quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O médico que ousou afirmar que os médicos erram – inclusive os bons

Em livro de sucesso, recém-lançado no Brasil, o neurocirurgião inglês Henry Marsh afirma que os médicos são confiantes em excesso. E que cabe aos pacientes desmistificá-los
 
 
O neurocirurgião inglês Henry Marsh. “Não é porque você cometeu um erro que é mau médico.
 É sinal de que é um ser humano” (Foto: Simon Clark)
 
 
Em um mesmo dia, o neurocirurgião Henry Marsh fez duas cirurgias. Operou o cérebro de uma mulher de 28 anos, grávida de 37 semanas, para retirar um tumor benigno que comprimia o nervo óptico a ponto de ser improvável que ela pudesse enxergar seu bebê quando nascesse. Em seguida, dissecou um tumor do cérebro de uma mulher já na casa dos 50 anos. A cirurgia era mais simples, mas a malignidade do tumor não dava esperanças de que ela vivesse mais do que alguns meses. Ao final do dia, Marsh constatou que a jovem mãe acordara da cirurgia e vira o rostinho do bebê, que nascera em uma cesárea planejada em sequência à operação cerebral. O pai do bebê gritara pelo corredor que Marsh fizera um milagre. A seguir, em outro quarto do mesmo hospital, Marsh descobria que a paciente com o tumor maligno nunca mais acordaria. Provavelmente, ele escavara o cérebro mais do que seria recomendável – e apressara a morte da paciente, que teve uma hemorragia cerebral. O marido e a filha da mulher o acusaram de ter roubado os últimos momentos juntos que restavam à família.
 
É esse jogo entre vida e morte, angústia e alívio, comum à vida dos médicos, que Marsh narra em seu livro Sem causar mal – Histórias de vida, morte e neurocirurgia (nVersos, R$44,90), lançado nesta semana no Brasil. Para suportar essa tensão, Marsh afirma que uma boa dose de autoconfiança é um pré-requisito necessário a médicos que fazem cirurgias consideradas por ele mais desafiadoras do que outras. Não sem um pouco de vaidade, Marsh inclui nesse rol as operações cerebrais, nas quais seus instrumentos cirúrgicos deslizam por “pensamentos, emoções, memórias, sonhos e reflexões”, todos da consistência de gelatina.
 
Ainda que a confiança seja o ingrediente que permite a médicos como Marsh enfrentar o cotidiano angustiante, é o excesso dela, diz o neurocirurgião, que faz com que os médicos cometam erros – esse um assunto tabu entre a classe. Saber reconhecê-los e não cair na tentação de atribuí-los à natureza da doença é o melhor caminho para se tornar um médico melhor. Nesse percurso, alguns pacientes inevitavelmente sofrerão e se tornarão mais uma lápide no cemitério mental que todo cirurgião carrega. “É preciso seguir adiante”, disse Marsh, de 66 anos, em entrevista a ÉPOCA de sua casa em Oxford, onde passa os finais de semana depois de operar no St George’s Hospital, em Londres, durante a semana. Na Festa Literária de Paraty, a Flip, que começa nesta quarta-feira (29), ele lança o livro que já fez sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Leia a entrevista a seguir.
  
ÉPOCA - Ao ler seu livro, sem saber como se desdobraria cada caso narrado, fiquei angustiada como se estivesse lendo um livro de suspense. Como o senhor consegue conviver com essa sensação diariamente?

Henry Marsh - Escrevi o livro como se fosse um thriller porque essa é a realidade de meu trabalho. Quando acordo pela manhã, não sei o que acontecerá até o final do dia. Não sei se o paciente estará vivo ou morto, se terá morte cerebral. É preciso ter uma certa confiança. É muito difícil ser médico se você não for confiante. Mas não pode ser muito confiante. Tem de haver um equilíbrio.
  
ÉPOCA - O excesso de confiança pode fazer com que o médico cometa erros?

Marsh - Sim, você pode tomar as decisões erradas. Minha experiência sugere que, normalmente, os erros são feitos antes de entrar na sala de cirurgia. Se uma operação dá errado, pode ser porque você errou ao decidir se deveria fazer a cirurgia ou errou na decisão de como ela deveria ser feita. Não é porque sua mão escorregou ou algo do tipo. Você acha que é melhor do que é, pensa que a operação seria mais fácil. Por outro lado, se não fizer as operações mais arriscadas, como poderá se aperfeiçoar? A tragédia da medicina é que os médicos aprendem, como tudo na vida, errando. E, se erramos, os pacientes sofrem.
  
ÉPOCA - Para os pacientes, é muito difícil pensar que o médico pode errar. Para nos sentirmos seguros, não há outra solução senão ver o médico como um superherói, como o senhor diz?

Marsh - Os pacientes precisam ser um pouco mais céticos. Precisam questionar mais os médicos. Eu entendo que seja muito difícil perguntar: “Quantas operações desse tipo você já fez?”. Os pacientes ficam relutantes porque acham que estão sugerindo que não confiam no médico. O problema é que ter essa postura mais cética é assustador. Se você tem uma doença séria e tem de confiar sua vida a alguém, é mais fácil pensar que essa figura é meio como um Deus.
 
ÉPOCA - Com a internet ficou mais fácil de os pacientes terem acesso a informações sobre sua doença e possíveis tratamentos e podem questionar mais o médico. Mas os médicos estão preparados para ser questionados?

Marsh - Muitos médicos se sentem intimidados. Médicos que operam, como os neurocirurgiões, fazem cirurgias perigosas. Nós não gostamos de pensar que algo pode sair errado. Mas um bom médico não se sente intimidado pelo paciente que faz perguntas inteligentes. Precisamos ser confiantes e otimistas, mas também autocríticos. A verdade é que é muito difícil encontrar esse equilíbrio e ser um bom médico. As pessoas acreditam que é uma questão de ter mãos firmes. Isso é uma bobagem. Mãos firmes não são o problema, e sim como tomar decisões: se você deve operar, como deve operar.
 
ÉPOCA - Mas tem de ter mão firme, não? Enquanto o senhor descrevia em seu livro hemorragias cerebrais causadas por seu bisturi, que colocavam em risco o paciente, eu ficava pensando como era possível estancar o sangramento sem que as mãos tremessem.

Marsh - É claro que você tem de ter habilidade com as mãos. Mas você não treme, porque não tem outra opção. Se não conseguir, não pode ser um cirurgião. Nós nos tornamos cirurgiões justamente porque achamos excitante fazer cirurgias arriscadas. O perigo é atraente. Ficamos ansiosos porque queremos que o paciente fique bem logo.
 
ÉPOCA - Quanto do sucesso e do fracasso está nas mãos do médico?

Marsh - Depende. Se você estiver fazendo uma cirurgia simples, de correção de uma hérnia ou para retirar nódulos mamários, as chances de que algo dê errado são muito pequenas. Se você estiver operando o cérebro, que é incrivelmente delicado, vulnerável e que não se recupera facilmente como outras partes do corpo, o risco é muito alto. Parte importante da cirurgia cerebral é se o tumor está ou não grudado ao cérebro ou se separa facilmente. Isso está além de meu controle, é questão de sorte ou azar.
 
ÉPOCA - Como o senhor sabe se cometeu um erro ou se uma intercorrência foi um desses azares, decorrentes da característica natural do caso?

Marsh - É preciso ser honesto com você e com o paciente. Perguntar-se se faria alguma coisa diferente se tivesse de fazer a mesma cirurgia novamente. Não é porque você cometeu um erro que é mau médico, é sinal de que é um ser humano. Bons médicos cometem erros. Quando cometemos um erro e o paciente sofre um dano, a maioria dos médicos sente uma vergonha profunda. É horrível e doloroso. É o preço a ser pago pelos sucessos.
 
ÉPOCA - Como o senhor lida com os erros que cometeu?

Marsh - Como todos os cirurgiões, eu me lembro de meus erros mais do que de meus sucessos. Mas é preciso aceitar que cometemos erros. Se você deixar os erros o incomodarem demais, você não consegue fazer o trabalho. É preciso seguir adiante. Quando era mais jovem, ficava péssimo por muitas semanas. Conforme fui envelhecendo, sinto-me mal geralmente por dias ou algumas semanas. É a realidade do trabalho. Inevitavelmente, se você faz cirurgias perigosas, causará dano a alguns pacientes. É por isso que comecei o livro com uma frase do cirurgião francês René Leriche [1879-1955], que diz que todos carregamos um cemitério e, conforme os anos se passam, o cemitério fica maior e maior.
 
ÉPOCA - O senhor já foi processado por algum paciente por erro?

Marsh - Já falei para alguns pacientes ou para a família deles me processar. Meus advogados não ficaram muito contentes. Enfrentei quatro processos. Tenho uma clínica muito grande, então não é um número muito ruim. Em um dos casos, a família do paciente desistiu porque eu não seria culpado. Nos outros três, declarei-me culpado e não me defendi. Como tenho seguro, ele paga à família uma indenização, mas eu não fui punido criminalmente.
 
ÉPOCA - Um médico precisa ser objetivo e racional para tomar decisões e lidar com os erros de maneira que isso não impeça seu trabalho. Mas também tem de ser profundamente humano para entender os pacientes e confortá-los. É possível ser objetivo e humano ao mesmo tempo?

Marsh - Esse é outro equilíbrio difícil de alcançar: encontrar distanciamento profissional e compaixão. O mais importante é o médico ser honesto. Nós não queremos assustar o paciente. Queremos dar esperança, mas também temos de ser realistas. São problemas que todos os médicos têm, independentemente de onde trabalham, se é em um país rico ou pobre, independentemente de tecnologia. São problemas éticos, não técnicos.
 
ÉPOCA - Os médicos têm dificuldade de se colocar no lugar do paciente?

Marsh - Não sei que tipo de médico eu seria se meu filho, quando era um bebê de 3 meses, não tivesse tido um tumor cerebral. Ele foi operado, o tumor se mostrou benigno e ele ficou bem, mas quase morreu. Muito cedo em minha carreira, tive essa lição dolorosa, mas muito útil de como é ser um pai desesperadoramente ansioso, assustado. Essa experiência me fez muito mais simpático a meus pacientes e a suas famílias. Quando os médicos são jovens, saudáveis, eles não entendem o que os pacientes estão passando. Muitos dizem que depois que ficam mais velhos e se tornam pacientes se dão conta de que nunca tinham realmente entendido o que os pacientes haviam passado.
 
 

Um comentário:

  1. concordo c/ a possibilidade de haver ERROS,mas estes nunca deveriam ser mascarados ,omitidos e sim [p/ética]admitidos. São vidas de pessoas preciosas p/ nós família,como meu filho [18 anos] que além do sofrimento da perda ,anos de luta desgastante.

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