domingo, 24 de julho de 2022

Ministério Público investiga denúncias de violência obstétrica em hospital da Região Central

Ministério Público instaurou processo administrativo para investigar se houve irregularidade na conduta da equipe médica da instituição


O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) investiga relatos de violência obstétrica no Hospital de Caridade Victor Lang, em Caçapava do Sul. Os casos tornaram-se públicos a partir da troca de mensagens entre mulheres que foram atendidas no local. Já são 87 relatos reunidos pelo grupo Coletivo Mães Caçapava do Sul, que recolhe, desde o início do ano, formulários de pacientes que queiram contar suas experiências no hospital. As histórias reportadas até agora incluem casos recentes, deste ano, e outros de até 10 anos atrás. A ideia surgiu a partir de conversas entre as mães e a troca de informações pela internet. 

Entre as violências que as mulheres alegam ter sofrido, estão relatos do que dizem ser uso inadequado do fórceps (um equipamento utilizado para forçar a saída do bebê na hora do parto), episiotomia (um procedimento cirúrgico que consiste em um corte no períneo da mãe para facilitar a passagem do bebê), além de lesões nos recém-nascidos, como fratura no crânio. Em comum, as mães dizem que não foram consultadas sobre as decisões. 

É considerado violência obstétrica todo o ato cometido no ciclo da gravidez (pré-natal, durante o parto ou pós-natal) sem o consentimento da mulher, de acordo com Izabella Rios, médica obstetra e ginecologista do hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre. 

— Não trata-se necessariamente de uma atitude ou gesto físico, pois pode ser psicológica ou um ato de negligência. São ações não cometidas pelas pessoas da família, mas sim por profissionais (médico, enfermeiro, técnicos). Nestes casos, não há consentimento das famílias e não são seguidas as orientações e evidências científicas — define a médica.

A partir das denúncias reunidas pelo grupo coletivo, o MP instaurou um processo administrativo de acompanhamento de políticas públicas. Trata-se de uma consulta aos órgãos fiscalizadores da entidade para saber se os procedimentos do hospital estão seguindo os protocolos corretos e para identificar se houve falhas no atendimento. 

O processo ficou a cargo do promotor Gabriel Capelan, que preferiu não se manifestar enquanto a apuração está em andamento. Contudo, o MP confirmou que já questionou e aguarda respostas de três entidades: Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), o Conselho Regional de Enfermagem do Estado (Coren) e a 8ª Coordenadoria Regional de Saúde (8ªCRS), responsável pelo município. 

A promotoria espera entender, com esses questionamentos, quais as reais condições de estrutura e atendimento do hospital, e confirmar se as situações relatadas se comprovam.  

A advogada especialista em direito da mulher e vice-presidente do Coletivo Nacional no enfrentamento à violência Obstétrica (Nascer Direito) Laura Cardoso  explica que toda e qualquer técnica utilizada no parto não pode ser decidida sem o consentimento da mãe.

— Tudo se resume a essa palavra, que é o consentimento. E não se não é definido antes, não pode ser feito. Há casos em que o médico pode afirmar que conversou com a mulher durante o parto, mas é preciso levar em conta o contexto de vulnerabilidade que uma mãe apresenta naquele instante — afirma Laura, que auxilia o coletivo com a parte jurídica.

À reportagem de GZH, o Cremers informou que já instaurou uma sindicância para investigar os casos. Já o Coren diz estar a par dos casos e está com processo fiscalizatório instaurado para averiguar as denúncias e, se for o caso, aplicar as providências cabíveis. Por fim, a 8ªCRS afirma que acompanha os serviços de saúde da região e que todos os questionamentos do MP serão respondidos, de acordo com a coordenadoria, preservando a identidade dos pacientes.  

Trauma na cabeça


Um dos relatos é de uma costureira, de 34 anos, mãe de duas meninas. Ela diz ter sofrido violência no segundo parto, em junho de 2019 - embora que na época ainda não tivesse consciência disso. De acordo com ela, o período pré-natal foi tranquilo, e veio a vontade de ter o parto natural. Mas recorda de situações difíceis no momento do nascimento. Ela relata ter sofrido uma episiotomia sem ser consultada. 

— Esse nome eu conheço só hoje, porque fui me informar pra entender o que aconteceu naquele dia. Além disso, ele (o obstetra) também utilizou o fórceps e, com isso, fraturou e afundou o crânio da minha filha. No momento que ela nasceu e foi levada para os primeiros atendimentos, era visível que a cabeça dela estava afundada – recorda a mãe, que guarda as páginas com registros das avaliações médicas da filha. 

Ela ficou sabendo do fato apenas cerca de uma hora depois. Em razão da lesão, a mãe não conseguiu ter o contato inicial com a filha. Depois, a criança ainda precisou passar por uma série de exames e procedimentos nos primeiros 15 dias de vida, além de um ano inteiro de acompanhamento médico para saber se conseguiria desenvolver a parte físico-motora. 

Hoje, a criança está bem e saudável. Foi preciso recorrer a consultas particulares em Santa Maria, além de encaminhamento com um neurocirurgião. Depois disso, a pequena se recuperou. No entanto, permaneceram as lembranças ruins de um momento tão importante para a mãe.  

— É um misto de dor, revolta e indignação. Não tive a chance de ter minha filha nos braços naquele momento. É uma ferida aberta. Tudo isso devido a esse trauma na cabeça. Tenho certeza que, se esse fórceps fosse bem colocado, não teria passado por tudo isso — lamenta.

Privada de alimentação


Uma funcionária pública de 26 anos teve a primeira filha em janeiro de 2021. Ela foi informada de que o marido poderia ficar junto com ela durante todo o procedimento do parto. Porém, ficou sozinha. De acordo com ela, estava acompanhada da mãe no quarto antes do parto, então pediu que o marido subisse para trocar de lugar, algo que foi negado pela equipe de enfermagem.  

Depois, durante o nascimento da filha, a gestante também passou por uma episiotomia, sobre a qual foi comunicada somente depois do parto.

— Me disseram que era normal e que precisava apenas descansar. Foi então que me encaminharam para outra sala, apagaram as luzes, fecharam a porta e me deixaram ali, sozinha, naquela situação. Foi muito desesperador esse momento. Eu gritava para elas (enfermeiras) me tirarem de lá. Pedi que me tirassem mesmo que eu desmaiasse. Fiquei sozinha no quarto por três horas, sem minha filha, nem acompanhante. Até que pedi pra voltar pro quarto. Só que toda vez que tentava levantar, ficava fraca e desmaiava — recorda. 

A mãe também relembra, de forma melancólica, os momentos perdidos com a filha na hora do nascimento: 

— A minha filha nasceu às 14h. Só fui conseguir receber a primeira visita depois das 19h. Ela nasceu, cortaram o cordão umbilical, e nos separaram de sala. Fiquei assustada, porque não consegui nem vê-la direito. 

"Castigo" antes do parto


O que era para ser um momento de acolhimento para uma mãe de 29 anos, jornalista, tornou-se um “castigo”. Esse foi o termo usado, segundo ela, por uma enfermeira do hospital enquanto aguardava para ter um parto normal, após a bolsa romper. 

Conforme o relato, a mãe comeu uma fruta e bebeu água durante exercícios pré-parto, horas antes do procedimento. Ela relembra que, por vezes, funcionários do hospital tentaram convencê-la a realizar uma cesárea, apesar de ainda haver condições para um parto normal.  

Com isso, ela conta que foi encaminhada a um quarto e aguardou durante horas, sendo que, quando questionou a demora, recebeu uma resposta irônica. 

— Chegou no final do dia e eu não tinha nenhum retorno ainda. Fiquei mais de 12 horas sem comer e nem beber nada desde o pré-parto, até que uma enfermeira disse: “como você comeu, você ficou de castigo”. Eu não acreditei no que ouvi. Como você deixa uma mãe com mais de 24h de bolsa rompida e “de castigo”? Foi absurdamente constrangedor e toda vez que eu pensava, chorava — conta a jornalista. 

O que diz o hospital 


O Hospital Victor Lang pronunciou-se por meio do advogado Antonio Borges. Segundo ele, a instituição ainda não recebeu nenhum documento sobre erro médico e nem foi notificada de nenhuma abertura de procedimento por parte do MP.  

— Nós assumimos a instituição em dezembro de 2020. Os relatos, ainda que informais, são anteriores a esse período. Fizemos uma análise de estrutura do hospital, verificamos se estamos atendendo conforme as orientações adequadas da Secretaria Estadual da Saúde, se os funcionários estão devidamente treinados, e não temos nenhuma acusação específica a um funcionário específico — explica Borges. 

Questionado sobre o que o hospital pretende fazer caso alguma irregularidade seja identificada, o advogado garante que o local está bem preparado: 

— Não é nosso interesse gerar um atendimento de política pública violento, errado. A direção do hospital nunca se omitiu. Vamos apurar, vamos investigar. Se houve erro de funcionários, não vamos hesitar em demitir. Falhas há em qualquer setor, o que não se pode permitir é que essas falhas virem vícios e costumes. Estamos trabalhando pra que, uma vez verificado, possa ser corrigido. 

Reunir os relatos das mães não foi a primeira atitude tomada pelo coletivo. Em maio deste ano, representantes do grupo buscaram a prefeitura. O Executivo informou, por meio de nota, que também aguarda respostas por parte do hospital e que as denúncias já recebidas foram encaminhadas ao MP. Ressalta, ainda, que em relação ao serviço de pré-natal, de responsabilidade do município, não há registro de reclamações.  

Atualmente, o processo administrativo instaurado pelo MP investiga apenas a conduta da instituição, e não há investigação por parte da Polícia Civil diretamente a funcionários do hospital ou pessoas específica.

— Alguns relatos chegaram ao MP de forma individual e outras mães entraram de forma coletiva. Infelizmente algumas famílias ainda têm receio de denunciar formalmente e sofrer retaliações, ou ainda precisar (futuramente) de atendimento médico vindo destes mesmos profissionais, por se tratar de uma cidade pequena — explica.

Alerta e prevenção


A advogada Laura Cardoso recomenda também que as gestantes formulem o chamado "plano de parto", que pode ser elaborado previamente e entregue na maternidade. O plano deve ser anexado ao prontuário no dia do parto.

Existem canais oficiais para denúncia caso a mulher identifique algum tipo de violência obstétrica ou desconfie de tal ato. Entre eles, estão o Ministério da Saúde (136), o Disque Denúncia de Violência contra a Mulher (180) e a própria ouvidoria dos hospitais.

Confira a manifestação do Coren-RS a respeito do caso
"Diante do noticiado pelo Ministério Público Estadual (MPE), o Departamento de Fiscalização (Defisc) do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS) realizou inspeção in loco no Hospital de Caridade Dr. Victor Lang, em Caçapava do Sul, a fim de apurar os fatos. Na ocasião, a Fiscalização não identificou qualquer situação que possa caracterizar atitude desrespeitosa com as pacientes, no que concerne à assistência de Enfermagem prestada. Aliás, identificou que as(os) profissionais de Enfermagem são comprometidas(os) com a assistência humanizada ao parto.
Assim, durante a inspeção, não foi constatada nenhuma irregularidade ou ilegalidade na assistência prestada pelas(os) profissionais de Enfermagem capaz de configurar violência obstétrica. A Fiscalização encontrou uma equipe de Enfermagem capacitada, que se mantém em atualização permanente e que pauta a assistência em evidências científicas atualizadas.
Cabe, por fim, ressaltar que a instituição seguirá sendo acompanhada pelo Coren-RS."





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