segunda-feira, 25 de julho de 2022

Estupro no parto não é caso isolado

 


Das poucas coisas que consegui acompanhar sobre o crime de estupro ocorrido no Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro, na semana passada, me deparei com o fato de que outros profissionais médicos que estavam juntos nas cirurgias com o anestesista estuprador Giovanni Quintella Bezerra, relataram não terem percebido qualquer conduta de ordem questionável do colega.

Por outro lado, a equipe de enfermagem com um ultra potencial perceptivo do seu campo de prática, conseguiu de forma articulada organizar o flagrante que resultou na prisão do estuprador. Esse caso do anestesista que estuprou uma mulher na hora do seu parto pareceu estupefato para muita gente. Mas não para todo mundo, e precisamos conversar sobre isso.

A nota de repúdio publicada no dia 11 de julho pela Sociedade de Anestesiologia do Estado do Rio de Janeiro, na qual se manifesta contra a prática do médico trouxe as suavizantes frases em sua legenda no Instragram: “suposto estupro”, “caso seja comprovado o crime”, é vexatória. A SAERJ apenas esqueceu do vídeo que comprova o crime de estupro, e que este de é conhecimento público. Dois dias depois dessa publicação e muita repercussão negativa para a “firma”, fizeram uma segunda nota oficial trazendo os encaminhamentos de punição da organização para o médico em questão.

Fico pensando alto aqui, e se não tivessem filmado o crime, qual seria o teor desta nota mesmo? De quantos crimes encobertos estamos falando? Muitos fatos serão apurados e as pessoas deverão ser responsabilizadas. Assim esperamos. Embora o membro da renovação carismática católica, e atual Governador do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, do PL, tratou de visitar a Unidade Hospitalar Estadual e afirmar que o ocorrido ali foi apenas “um fato isolado”, varrendo a poeira para debaixo do tapete. De olho na reeleição, o correligionário de Bolsonaro acredita que o caso servirá para criação de novos protocolos.

Essa naturalização do passar pano diplomaticamente pelas instituições, em situações de violência obstétrica e sexual, expressa o quanto nós mulheres estamos inseguras neste país.

Apesar dos casos de violência obstétrica repercutirem na mídia com mais frequência nos últimos anos, por meio de muita militância dos movimentos feministas, de mulheres e de humanização no Sistema Único de Saúde, esta pauta ainda é recente nas famílias e percebemos isso como fator extrema vulnerabilidade. As mulheres precisam de informação, às famílias delas também.

Além disso, temos um sistema poderoso e estruturado envolto na lucratividade dos partos. Melhor dizendo, tem gente ganhando com isso – e é muito. A falta de informação é perigosa demais, e não sejamos ingênuas, a humanização do parto ameaçaria sim a existência de algumas corporações. Precisamos de força e coragem para lutarmos pelo direito de parir com afeto, segurança e respeito.

Trago aqui o relato das violências vividas no meu parto, no ano de 2010, que só foram descobertas em 2017, numa conversa com uma amiga militante no movimento de humanização do parto.
De início, por erro médico eu fui às pressas encaminhada a sala de cirurgia para uma maternidade pública em Natal/RN. Lá passei por diversas situações de violência obstétrica, e não só ela (acho)

A começar no pré-operatório quando uma técnica de enfermagem pediu para ver meus mamilos, ela queria saber se estavam no “ponto” de amamentar. Foi quando constatou que não estava de “acordo”, e começou a dizer que eu tinha sido relapsa, que durante toda a gravidez eu deveria ter feito exercício para fortalecimento do mamilo. Pra mim era uma grande novidade ouvir aquilo, pois no pré-natal nunca me foi falado nada sobre isso. Fiquei preocupada, com medo de não conseguir amamentar. Não saia mais naquele momento uma gota de leite.

Já no centro cirúrgico, o pai do meu filho não pode me acompanhar, foi colocado em uma sala ao lado para nos aguardar. Enquanto isso, um homem da equipe me perguntou quantos anos eu tinha, eu respondi vinte e um, foi quando ele comentou com um outro homem membro da equipe, olhando para o meu corpo despido, e não para o meu rosto, que eu parecia ter doze e deram risadinha. Foi nojento.

Eu lembro que fiquei com muita vergonha do meu corpo, de estar grávida, de não parecer um “mulherão”, de não ter “cara de mãe”… pois eu já estava encarando uma gravidez muito difícil, sem planejamento, num contexto de muitas questões conflitantes na cabeça. Lidar com aquele comentário invasivo sobre o meu corpo me fez achar que eu não era uma mãe.

Quando a médica começou a cirurgia me falou que eu tinha sido precipitada de ter vindo fazer a cesariana, que eu tinha líquido suficiente para esperar o parto normal. Que eu devia processar a médica ultrassonografista que me deu o parecer errado. E ficou de resmungo os 15 minutos do parto. Foi outra situação que me abalou ainda mais. Me sentia o tempo todo humilhada e culpada. Tive meu filho, apesar disso tudo, foi uma grande felicidade sentir o seu primeiro olhar.

Já no quarto coletivo fui informada que minha acompanhante, a avó paterna do meu filho, só podia ficar na unidade hospitalar comigo até 24h após o parto, e que as outras 24h eu deveria ficar só. Não entendi essa regra, nem a questionei, não tinha forças pra isso. Eu só queria que aquilo acabasse logo e eu pudesse ir pra casa com meu bebê.

Foi terrível a conduta do pós-operatório, e piorou quando fiquei sem o apoio da minha acompanhante. Mesmo assim, quando eu podia ajudava uma outra mãe a cuidar do seu bebê, que chorava muito mais que o meu. A gente combinava de uma olhar o bebê da outra quando íamos ao banheiro. O sentimento naquele quarto era de insegurança. Chorávamos baixinho para que a equipe não percebesse. Nem para chorar éramos livres.

Outro fato que me causou muito sofrimento foi a pressão da equipe de enfermagem para que meu filho pegasse meu peito. Elas diziam que eu não sabia posicionar o bebê no peito, que eu ia matar meu bebê sem respirar, que ele queria mamar mas que eu não tinha preparado o bico, e que portanto, a gente não teria alta no dia seguinte. Elas traziam o complemento de leite dizendo que eu não me esforçava para fazê-lo mamar. Eu já estava um caco, insone, quando por um milagre, do mais absoluto nada, depois de mais de 35h do parto, meu filho pegou meu peito direitinho e saímos daquele inferno 48 horas após a cesárea.

Na época eu não sabia que tinha nome pra isso, eu não tinha informação, me sentia apenas culpada por ter engravidado muito jovem, e achava que se as pessoas me tratavam mal na maternidade era porque no SUS devia ser assim mesmo. Essa foi minha experiência de parto. Demorei anos para falar sobre isso com a preocupação de hoje, sem o auxílio da risada naturalmente constrangida, com a indignação necessária. E ainda dói.

A minha atuação profissional na saúde pública e estudos sobre o Sistema Único de Saúde, me mostraram que o SUS “não é assim mesmo”, as pessoas é que são. E essas pessoas estão por toda parte, seja no sistema público de saúde, ou na rede privada. E quantos casos de violência obstétrica estão abafados na rede privada?

Por fim, voltando à maternidade pública em que ocorreu o estupro no RJ, os profissionais de sáude estão abalados, alguns passando por tratamento psicológico. A mulher vítima do estupro teve de parar a amamentação do seu bebê para tomar um coquetel anti-hiv na tentativa de evitar alguma contaminação. Sigamos atentas a este caso com a certeza que não se trata de um fato isolado.


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