quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O lado oculto das contas de hospital - PARTE II

“O plano de saúde disse ‘não’. Lá se foi o apartamento”




Renata Vilhena Silva (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
(Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)


A dentista Rita de Cássia Moreira Correia, de 48 anos, vendeu um apartamento em Belém, no Pará, e pagou uma conta de R$ 448.182,33 ao Hospital Samaritano, em São Paulo. Rita mora em Paragominas, a 300 quilômetros de Belém. Católica, ela decidiu conhecer Fátima, em Portugal, em abril de 2011. No meio da viagem, a irmã que a acompanhava notou que seu lábio superior parecia ligeiramente adormecido. Na volta ao Brasil, durante uma escala em Brasília, o passaporte caiu de sua mão. Rita imaginou ter sofrido um AVC. Assim que chegou a Belém, com falta de sensibilidade no lado esquerdo do corpo, procurou um hospital credenciado ao plano de saúde Unimed. Os médicos diagnosticaram um tumor cerebral. Quando o neurocirurgião que a acompanhava precisou viajar por motivos particulares, ela decidiu não perder mais tempo. Pegou um avião e foi buscar uma segunda opinião em São Paulo.

Agendou consulta com quatro especialistas durante a Semana Santa. O primeiro que a recebeu foi José Marcus Rotta, chefe do Grupo de Neuro-Oncologia da Universidade de São Paulo (USP). Assim que entrou no consultório, Rita notou a imagem de Nossa Senhora de Fátima sobre a estante. “Alguns podem chamar de coincidência. Eu chamo de Providência”, diz ela. “Foi a mão de Deus. Se não tivesse encontrado aquele médico, hoje estaria morta.”

Feita a conexão divina, faltava conquistar o entendimento entre os homens. O cirurgião operava no Hospital Samaritano, credenciado à Unimed Paulistana. O plano de saúde de Rita oferecia cobertura na rede nacional. Logo, ela acreditou que o tratamento em São Paulo seria coberto pela Unimed. Enquanto a família tentava conseguir uma autorização do plano de saúde para a internação, ela passou mal. Inconsciente, foi internada no Samaritano em caráter de urgência, como paciente particular. A autorização do convênio não saiu. “Paguei plano de saúde durante 12 anos. Quando precisei, fiquei desamparada”, diz. A neurocirurgia, feita no dia seguinte, foi bem-sucedida. Era só o começo do tratamento. Para combater o câncer – um tumor tecnicamente conhecido como linfoma não Hodgkin de sistema nervoso central –, Rita precisou de um transplante de células dela mesma. É um procedimento chamado de transplante autólogo, o mesmo que contribuiu para a recuperação do ator Reynaldo Gianecchini. Células saudáveis foram extraídas de sua medula óssea e guardadas. Em seguida, Rita enfrentou quatro sessões de quimioterapia em altas doses. Qualquer infecção poderia ser fatal.
Os médicos tinham a convicção de que ela não poderia ser transferida de hospital. Emitiram atestados com a informação de que se tratava de um caso gravíssimo. Segundo eles, Rita precisava ser atendida em um hospital de alta complexidade, como o Samaritano, por profissionais capacitados a realizar procedimentos sofisticados como aquele. Enquanto a briga com o plano de saúde se arrastava, a conta do hospital crescia: R$ 100 mil, R$ 150 mil, R$ 200 mil... Foi um caso difícil, de surpreendente sucesso. Três anos depois, Rita trabalha todos os dias no consultório. Exames recentes não detectaram qualquer sinal de retorno da doença.

Os 40 dias de internação em 2011 prolongaram-lhe a vida, mas consumiram cada tijolo do imóvel comprado a prestações ao longo de anos de trabalho. Rita saldou a dívida com o hospital. O sentimento de honestidade deu lugar ao arrependimento. “Foi um erro”, diz ela. “Se tivesse entrado com uma liminar na Justiça, não teria pagado essa conta.” Para tentar obrigar o plano de saúde a lhe restituir o dinheiro, Rita contratou o advogado Julius Conforti, especializado em Direito da Saúde. Segundo ele, vários fatos favorecem Rita nessa disputa: era uma situação gravíssima; não existia o tratamento necessário em Belém; o contrato garantia à paciente ser atendida num hospital da rede credenciada em São Paulo, e, além disso, ela foi internada em caráter de urgência. Conforti aconselha que as famílias não se desesperem ao receber a conta de um hospital. “Em vez de pagar, o melhor caminho é entrar com uma liminar judicial”, diz ele. “As pessoas vendem imóveis a preço de banana, dilapidam o patrimônio, depois tentam recuperá-lo na Justiça. Isso é possível, mas o processo costuma levar anos.” Procurada por ÉPOCA, a Unimed Belém não se pronunciou sobre o caso.



Rita de Cássia Moreira Correia (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
(Foto: Rafael Araujo/ÉPOCA)


Um mercado doente

Em quase todos os setores da economia, uma cadeia produtiva é formada por parceiros com dois objetivos comuns: atender a uma necessidade do cliente e lucrar. Só há queijo no café da manhã porque alguém tira o leite da vaca e vende ao laticínio. A empresa fabrica o produto e fornece ao supermercado. O consumidor decide o que comprar. Do campo à mesa, todos ganham. Uns mais, outros menos, mas a parceria que os economistas chamam de “cadeia de valor” é vantajosa para todos. Do contrário, ela se desfaz.
No ramo da saúde, a lógica é outra. Não há parceria entre os dois principais elos da cadeia – os hospitais e os planos de saúde. Há competição, disputa, desperdício de energia e recursos. Segundo as regras atuais desse mercado doente, o lucro do hospital significa o prejuízo do plano de saúde – e vice-versa. Para aumentar seus próprios ganhos, cada lado do balcão adota medidas que elevam os gastos da sociedade com saúde, sem aumentar o benefício entregue aos clientes.“O sistema de saúde é um não sistema. Cada um está preocupado com o seu”, diz Ana Maria Malik, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. “O Brasil sofre com doenças crônicas dispendiosas do século XXI, tem um sistema de saúde preparado para atender males do século XX e gestão do século XIX.”
As distorções que explicam a crise de saúde começam na base. Quando entrega o queijo ao supermercado, o produtor emite um boleto bancário. Sabe que, na data estabelecida, poderá contar com aquele pagamento. A relação comercial entre fornecedor e comprador em qualquer outra área funciona assim: uma empresa vende o produto e envia a fatura ao comprador.

“Na saúde, é diferente. O hospital manda as faturas para o plano de saúde, e ele decide se paga ou não”, diz Afonso José de Matos, professor de administração financeira e custos hospitalares da FGV e diretor presidente da Planisa. O embate é diário. Planos de saúde reclamam que os hospitais cobram muito mais do que valem os produtos empregados no tratamento de seus beneficiários. Hospitais argumentam que são obrigados a fazer isso porque os convênios se negam a reajustar tabelas de serviço. Ou simplesmente não pagam grande parte dos atendimentos já prestados.

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Por Cristiane Segatto -  ÉPOCA

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