Advogados das farmacêuticas conseguem prorrogar patentes e ampliar lucro com medicamentos
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Ou visite: redlam.org ou www.deolhonaspatentes.org
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Grupos da sociedade civil do Brasil e da Argentina lançaram em Genebra, Suíça, no início de março, em um evento paralelo à 31ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), a campanha internacional “Corporações farmacêuticas: larguem o caso”. Foi apresentada uma petição pública disponível em três idiomas (português, espanhol e inglês) que reivindica que as principais entidades representantes da indústria farmacêutica sul-americana – a Interfarma, no Brasil, e a Caeme, na Argentina – suspendam as inúmeras ações judiciais em curso que visam desmontar medidas protetivas à saúde nos dois países.
De acordo com Marcela Vieira, uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e da Associação Brasileira interdisciplinar de Aids (Abia), muitos dos objetivos globais de saúde promovidos pela ONU, como o fim da aids como epidemia até 2030, só poderão ser atingidos quando barreiras sistêmicas ao acesso a medicamentos forem devidamente enfrentadas. Segundo ela, vinte anos depois de a ciência provar que um tratamento poderia acabar com as mortes por aids, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existam ainda 22 milhões de pessoas sem acesso a ele, das quais um milhão morre a cada ano.
No centro do problema estão as barreiras impostas pela indústria farmacêutica para o acesso aos medicamentos, como as leis de patentes. “O sistema de patentes está falhando com as pessoas e favorece os interesses das corporações acima dos interesses da saúde pública. O sistema se tornou uma máquina de monopólios intermináveis sobre medicamentos essenciais, uma máquina de violações do direito à saúde. O que vemos no Brasil e na Argentina é que mecanismos criados para colocar um limite em abusos de patente estão sob ataque, então o direito à saúde está ainda mais vulnerável”, denuncia ela.
Marcela ainda relata que, em 2014 e 2015, Interfarma e Caeme entraram com ações judiciais que visam destruir várias das medidas protetivas conquistadas nos dois países, que comungam a experiência de oferecerem sistemas públicos de saúde e programas de distribuição gratuita de medicamentos. Por isso, a expectativa é que, se os tribunais julgarem a favor das empresas, milhões de pessoas nesses países podem ficar sem acesso a medicamentos genéricos de preço baixo. “Os efeitos da ofensiva jurídica dos laboratórios nos dois países podem ser dramáticos”, afirma.
Insegurança jurídica
Para outro coordenador do GTPI e da Abia, Pedro Villardi, as estratégias usadas pela indústria farmacêutica para postergar os monopólios das patentes promovem insegurança jurídica no país e chegam, até mesmo, a afrontar a soberania nacional. “Essas empresas dizem que querem segurança jurídica para operar no Brasil, mas são elas mesmas que geram isso ao contestarem, por exemplo, a anuência prévia concedida pela Anvisa [Agência de Vigilância Sanitária], um órgão governamental, principalmente quando já existe uma série de portarias e regulamentações que dizem que a Anvisa tem de analisar os critérios de patenteabilidade”, afirma.
Na avaliação dele, chama atenção que laboratórios contestem os mecanismos aprovados pelo Estado justamente para conter os abusos desse próprio setor. “A prática desses laboratórios já é toda ela pautada pelo abuso. E quando o país, soberano, cria um mecanismo para se defender desse abuso, a empresa contesta o mecanismo. Parece coisa de criança mimada que ficou de castigo”, compara.
Marcela Vieira, uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual. Foto: Divulgação |
Criatividade jurídica como estratégia
Autor do parecer que condena a conduta anticompetitiva dos grandes laboratórios, aprovado por unanimidade pelo plenário do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e remetido ao Congresso Nacional e ao Ministério Público Federal (MPF), o advogado e professor da PUC-Rio Pedro Marcos Nunes Barbosa afirma que, no caso específico do Brasil, o problema da produção de propriedade intelectual na área farmacêutica é que os advogados estão cada vez mais criativos, e os engenheiros – que deveriam ser os verdadeiros inventores – estão cada vez menos. “Ganha-se cada vez mais na advocacia e menos na pesquisa e desenvolvimento”, diz ele.
No parecer, Barbosa esclarece que todos os países que adotam os tratados internacionais sobre propriedade intelectual preconizados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) – como é o caso do Brasil – aderem a uma plataforma de pensamento em que a livre concorrência é a regra, e a exclusividade, exceção. Segundo o professor, portanto, as patentes são uma exceção que visam estimular a inovação das empresas, que, em troca de investirem em pesquisa, ganham um período de monopólio para explorarem os produtos resultantes.
Ele alerta, entretanto, que os escritórios de advocacia dos grandes laboratórios tentam subverter essa lógica a qualquer custo. “A propriedade intelectual, como proposta pela maioria dos advogados das empresas, tem como beneficiário único o titular da patente, o que causa prejuízos não só para o consumidor final, como para o próprio Estado, que, através do Sistema Único de Saúde, é responsável pela aquisição de 70% dos medicamentos comercializados no Brasil”, afirma.
Protesto na Câmara dos Deputados. Foto: Agência Câmara |
Uma rachadura na história
Desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), André Fontes conta que o Brasil mantém proteção às patentes desde a chegada de Dom João VI a então colônia de Portugal, em 1808. Entretanto, até meados dos anos 1990, os remédios eram a exceção à regra. A situação mudou com o avanço do neoliberalismo no país. “As patentes de remédios surgiram aqui da noite para o dia, em função da forte pressão internacional. O Brasil se comprometeu a fazer isso para não sofrer sanções econômicas, mas acabou fazendo de uma forma que prejudicou os fabricantes locais e a população que depende do acesso aos medicamentos”, conta.
Segundo ele, o princípio fundante da propriedade intelectual é dar um prazo – que antes era de 15 anos e agora deveria ser de 20 – para os investidores serem remunerados dos gastos que tiveram com a invenção. No caso dos remédios, para remunerar a pesquisa que redundou na invenção da droga. Entretanto, o desembargador denuncia que, no Brasil, a situação tomou contornos diferentes. “O tratado que o Brasil celebrou é para 20 anos de monopólio a partir da invenção do produto. E hoje o que se vê aqui são os laboratórios pedindo patentes com muito mais tempo, às vezes cinco, seis, sete, dez anos depois. Eles não têm limites para isso”, afirma.
Conforme Fontes, a palavra monopólio, que deveria ser algo bastante reprovável, acaba sendo aceita como uma possibilidade na cultura jurídica local, como se a propriedade intelectual permitisse esse tipo de coisa. “Outros países têm um mercado de genéricos forte, muita competição saudável, mas aqui muitos genéricos não conseguem entrar no mercado porque os laboratórios, de alguma forma, sempre conseguem aumentar os prazos dos monopólios, de forma que os 20 anos acabam sempre muito além do momento inaugural da invenção”, esclarece.
Estratégias de combate
De acordo com o professor Barbosa, são pelo menos duas as estratégias utilizadas pelos advogados para postergar o monopólio dos medicamentos nas mãos dos detentores da exclusividade. A primeira é a que contesta os processos de concessão de patentes, tentando prorrogar o monopólio de drogas que já estão no mercado. “A estratégia é ajuizar ações, especialmente na Justiça Federal, atraindo algum tipo de interpretação engraçada ou exótica, que tenta comprovar que a quantidade de tempo de exclusividade que os laboratórios já detêm não é suficiente”, explica.
Nesse sentido, a morosidade do Judiciário é um grande trunfo. “Muitas vezes, os laboratórios nem precisam vencer uma ação judicial para lucrar. Se eles causam uma confusão qualquer e conseguem uma liminar que adia o processo por um ou dois anos, são mais um ou dois anos que o concorrente não entra no mercado, que eles continuam sozinhos vendendo um remédio, porque está todo mundo sob efeito da liminar. E ficamos nós, contribuintes, pagando caro por medicamentos que costumam ficar até 20 vezes mais baratos com a entrada da concorrência”, argumenta.
A segunda, um pouco mais elaborada, visa tentar conseguir uma nova patente para uma mesma droga, a partir de um incremento qualquer no medicamento original. O laboratório pega, por exemplo, um medicamento para pressão arterial que já possui patente, acrescenta um diurético que também já possui patente, e tenta conseguir mais 20 anos de monopólio com a nova combinação.
Assim, surgem o que ele chama de “medicamentos criados por advogados”, um fenômeno que, ao invés de dinamizar a inovação, como é a proposta original da propriedade intelectual, a inibe ainda mais. “Por que um laboratório vai gastar tempo e dinheiro em pesquisa, se é muito mais fácil acrescentar uma substância qualquer em um remédio já existente e lucrar o mesmo com isso?”, questiona.
O foco na Anvisa
A mais recente estratégia dos advogados dos laboratórios multinacionais mira um ator que, até bem poucos anos atrás, ficava longe dos imbróglios judiciais. Trata-se da Anvisa, que, em conjunto com o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi), precisa aprovar a concessão dos pedidos de patentes de medicamentos. A indústria farmacêutica, porém, alega que a análise dos pedidos pelo instituto já é mais do que suficiente.
Conforme o professor Barbosa, há 20 anos, logo após o país aprovar sua Lei de Patentes, o principal alvo das ações judiciais era justamente o Inpi. E como a sua sede fica no Rio de Janeiro, essas ações miravam o TRF-2, que abrange aquele Estado e o Espírito Santo. No início dos anos 2000, entretanto, o tribunal decidiu se preparar para enfrentar o grande volume de ações impetradas pelo seguimento e criou varas especializadas em propriedade intelectual.
De acordo com o desembargador André Fontes, a Justiça Federal carioca mantém quatro varas e duas turmas no tribunal, com três juízes cada. A experiência é única no país e, segundo Barbosa, está cercada de êxito.
“Com a especialização das varas, os juízes passaram a ter uma compreensão do macro e a entender as artimanhas das empresas que, em geral, tentam prorrogar suas exclusividades, sempre muito bem assistidas por advogados de ternos de milhares de dólares e mestrados nos Estados Unidos. Então, a Justiça Federal do Rio criou uma jurisprudência muito boa em relação à tutela do interesse público, acesso à saúde, respeito à concorrência, de observância da livre iniciativa”, avalia o advogado.
Mas como a criatividade dos escritórios não têm limites, eles mudaram o alvo e passaram a investir não mais contra o Inpi, e sim contra a Anvisa. E como a sede da Anvisa é em Brasília, as ações começaram a desaguar no TRF-1, um tribunal que não possui varas especializadas em propriedade intelectual e tem de atender uma base territorial imensa: são 13 Estados e o Distrito Federal.
“A indústria farmacêutica inventou uma nova roupagem para a velha estratégia: não litigar necessariamente contra o Inpi, mas contra a Anvisa, que tem sede em Brasília e fica submetida ao TRF-1. Assim, quem julga os novos processos não são juízes especializados em propriedade intelectual, mas os mesmos que estão ocupados com ações da Caixa Econômica Federal ou do INSS, sem nenhuma experiência ou jurisprudência para dar solução ao caso concreto”, denuncia Barbosa.
Davi contra Golias
O desembargador André Fontes acrescenta que, além de investir pesado em lobbies para tentar fazer com que o poder legislativo trabalhe em favor dos seus interesses privados, alterando as leis, a indústria farmacêutica também investe altas somas de dinheiro na contratação dos melhores escritórios de advocacia do país para atendê-la. “A competência dos advogados é muito grande. Os maiores advogados do Brasil acabam sendo contratados, os maiores juristas são consultados. E, com isso, os prazos acabavam na prática se ampliando, com uma grande perplexidade e dolo da própria natureza da propriedade intelectual, que deveria ser uma coisa equilibrada para remunerar o passado e dar condições de pesquisas futuras”, critica.
Segundo Fontes, são estes advogados cercados das melhores condições possíveis de trabalho e remuneração que duelam com os poucos procuradores do Estado designados para defender o acesso à saúde entre inúmeras outras tarefas. “O governo não tem recursos nem pessoal suficientes para cuidar dessas ações. Então, de um lado estão os melhores advogados, os mais experientes. Do outro, praticamente não há defesa. É como colocar o Pelé para chutar em um gol sem goleiro”, compara.
De acordo com Fontes, é uma guerra desequilibrada, desproporcional, travada publicamente em julgamentos que atraem grande público para ver a atuação dos advogados. “E nós, do judiciário, não podemos fazer nada, porque a função do tribunal não é fazer julgamentos dos órgãos públicos e nem de ninguém. Agora, reconhecer competências de um e de outros, acho que é tarefa de cada um fazer esta aferição”, esclarece.
O desembargador ressalta que, especialmente fora do âmbito do Rio de Janeiro, o próprio judiciário é mal preparado para lidar com questões de patente. “Em alguns Estados – pasmem – a propriedade intelectual que é pública – e é pública porque é assim que ela funciona – é tratada como segredo de justiça. Alguns Estados criaram ambiente de segredo de justiça para proteger o patenteado, sendo que, se uma coisa é patenteada, é porque ela é pública”, denuncia.
A fonte especialista
Além de atravancarem o judiciário com ações que visam manter o monopólio dos grandes laboratórios multinacionais, os advogados que atuam para o setor comprometem também o debate público travado no país sobre o tema. Sempre apresentados como fontes isentas e especialistas, defendem necessariamente os interesses daqueles que pagam suas contas. Eles estão organizados, inclusive de forma institucionalizada, na Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI).
Em audiência pública promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, no dia 20 de outubro de 2015, para debater as propostas de revisão da Lei de Patentes que tramitam no legislativo e visam aumentar os mecanismos de defesa dos usuários frente ao poder dos grandes laboratórios, a presidente da ABPI, Elisabeth Kasznar Fekete, defendeu com entusiasmo as patentes de segundo uso, a prorrogação dos monopólios em contextos diversos e o fim da anuência prévia da Anvisa na concessão do direito à exclusividade.
A presidente da ABPI, Elisabeth Kasznar Fekete, durante audiência na Câmara dos Deputados. Foto: Agência Câmara |
Além de presidir o órgão que nada tem de isento, ela é sócia sênior do escritório de advocacia Kasznar Leonardos Propriedade Intelectual, sétimo lugar no ranking dos escritórios especializados mais admirados do país, segundo a edição de 2014 do ranking “Análise Advocacia 500”. O escritório, claro, atende prioritariamente não os usuários do SUS, mas as grandes multinacionais. A reportagem solicitou uma entrevista com a presidente da ABPI para falar sobre o tema, mas não foi atendida. A diretoria da Interfarma também não quis se pronunciar sobre o assunto.
A diretoria da Anvisa também não quis conceder entrevista sobre o tema, mas, em nota, esclareceu que a ação judicial impetrada pela Interfarma contra o mecanismo da anuência prévia foi proposta há mais de um ano, visando anular resolução da diretoria colegiada que dispôs sobre o fluxo de tramitação de processos relativos à anuência prévia em pedido de patente de produto ou processo farmacêutico (art. 229 – C, da Lei 9.279/96). Na nota, informa que a Interfarma pede, também, que a Anvisa não se pronuncie sobre critérios de patenteabilidade dos pedidos, que alegam ser matéria exclusiva do Inpi. “Já houve contestação e apresentação de réplica pela parte da autora [Interfarma]. Não foi proferida decisão no processo, e a agência não se encontra obrigada a qualquer conduta em função de decisão judicial”, esclareceu a Anvisa.
Caso a ação seja julgada a favor da Interfarma, pode ser o fim de um dos principais mecanismos instituídos no Brasil para combater abusos das empresas no sistema de patentes. “A avaliação rigorosa dos pedidos de patentes visando evitar a concessão de patentes indevidas é não só um direito dos países, mas um dever para remover obstáculos que impedem a garantia do direito humano à saúde”, avalia Marcela Vieira, do GTPI e da Abia. Por isso o grupo, além da campanha acima mencionada, também acionou mecanismos de defesa dos direitos humanos da ONU para denunciar a ação da Interfarma e demandar que o governo brasileiro tome as medidas cabíveis para defesa do direito à saúde no país.
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