Uma visão simples, prática e direta deste tema essencial ao estudo do Direito Médico.
A responsabilidade profissional do médico é baseada em uma tríade: responsabilidade civil, responsabilidade penal e a responsabilidade administrativa. Isso significa que a responsabilidade que recai sobre o médico é a mesma que todos nós estamos sujeitos.
Por exemplo, a partir do momento que acordamos pela manhã e saímos de nossa residência, já estamos sujeitos a alguma forma de responsabilização. A responsabilidade é inerente aos nossos atos diários e comuns na nossa vida, independentemente da profissão exercida. Contudo, quando transportamos isso para a vida profissional a responsabilidade pelos atos da vida civil adquire alguns contornos diferentes.
Falamos dessa tríade, portanto, na medida em que um único ato pode gerar três formas de responsabilização: no âmbito civil, a responsabilidade é baseada em um possível ressarcimento de ordem financeira. Na penal existe a possibilidade de restrição do direito de liberdade, de ir e vir. Já a responsabilidade administrativa é baseada exclusivamente sobre questões profissionais – éticas e funcionais, basicamente.
Se o profissional, por exemplo, estiver vinculado a algum serviço público, estará sujeito a um processo disciplinar administrativo que pode culminar até mesmo com a sua expulsão. Também temos a figura dos órgãos de fiscalização, que podem punir o estabelecimento ou o profissional mediante a constatação de responsabilidade. Essas três esferas não necessariamente têm ligação direta entre si, elas podem aparecer de maneira autônoma em cada caso.
Responsabilidade Civil
A relação entre médico e paciente é capaz de ensejar uma possível indenização de ordem financeira. Opiniões contrárias a parte, esta relação é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), que transformou o médico em prestador de serviço e o paciente em usuário consumidor.
Então, para que a responsabilidade possa ser efetivamente apurada, deve ser precedida de um fato antijurídico. Há que se ter uma conduta ou uma omissão capaz de gerar um dano injusto suportado pela vítima, tanto de ordem patrimonial quanto extrapatrimonial, que pode ser, por exemplo, um ressarcimento de despesas ou um dano exclusivamente moral. É preciso haver, nestas hipóteses, um nexo de causalidade, caso contrário, não há como estabelecer uma relação e se chegar à responsabilização de alguém.
Dentro do aspecto civil, encontramos dois tipos de responsabilidade: a contratual, que é relativamente simples porquanto deriva de uma quebra contratual, o que pressupõe a existência prévia de um contrato estabelecido livremente entre paciente e o profissional. Na maioria das vezes esse contrato é realizado de forma tácita e compreende as relações restritas ao âmbito da medicina privada, isto é, o profissional que foi livremente escolhido e contratado pelo paciente, estabelecendo uma manifestação de vontade de ambas as partes, ainda que este contrato não esteja “formalizado”.
Há também a chamada extracontratual, que acaba acontecendo na grande maioria das vezes, justamente porque derivada de uma relação espontânea, quando as circunstâncias da própria vida colocam frente a frente o médico e o paciente, v.g., quando este se dirige ao hospital à procura de uma assistência médica e é atendido pelo profissional disponível.
Nesta hipótese, não há um contrato firmado, mas cada um tem uma obrigação: o paciente, de cumprir as determinações do médico e o médico de fazer o melhor para que aquele paciente fique bem, para que se restabeleça da melhor maneira possível.
Carga probatória de responsabilidade
Na responsabilidade contratual, o autor da ação tem uma certa facilidade em comprovar a existência do contrato, o fato do inadimplemento e o dano com o nexo de causalidade. Cabe ao réu, noutra via, demonstrar que o dano decorreu de uma causa estranha – as chamadas excludentes de ilicitude.
A prova está lastreada no próprio contrato e da quebra daquilo que foi estabelecido entre as partes. Se há um contrato de prestação de serviços médicos e este não é cumprido a contento, basta que se comprove a quebra contratual.
Na responsabilidade extracontratual, também chamada de delituosa, cabe ao autor da ação provar a imprudência, a negligência ou imperícia do causador do dano. Se o autor não provar estes elementos caracterizadores da culpa, o réu se isenta de responder pela indenização.
Esta é a regra geral das provas no processo civil. Mas, evidentemente, há exceções.
E como se constrói a responsabilidade civil do médico?
A necessidade de indenizar está prevista no Código Civil e nele encontramos, basicamente, dois artigos essenciais a esta construção:
O artigo 186 do Código Civil diz que “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Por sua vez, o artigo 927 indica a obrigação de reparar o dano, quando há o ato ilícito, sendo que o parágrafo único ainda traz a possibilidade de responsabilidade direta, ou seja, independentemente de culpa nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Acerca, portanto, da teoria do risco, quando falamos da área da saúde, a primeira discussão surgiu justamente com esta previsão contida no parágrafo único do artigo 927.
Caracterizar-se-ia a atividade médica como de risco? Levando em conta que a relação médica se constitui como uma obrigação de meio, e não de resultado, a conclusão a que se chegou foi a que na atividade médica não aplicaria essa segunda hipótese de responsabilização direta, por não estar prevista em lei. Haveria que se provar então a ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia.
Este assunto está voltando à tona por conta da chamada “medicina estética”. Nestes casos, há um paciente que não está em situação de risco, fisicamente saudável e que vai se submeter a uma intervenção absolutamente eletiva.
Se o médico, nesta prática, causar um dano ao seu paciente, a jurisprudência vem caminhando no sentido de que não se aplicaria a tais casos qualquer margem de discussão a respeito da negligência, imprudência e imperícia, encerrando a questão por intermédio da aplicação do artigo 927, parágrafo único do Código Civil, conforme explicitado acima.
Sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor (CDC) temos na redação do artigo 14
[i] a questão da responsabilidade pelo serviço defeituoso.
É estranho pensar na relação médico-paciente como um “serviço defeituoso”, de forma unicamente consumerista, mas é assim que a jurisprudência se firmou.
O referido artigo diz que: “o fornecedor de serviços responde independentemente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.” Aqui está a responsabilidade objetiva, em que o hospital está sujeito à responsabilidade direta por ser um fornecedor de serviço.
- 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido.
- 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
- 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
O parágrafo 3º traz algumas excludentes de ilicitude específicas do CDC; contudo, há outras inseridas no Código Civil que devem também ser aplicadas nesta relação de maneira conjunta naquilo que o Código consumerista não regulamenta e vice-e-versa. Evidentemente que as normas devem caminhar, sempre, de maneira harmônica, não isoladas no mundo jurídico.
O parágrafo 4º, por sua vez, traz a chamada responsabilidade subjetiva em que o autor tem que demonstrar, então, a existência de culpa por parte do profissional, em alinhamento com os artigos 186 e 927 do Código Civil; assim dispõe o mencionado parágrafo:
- 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
Nesse toar, podemos dizer que o dever de indenizar derivará de dois elementos fundamentais: nexo de causalidade entre o ato e o resultado danoso, lastreado na verificação da culpa e a existência do dano (ainda que exclusivamente de ordem moral).
E qual seria a principal prova em uma ação de responsabilidade civil? Nesses casos da relação médico-paciente, o principal documento probatório é o “prontuário médico”. Este é o elemento principal de prova e quando falamos de aplicação do CDC temos uma característica muito específica que é a inversão do ônus probandi.
No Código de Processo Civil (CPC) também temos a distribuição dinâmica quanto ao ônus da prova (art. 373); contudo, é através do artigo 6º
[i], inciso VIII do CDC que essa possibilidade se afigura bastante simplificada:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(…)
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
Isso significa que o paciente, na sua relação com o médico ou o hospital, será invariavelmente hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência, na medida em que não detém o conhecimento técnico suficiente a ensejar a sua igualdade material no processo.
Outra questão relevante quanto a aplicação do CDC é a prescrição. Se levássemos em conta apenas o Código Civil, haveria a possibilidade de adotar a prescrição de três anos a partir da caracterização da existência do ato ilícito. No CDC, para as relações de consumo, são cinco anos.
Excludentes de Ilicitude.
As excludentes são situações em que mesmo existindo o ato e o possível dano, um detalhe da relação pode retirar a ilicitude da conduta e, portanto, eliminar o dever de indenizar. São elas
[i]:
1) legítima defesa: difícil exemplificar no Direito Médico, mas é caracterizada por uma reação a uma injusta agressão, para preservar a própria integridade.
2) estado de necessidade: aquele que age em situação de emergência. Por exemplo, um médico que atua em um voo. Isso retira a responsabilidade civil do profissional naquele momento. Ele não possui elementos para realizar o ato médico na sua forma plena, não podendo ser responsabilizado por um eventual insucesso no “atendimento”.
3) exercício regular de um direito: O médico realiza uma cirurgia, a qual necessita de uma incisão e o paciente o acusa de ter feito um corte e solicita indenização. Está implícito que o médico está exercendo regularmente o direito dele de cortar para poder realizar a cirurgia, que foi previamente autorizada pelo paciente, ainda que tacitamente.
4) estrito cumprimento de dever legal: A comunicação de doença de notificação compulsória é o exemplo clássico. O médico que faz essa comunicação quebra parcialmente o sigilo médico, mas ele faz isso porque a lei exige. Não há como o paciente requerer uma indenização nestes casos.
5)
Caso Fortuito e Força Maior[ii]: o equipamento apresenta defeito no momento do procedimento e isenta o médico de culpa. No caso de força maior podemos exemplificar com uma tempestade, que cause uma inundação no ambiente hospitalar.
6)
Culpa Exclusiva da Vítima[iii]: O CDC, trata como culpa exclusiva do consumidor, o paciente que, por exemplo, não respeita o jejum pré-operatório ou que não segue as orientações do médico.
7) Culpa Exclusiva de Terceiro: no ato da compra da medicação prescrita pelo médico, o farmacêutico fornece a medicação errada para o paciente. Desde que a receita médica esteja obviamente legível, sem que o tenha induzido a cometer o erro, é ele o responsável pelo dano, e não o médico prescritor.
Casos Práticos
Caso 01. O paciente chega ao hospital em situação de urgência e precisa ser atendido imediatamente. O hospital não está em uma situação relativamente precária, e todos os plantonistas estão em atendimento. O paciente fica por alguns momentos agonizando em uma maca e vem a óbito. Como se aplica a responsabilidade civil neste caso?
Existe uma possível omissão voluntária que causou o óbito, ou seja, causou um dano? Como criar o nexo de causalidade?
1ª etapa: Faça a reconstrução dos fatos a partir do final. Comece do óbito:
– A morte ocorreu por qual razão? Parada Cardíaca
– Por qual razão o paciente teve parada cardíaca? O que se sabe é que ele conseguiu chegar até o hospital
– Esse óbito era evitável tivesse tido o atendimento no tempo necessário? Provavelmente sim.
Então existe um responsável por isso e é preciso buscar por ele. No momento da chegada dele todos os plantonistas estavam em atendimento.
– Dá para responsabilizar algum plantonista por uma eventual omissão? Não, todos estavam em atendimento.
– Então quem foi o possível causador deste óbito? Foi o hospital, por não disponibilizar os meios necessários para o atendimento deste paciente, não se falando em responsabilidade médica (em outro artigo trataremos da Responsabilidade Civil do Hospital).
Caso 02. Uma paciente já chegando no final da gravidez chega em um hospital do interior em uma cidade pequena, prestes a dar à luz, por volta das 21 horas. Ela está com dores abdominais. O obstetra de plantão faz uma avaliação e diz que não é o momento ainda do parto e pede para a grávida retornar à sua casa e comparecer ao hospital apenas se as dores se tornarem mais intensas.
À meia-noite ela volta ao hospital já em trabalho de parto. O mesmo obstetra – o único do hospital – estava fazendo um outro parto neste momento. O parto da paciente é feito por uma equipe de enfermagem, infelizmente as manobras realizadas não foram as mais corretas e o feto veio a óbito.
Devemos levar em consideração, para fins de estudo, que a primeira avaliação do médico estava correta. Naquele momento não era necessário ainda dar entrada na internação dessa paciente.
Faremos, então, duas análises da conduta do médico (sem entrar especificamente na análise da figura do hospital):
– O médico fez o primeiro atendimento e pediu que ela retornasse mais tarde.
– Ela retornou mais tarde, mas infelizmente ele estava fazendo um outro procedimento, o que não é muito diferente da situação anterior em que os plantonistas estavam todos em atendimento, exceto pelo fato de que ele já tinha feito um primeiro contato com essa paciente.
A responsabilidade Civil do Médico: não há como vislumbrar uma espécie de omissão culposa indenizável, apenas se restar comprovado: 1. Erro no atendimento primário; 2. Possibilidade de sair do atendimento em andamento e atender este que, aparentemente, era mais urgente.
A responsabilidade Civil da Enfermagem: não há como vislumbrar responsabilidade das enfermeiras que realizaram o parto equivocadamente, na medida em que agiram sob total estado de necessidade, pois não havia opções.
Nos parece ser mais viável a responsabilidade objetiva do Hospital.
Caso 03. Paciente dá entrada em hospital alegando estar com muita falta de ar, dor torácica com irradiação para o braço esquerdo, e muito agitado, alegando dores difusas.
Médico faz uma rápida anamnese, conclui que o paciente está com uma crise de ansiedade, determina aplicação de calmante com reavaliação depois de uma hora, diagnosticando-o com uma forma de doença psiquiátrica (transtorno de ansiedade).
Paciente tem uma parada cardíaca, e vem a óbito.
– A morte ocorreu por qual razão? Parada Cardíaca
– Por qual razão o paciente teve parada cardíaca? Possível erro de diagnóstico.
– Esse óbito era evitável tivesse tido diagnóstico correto, no tempo necessário? Talvez sim, o fato é que o erro de diagnóstico não lhe proporcionou o tratamento correto a tempo.
Então existe um responsável por isso e é preciso buscar por ele.
– Dá para responsabilizar o médico plantonista por um eventual erro médico? Muito provavelmente sim.
– Então quem foi o possível causador deste óbito? O profissional, pelo erro de diagnóstico.