sábado, 23 de julho de 2022

Com advertência à cassação, processos contra médicos podem levar anos

 

Bolívar Guerrero Silva, acusado de manter paciente em cárcere privado, já havia sido suspendo de exercer a medicina

Em meio ao impacto provocado pelos casos envolvendo o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, réu por estupro de vulnerável, e o cirurgião plástico Bolivar Guerrero Silva, suspeito de manter uma paciente em cárcere privado, advogados que atuam na área da saúde ouvidos pelo UOL relatam que processos contra médicos nos conselhos regionais de medicina podem levar anos para ser concluídos, com punições que vão de uma advertência confidencial à cassação.

As sanções aplicáveis pelos conselhos regionais de medicina a seus membros estão previstas em uma lei de 1957, sancionada pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Ela prevê desde penas brandas até o impedimento do profissional em continuar a exercer a medicina pelo resto da vida.

Questionado sobre o número de médicos que sofreram alguma sanção no exercício de suas atividades nos últimos 5 anos, o CFM (Conselho Federal de Medicina) disse não ter esse levantamento.

Em 2017, reportagem do UOL com base em dados da instituição obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) mostrou que, de 2010 até abril daquele ano, só 3,7% dos profissionais investigados em todas as instâncias administrativas da área médica foram impedidos de continuar a praticar a medicina definitivamente por imperícia, imprudência ou negligência.

Processo pode demorar anos

Roger Abdelmassih teve seu registro cassado em 2011

O procedimento começa com uma denúncia —que não pode ser anônima— ou com os conselhos agindo de ofício, ou seja, sem que haja uma solicitação externa. A partir daí, uma sindicância é instaurada, visando apurar se há ou não indícios de que houve uma infração ética, e o profissional é notificado.

"A fase de sindicância equivale a um inquérito policial de uma apuração criminal. É onde vão ser coletadas provas", explica o advogado Marcos Coltri, que atua na área de direito médico e saúde. Conforme o atual Código de Processo Ético-Profissional, a sindicância tem até 180 dias para ser concluída.

Ao final dessa fase, o conselho decide se há ou não indícios de infração ética. Se não houver, ela é arquivada. Caso haja indicação da existência de indícios de infração, um PEP (Processo Ético-Profissional) é instaurado.

O rito segue trâmites parecidos com a Justiça comum, em que tanto defesa quanto acusação apresentam testemunhas, provas, podem solicitar perícias e as partes são ouvidas. "O processo tem várias fases, etapas que precisam ser cumpridas, sob pena de nulidade", diz a advogada Fernanda Zucare, especialista em direto a consumidor e à saúde.

Só depois disso terá início o julgamento, que ocorre no formato de colegiado — realizado por mais de um integrante dos conselhos. Se condenado às penas previstas na lei o médico ainda poderá recorrer ao CFM. Tanto a sindicância quanto o PEP tramitam em sigilo.

Segundo Coltri, do momento em que o conselho recebe a denúncia até o julgamento pelo CFM, são aproximadamente 6 anos. "Mas já trabalhei em casos que tem 12 anos", relata.

Roger Abdelmassih, condenado a mais de 100 anos de prisão pelo estupro de 56 pacientes, teve seu registro profissional cassado definitivamente em maio de 2011 —o processo contra o então médico no Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) começou dois anos antes, em 2009, diante de denúncias de abusos.

O UOL questionou o CFM sobre o tempo que os processos levam para correr nos conselhos e aguarda retorno.

Quais são as penas

Conforme a lei, os médicos podem receber cinco tipos de sanções no exercício de suas atividades. São elas:

a) advertência confidencial em aviso reservado; 
b) censura confidencial em aviso reservado; 
c) censura pública em publicação oficial; 
d) suspensão do exercício profissional até 30 dias; 
e) cassação do exercício profissional, ad referendum [que deve ser referendada] do Conselho Federal.

As punições "a" e "b" são sigilosas, ou seja, é de conhecimento apenas das partes envolvidas, como forma de punição moral —sem que o profissional tenha que se afastar de suas funções.

O terceiro tipo (c) é a censura pública em publicação oficial —punição que visa tornar pública, mediante sua publicação nos Diários Oficiais dos Estados ou da União, a infração ética cometida pelo médico, sem, contudo, detalhar o erro cometido, mas apenas os artigos que ele infringiu.

A última, e mais grave, é a cassação. Para que seja definitiva, porém, é necessária a confirmação do CFM.

A lei prevê ainda que "salvo os casos de gravidade manifesta que exijam aplicação imediata da penalidade mais grave" a imposição das penas deverá obedecer à gradação —ou seja de "a" até "e".

"Se o médico for condenado pela primeira vez, em tese, ele vai sofrer uma advertência, numa segunda vez sofreria uma censura. Até chegar a cassação demoraria mesmo. Mas a própria lei já estabelece isso, diz que no caso de manifesta gravidade aí pode ser aplicada pena mais grave. Mas isso é exceção", diz Coltri.

"Por isso que passa esse sentimento de que ninguém é punido e que o processo ético não dá em nada. Mas é porque, primeiro, tem que ser verificado se teve infração ética mesmo e segundo a maioria das decisões são aplicação das penas confidenciais, então ninguém fica sabendo. Não significa que não tem condenação mas isso não aparece."

Condenado, mas com direito a exercer a profissão

Ao contrário do que pensam alguns pacientes que denunciam médicos ao CRM, no processo ético não há penas que envolvam dinheiro. Caso o objetivo do paciente seja a indenização, ele deve entrar com um processo na esfera civil, ou seja, na Justiça comum.

"O CRM só tem competência para fiscalizar o exercício da profissão, não pode impor ao profissional o dever de reparar o dano. O que ele pode fazer é apurar se aquela conduta é um ilícito ético ou não e aí ele vai graduar a pena de acordo com a conduta", explica Elton Fernandes, advogado especialista em direto da saúde.

Nem sempre uma ação na Justiça comum é encaminhada aos conselhos. Por isso é possível encontrar casos de médicos condenados judicialmente no exercício da profissão. "São esferas independentes. Nem todo processo que vai gerar uma indenização tem ilícito ético. Às vezes o profissional cometeu um erro de fato, vai ter que indenizar aquela pessoa, mas isso não se traduz obrigatoriamente num ilícito ético", acrescenta Fernandes.

Segundo a Polícia Civil, o médico foi preso anteriormente por integrar um grupo criminoso acusado de comercializar e aplicar medicamentos sem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O cirurgião plástico também já havia sido suspenso de praticar a medicina em dezembro do ano passado. A punição foi concedida pelo Cremerj, por ter entendido que o profissional violou cinco artigos do Código de Ética Médica.

Apesar das infrações, o perfil dele aparecia com situação "regular" no site do CFM na sexta-feira (21). Em nota divulgada esta semana, o Cremerj informou que abriu uma sindicância para apurar os fatos. "Todo procedimento segue em sigilo de acordo com os ritos do Código de Processo Ético-Profissional", comunicou a instituição. O UOL não conseguiu contato com a advogada do equatoriano. Ao jornal O Estado de S. Paulo, ela afirmou que não deve se pronunciar.

Giovanni Quintella foi temporariamente suspenso provisoriamente e está impedido de exercer a profissão em todo o país.

Já Quintella foi suspenso provisoriamente e está impedido de exercer a profissão em todo o país. Em paralelo, o Cremerj instaurou um processo ético-profissional que pode levar a sua cassação. A reportagem não conseguiu contato com a defesa dele. O espaço está aberto.

No dia 12 de julho, ao divulgar a nota sobre a suspensão de Quintella, o então presidente do Cremerj, Clovis Munhoz, classificou a situação de "estarrecedora" e prometeu que a instituição agiria com celeridade no caso. O PEP tem que ser julgado em até 180 dias, prorrogável uma única vez por mais 6 meses, ou seja, o prazo pode chegar a um ano, segundo Coltri.

Ontem, o Cremerj informou que Munhoz decidiu se afastar do cargo. O anúncio ocorreu após o relato de uma técnica de enfermagem que o acusa de fazer comentários de cunho sexual no centro cirúrgico. Conforme o conselho, a decisão foi tomada por Munhoz junto à diretoria "prezando pela lisura e pelo comprometimento com a transparência".

Ele é cirurgião ortopédico e foi indiciado pela 9ª delegacia policial pelo crime de assédio sexual. Segundo o conselho, será aberta sindicância para apurar a denúncia e o processo será encaminhado ao CFM.






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