segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Paciente ou palhaço?

A maioria dos médicos ganha mal, trabalha demais e é pressionada a cumprir metas em condições desfavoráveis ou vergonhosas. Fazer piada dos doentes não é a solução
 
(Foto: Thinkstock/Getty Images)
 
Um colega de Brasília, sofrendo com o clima seco da cidade, procurou um hospital privado. Era uma daquelas instituições estreladas que podem descuidar de tudo, menos da decoração. Reclamou do incômodo no nariz e na garganta e saiu com uma receita. Só depois ele se deu conta de que alguma coisa estava fora do lugar.
 
Meu amigo passou por duas médicas sem que nenhuma tocasse nele. Nada de mandar abrir a boca, examinar a garganta, fazer um exame clínico minimamente razoável. Conversa rápida, receita e tchau. Sabemos que esse não é um caso isolado.
 
É uma lástima que os princípios básicos da medicina tenham saído de moda. Como diz o professor de clínica médica Antonio Carlos Lopes nesta reportagem, nada substitui a linha de raciocínio e o contato olho no olho, a conversa, a palpação bem feita, a ausculta cuidadosa. “A pior coisa da medicina é tecnologia de ponta nas mãos de médico ruim”, diz ele.

Não seria justo responsabilizar apenas os profissionais pela má qualidade da medicina exercida atualmente em grande parte no Brasil. A maioria dos médicos ganha mal, trabalha demais e é pressionada a cumprir metas em condições desfavoráveis ou vergonhosas.

Isso tudo é fato, mas o doente não tem culpa das distorções do sistema. Onde quer que esteja o paciente (no SUS, no serviço indicado pelo convênio, na clínica particular), ele merece ser atendido como gente e não como número. Merece qualidade e respeito – e não um nariz de palhaço.

Tenho curiosidade de entender em que ponto da formação e do percurso médico as boas intenções se perdem. Os garotos que ralam para passar num vestibular de medicina, as famílias que se esforçam para bancar longos e caros estudos, os bons professores universitários não investem tanto tempo e energia com o objetivo de fazer o mal ou de prestar um serviço de quinta categoria.

Claro que não. É bonito ouvir de um adolescente que começa a se interessar por medicina que ele escolheu a carreira porque quer aliviar o sofrimento humano e fazer o bem. Os calouros chegam à universidade, cheios de idealismo, e são deformados pelos maus exemplos ensinados por quem exerce o poder. Sabe a história do “manda quem pode, obedece quem tem juízo?”.

Esse aprendizado informal ajuda a moldar o tipo de médico que ele será. O debate sobre as consequências do chamado “currículo oculto” tem ganhado força nas melhores faculdades de medicina do mundo.

Um dos comportamentos vergonhosos, aprendidos e perpetuados nos cursos de medicina, é o hábito de rir dos pacientes. Um dos melhores estudos sobre o assunto foi realizado com 58 estudantes da Northeastern Ohio University. Os autores promoveram discussões em grupo para entender que tipo de paciente costuma ser alvo de chacota.

Os mais ridicularizados são os pacientes que sofrem de doenças que, para os desavisados, seriam resultado de falta de força vontade. Os obesos, os deprimidos, os fumantes...Durante a pesquisa, um dos estudantes americanos fez o seguinte comentário:

“Se estar naquela situação é culpa dele mesmo, então podemos tirar um sarro. Se alguém está andando na rua e é atingido por um carro, jamais faríamos isso.”

Os pesquisadores investigaram como os estudantes se sentem autorizados a fazer piada dos doentes. Quando um dos alunos explicou a regra, vários outros balançaram a cabeça em sinal de aprovação.
“Se o gelo foi quebrado por alguém que ocupa uma posição superior, então não há problema em dizer coisa alguma.” Ou seja: se a piadinha parte do residente, do preceptor ou do astro do pedaço, liberou geral.

Esse tipo de deformação do caráter precisa acabar. Os jovens médicos devem reconhecer que esse comportamento é inaceitável, ainda que ensinado informalmente pelos colegas mais experientes.

É o que o grupo do carioca Marco Antonio de Carvalho-Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vem conseguindo demonstrar com grande sucesso, como já contei nesta outra coluna.
Faz parte da natureza humana usar o humor para lidar com uma situação difícil. Os médicos enfrentam, todos os dias, enorme pressão física e psicológica. É compreensível que adotem esse recurso para suportar a carga emocional que outros profissionais não suportariam.

A arte está em saber se colocar no lugar de quem sofre. “Há uma diferença entre rir do paciente e rir com o paciente”, diz Carvalho-Filho. “Sou muito brincalhão. Outro dia eu estava conversando com uma paciente sobre as metas do tratamento dela. Fiz uma piada e acabamos rindo juntos daquela situação”, afirma.

Incluir o paciente na brincadeira, nas situações em que isso for aceitável, é uma forma de não perder de vista o limite entre a graça e a grosseria. “Está na raiz do nosso samba”, diz Carvalho-Filho. “A letra é triste, mas a melodia é alegre.”

Nariz de palhaço? Só se for no Carnaval.
 
 

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