quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O lado oculto das contas de hospital - PARTE III


Afonso José de Matos (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
(Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

Quem tem razão? “Muitas vezes os hospitais abusam. Noutras, as operadoras é que não ressarcem os valores que deveriam”, diz o economista da saúde André Medici, do Banco Mundial, em Washington. “Por precaução, os hospitais estabelecem preços mais altos para compensar as perdas que terão diante das negativas de pagamento pelos planos de saúde e pelos pacientes particulares inadimplentes.”
É assim que o dinheiro (do convênio, do cliente particular, do empregador, da sociedade) vai para o ralo sem produzir mais qualidade de vida. Os custos de saúde aumentam dramaticamente em todo o mundo. Uma das razões é a adoção de tecnologia. Exames, drogas e procedimentos sofisticados custam caro. Outra é o envelhecimento. Viver mais requer cuidados cada vez mais dispendiosos. Entre os idosos, 80% têm pelo menos uma doença. Mais de 30% têm três ou mais. O Brasil não se preparou para enfrentar a transição demográfica que se avizinha. Enquanto a Europa enriqueceu antes de envelhecer, o Brasil envelhece sem ter se tornado rico. Em 2030, o país terá mais de 40 milhões de idosos, ou 17% da população. Doerá no bolso.
Uma terceira razão leva ao aumento dos custos: a indefinição do valor dos serviços de saúde. É um fator incômodo, sobre o qual pouco se fala – e a que se dedica esta reportagem especial de ÉPOCA. “Os hospitais prestam serviço sem saber quanto ele custa; as operadoras pagam sem saber quanto ele vale”, diz Matos, da Planisa. “Fica uma discussão sem dados. Qualquer boteco faz isso melhor.”
Num sistema saudável, o bom hospital seria capaz de curar ou tratar adequadamente um paciente e, ainda por cima, gastar pouco. A qualidade técnica, a segurança e a eficiência no controle de custos atrairiam mais clientes e o fariam prosperar. No atual modelo brasileiro, a função do hospital é distorcida. Os hospitais passam a visar à doença. Quanto mais a situação do paciente se complica, melhor para eles. Quanto maior o uso de insumos banais como esparadrapo e seringa, mais ganham. Ao contrário do que o senso comum imagina, as maiores fontes de receita dos hospitais privados não são os exames sofisticados, os quartos luxuosos ou a especialidade dos médicos. “Os hospitais viraram grandes varejistas de insumos”, diz Sergio Bento, da Planisa. Durante 15 anos, ele foi gestor do Samaritano, em São Paulo. “Para os hospitais, insumo é receita – não custo.”
 
Existem 4.081 hospitais privados no Brasil. Desses, 2.615 têm fim lucrativo. A nata das instituições, aquelas que seguem um padrão elevado de assistência e gestão, compõe a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). São apenas 48. Seu presidente, Francisco Balestrin, reconhece a distorção mencionada por Bento e diz que a Anahp pretende liderar um movimento para combatê-la. “Todo mundo gosta de criticar, mas ninguém sabe a história por trás disso”, diz Balestrin. Diante do tabelamento de preços imposto pelo Plano Cruzado, em 1986, as taxas e os serviços cobrados pelos hospitais também foram congelados. As regras da economia mudaram nos anos seguintes. Por muito tempo, os hospitais não conseguiram reajustar seus preços.
Não demorou a surgir uma solução engenhosa: criar taxas para tudo. Taxa para aplicar injeção. Taxa para fazer curativo. Taxa de maca, para transportar o paciente de um lugar para o outro. “Hoje, as listas de preço parecem árvores de Natal”, diz Balestrin. “Isso foi necessário para garantir nossa sobrevivência diante do tabelamento de preços imposto pelo governo.” O Plano Cruzado é passado. Mesmo depois de 20 anos de estabilidade proporcionada pela nova moeda, o real, as regras insólitas que regem o relacionamento entre hospitais e planos de saúde não mudaram. “Aplicar os custos do hospital sobre o valor dos medicamentos e dos materiais é hoje a única forma de manter a saúde financeira das instituições”, diz Balestrin. Essa é uma longa tradição que precisa acabar.
 
Mais doença, mais dinheiro

 No Brasil, o sistema privado remunera a doença – não a saúde. Os convênios pagam os hospitais de acordo com um modelo conhecido como “conta aberta”. Ou, em inglês, “fee for service” (pagamento por serviço). Uma conta é gerada para cada paciente. Todo e qualquer item usado no atendimento (dos mais banais aos mais sofisticados) é colocado na conta. A papelada é enviada ao plano de saúde ao longo da internação ou ao final do atendimento. Cem mulheres, 100 cesarianas, 100 contas diferentes. A operadora analisa cada uma e discute o que foi feito. Corta o que considera item desnecessário ou cobrança excessiva. A recusa de pagamento aos hospitais é chamada de “glosa”. As operadoras mantêm auditores nos hospitais para verificar se o que está na conta realmente consta no prontuário de cada paciente. Eles verificam tudo: coerência da indicação, duplicidade de itens etc. Isso custa. Manter esses batalhões de auditores representa o segundo maior gasto administrativo das operadoras. O primeiro é a equipe de vendas de planos de saúde. “É o custo da desconfiança”, diz Bento, da Planisa. “Com tudo isso, as operadoras têm uma margem de lucro muito pequena.” Não há mágica. Se o custo aumenta (administrativo ou derivado do tratamento), mais cedo ou mais tarde é repassado aos clientes individuais ou empresariais.
 
Isso ajuda a explicar por que, na maioria dos casos, exames e procedimentos mais caros só são realizados com autorização prévia do convênio. É uma novela que médicos e conveniados conhecem bem. O funcionário do hospital, o cliente ou ambos telefonam ao plano de saúde e passam longos minutos ouvindo musiquinhas de tirar qualquer um do sério. Com sorte, o procedimento é autorizado. Com frequência, é negado. À família, restam duas opções: procurar outro hospital ou assumir a conta. “De 2% a 4% dos pacientes dos hospitais são particulares. As tabelas de negociação com eles são de 30% a 40% superiores às cobradas das operadoras”, diz Bento. “É uma distorção.”
Muita gente acha que tem plano de saúde. Até que percebe que, na prática, é como se não tivesse. O número de reclamações contra os convênios cresceu 31% em 2013, na comparação com o ano anterior, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No ano passado, foram recebidas 102.232 queixas. Em 72% dos casos, a razão foi uma só: negativa de cobertura. Para coibi-la, a ANS aplica multas. Punições desse tipo só são pedagógicas se realmente doerem no bolso, o mesmo princípio das multas de trânsito.
 
Mas as operadoras encontraram um jeito de se safar da punição. Câmara e Senado aprovaram há poucas semanas uma nova sistemática para a cobrança dessas penalidades. Hoje funciona assim: a cada negativa de cobertura comprovada pela ANS, a empresa deve pagar uma multa de R$ 2 mil. Se a empresa nega dez procedimentos, pagará R$ 20 mil. Com a mudança aprovada pelo Congresso, se o plano de saúde negar de dois a 50 procedimentos, pagará apenas duas multas (R$ 4 mil, em vez de R$ 100 mil). Daí em diante, haverá uma escala. Quanto pior o serviço da operadora, menor será a multa. A mudança deseducativa só entrará em vigor se for sancionada pela presidente Dilma Rousseff. A exemplo do que aconteceu com a votação sobre o Código Florestal, o movimento #VetaDilma já está lançado.
 
Na solidão do corredor escuro

 Os administradores dos hospitais costumam apresentar a mesma justificativa para os altos preços cobrados por insumos banais. O engenheiro Luiz de Luca, superintendente corporativo do Samaritano, faz uma comparação com uma garrafa d’água. “Todo mundo sabe que ela custa R$ 1,30 no supermercado, mas aceita pagar R$ 6,50 pelo mesmo produto num restaurante chique”, diz. “O consumidor paga porque acha que o restaurante vale a pena. Tudo depende da percepção de valor que o cliente tem. Com hospital, é a mesma coisa.” Para aceitar essa analogia, é preciso relevar diferenças cruciais entre os dois setores. Quem vai a um restaurante pode planejar o programa, consultar os preços e escolher aquele que cabe em seu bolso. Ninguém escolhe ficar doente. Quando a necessidade de cuidado se impõe, a família não está no controle da situação. Ela busca atendimento sem contar com o benefício de saber quanto terá de desembolsar ao final do tratamento.

O dramático, na saúde, é a falta de previsibilidade sobre as despesas. Mesmo que o paciente receba um orçamento do tratamento, ele sempre será impreciso. Segundo Balestrin, da Anahp, os hospitais mantêm listas de preços de procedimentos afixadas em lugar visível, mas ele reconhece que é preciso ir além. “Talvez falte um site onde as pessoas possam verificar os preços”, diz. “Ainda assim, as famílias não deveriam se fixar tanto no preço de cada item. É preciso pensar no custo final que os hospitais têm, e isso elas nunca conseguirão saber enquanto o sistema de pagamento for do tipo conta aberta.” Hospitais não lucram como bancos. “A margem de lucro operacional do Einstein e de muitos dos melhores hospitais de São Paulo é de 5%”, diz o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do Hospital Albert Einstein. Comparar preços, diz ele, é um parâmetro errado. “Não adianta apresentar um menu para o cliente verificar preços. O que falta é compromisso com o resultado.”
 
Nos Estados Unidos, há um forte movimento pela transparência. A economista Bobbi Coluni realizou um estudo revelador para a empresa Truven Health Analytics. Ela analisou as variações de preços de 300 procedimentos hospitalares e ambulatoriais. Descobriu que o preço de uma artroscopia de joe­lho em Chicago variava de US$ 1.000 a US$ 5 mil. Concluiu que a sociedade americana economizaria US$ 36 bilhões por ano se os hospitais cobrassem, de todas as fontes pagadoras, o preço médio de mercado. “Os consumidores tomam decisões que provocam gastos sem ter a informação necessária para fazer bom uso do dinheiro”, disse Bobbi a ÉPOCA. “É preciso encorajá-los a exigir informação dos prestadores de serviço.” Segundo ela, isso criará competição, aumentará a eficiência e reduzirá custos. No ano passado, o governo americano criou dois sites para ajudar o cidadão a comparar e a escolher hospitais e planos de saúde. Nas páginas www.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar indicadores de qualidade de 3.300 hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. No Brasil, o discurso da transparência é mais eloquente que a prática. ÉPOCA pediu que Albert Einstein, Sírio-Li­banês e Samaritano informassem os preços cobrados de pacientes particulares por dez procedimentos e produtos de uso corriqueiro. Itens como hemograma, tomografia, soro fisiológico, paracetamol, omeprazol e seringa descartável. Nenhum deles aceitou divulgar a informação.

“Hoje, você tem um médico na sua frente. Amanhã, um advogado”

A contadora Valquiria Catelli Nogueira dirige o departamento financeiro da Câmara Municipal de Paulínia, no interior de São Paulo. A familiaridade com os números não aliviou sua sensação de impotência diante da cobrança que lhe foi apresentada pelo Hospital Sírio-Libanês, há quase dois anos. Segundo o último registro do Tribunal de Justiça de São Paulo, ela deve R$ 447.003,86, sem os juros. É um valor superior ao da casa própria em que vive, avaliada, segundo ela, em R$ 390 mil. “Quando entramos num hospital, não imaginamos que cada agulhinha, cada esparadrapo será cobrado separadamente, item por item”, diz Valquiria. “Além da angústia provocada por uma doença grave, vivemos a agonia de não conseguir mensurar o valor de nada.”
 
O Sírio-Libanês entrou com uma ação de cobrança contra Valquiria porque ela assinou, como acompanhante, o documento de internação da comerciante Claudia Cristina Miranda, em julho de 2012. “Ela era como uma irmã”, afirma Valquiria. “Um anjo com quem tive o prazer de conviver.” As duas dividiram a casa e as despesas durante 12 anos. Claudia morreu no ano passado, aos 40 anos, de câncer de ovário. “Tenho a consciên­cia de que fiz tudo o que estava a meu alcance para tentar salvá-la”, diz Valquiria. Uma das providências foi buscar a Justiça para garantir que ela pudesse ser submetida a uma cirurgia para extrair o tumor e aplicar quimioterapia na mesma operação. Era um recurso sofisticado, na época só  feito em hospitais de primeira linha, como o Sírio-Libanês.
O plano de saúde, a Unimed de Campinas, não cobria o procedimento nem a internação no famoso hospital filantrópico paulistano, conhecido por atrair políticos e artistas. Com uma liminar judicial favorável, Claudia foi internada. “Estávamos tranquilas. Graças à decisão do juiz, sabíamos que não teríamos de arcar com as despesas de um hospital daquele nível”, diz Valquiria. Dez dias depois da cirurgia, Claudia precisou ser reinternada às pressas. Uma fístula próxima ao reto provocara uma infecção. Claudia entrou pelo pronto-socorro, como paciente particular. Assim como os irmãos, os sobrinhos e os pais idosos, Claudia vivia da renda de uma pequena loja de material de construção, em Campinas. Não tinha condições de arcar nem sequer com uma semana de Sírio-Libanês. O médico emitiu um relatório para ajudá-la a explicar ao juiz que a fístula era decorrente da cirurgia. A reinternação, segundo esse raciocínio, deveria ser custeada pelo plano de saúde. A Justiça não aceitou essa argumentação. “Hoje, você tem um médico na sua frente. Amanhã, um advogado”, diz Valquiria. Na ação contra a Unimed, Claudia e Valquiria foram representadas pela advogada Renata Vilhena Silva, especializada em Direito da Saúde. Segundo Renata, a pior coisa que pode acontecer a um paciente é precisar de um atendimento de alta complexidade e não o encontrar na rede credenciada. “Os clientes pagam um plano de saúde e têm um atendimento péssimo”, diz Renata. “Quando precisam de um tratamento de primeira linha, são obrigados a buscá-lo fora da rede credenciada e enfrentam essa incompatibilidade de preços praticada pelos hospitais.”
 
Em três meses de hospital, a conta de Claudia somou 2.754 itens. Em cada linha, aparece a descrição enigmática de materiais e preços impossíveis de comparar com coisa alguma. Valquiria tentou analisar a cobrança. Fracassou. Como saber se uma ampola de Sandostatin 0,1 mg/mL Inj (=100 mcg/mL) valia mesmo em agosto de 2012 os R$ 74,85 cobrados pelo hospital? Ou se, um mês antes, era aceitável pagar R$ 4,54 por uma Seringa Desc. 20 ml S/Agulha Bico Luer Lock? O peso da dívida aumentou o sofrimento de Claudia. “Ela ficava angustiada toda vez que alguém do departamento financeiro ligava no quarto e dizia a ela que a conta já havia chegado a R$ 100 mil, R$ 200 mil...”, diz Valquiria. O Sírio-Li­banês afirma que sempre esteve à disposição dos familiares e da acompanhante de Claudia para oferecer todas as informações necessárias. Segundo o hospital, ações judiciais representam um último recurso. “Continuamos abertos, inclusive, a uma nova negociação, que leve a um acordo favorável a todos.” A Unimed de Campinas argumenta que Claudia buscou tratamento em um hospital não oferecido pelo plano contratado. Em nota enviada a ÉPOCA, a Unimed afirma: “Sob o prisma da regularidade, quer legal ou contratual, a Unimed Campinas em momento algum negou atendimento assistencial à beneficiária”. A briga jurídica entre a família de Claudia e o plano de saúde continua. Agora, no Superior Tribunal de Justiça.

Leia matéria na íntegra:
Por Cristiane Segatto -  ÉPOCA

Um comentário:

  1. até quando? perdemos nossos filhos jovens cheio de sonhos por IMPERÍCIA MÉDICA,DESINTERESSE COM TODA TECNOLOGIA A DISPOSIÇÃO. Temos que arcar com despesas .advogados ,desgaste emocional e tudo isso dá DINHEIRO PARA ALGUÉM. MAS TEM QUE SE LUTAR ATÉ QUE ISSO ACABE .

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