do arquivo. O médico relata uma consulta normal nesse dia. Eles discutiram questões relativas à cobrança de consulta e plano de saúde. Quando soube da acusação, foi atrás da ficha dela para saber se havia algo de diferente, mas não viu nada além do acompanhamento, já que ela era paciente de anos — diz o advogado.
 
No inquérito policial, a transcrição do áudio mencionado pela defesa é apresentada como uma nova prova do crime cometido pelo médico. Quando a vítima pergunta se eles teriam feito sexo, ele responde: ¿Fez¿. Após a surpresa da mulher, ele complementa dizendo ¿e tava bom¿. A investigação também aponta, com base na gravação, que o nutrólogo teria oferecido à vítima ajuda para custear um implante de silicone.
 
Conselho Regional de Medicina abre sindicância
 
O Conselho Regional de Medicina determinou a abertura de uma sindicância para apurar as denúncias contra o médico Omar César Ferreira de Castro. De acordo com a assessoria de imprensa do CRM, existem processos contra o nutrólogo, porém, relacionados à conduta médica. Mas nenhum sobre prática sexual, como os investigados pela polícia. 
 
Reunidos na manhã desta terça-feira, representantes do departamento jurídico e da diretoria do CRM não quiseram falar sobre os motivos dos processos em andamento. Explicaram que se trata de uma conduta ética, mas reconheceram a gravidade das denúncias que chegaram à Polícia Civil. Como os abusos teriam ocorrido dentro do consultório, momento em que o médico exercia a atividade profissional, o assunto será apurado pela corregedoria do CRM. A pena pode variar de uma simples advertência à cassação do registro profissional.
 
Serviço
Denúncias podem ser feitas presencialmente na 6ª Delegacia de Polícia Civil, no bairro Agronômica, em Florianópolis. O sigilo é respeitado. O telefone é o (48) 3665-6528. 
 *Os nomes das vítimas foram alterados para preservar a identidade.