sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Clínica e profissional terão que indenizar família por cirurgia equivocada

Número do processo: 0714081-74.2019.8.07.0001
Classe judicial: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7)
AUTOR: A.C.R., A.E.B., J.P.B.
RÉU: C.V., V.M.A.L.
SENTENÇA
I - RELATÓRIO
Trata-se de ação de conhecimento proposta por A.C.R., A.E.B. e J. P. B. em desfavor de C.V. e V.M.A.L., partes qualificadas nos autos.
Os autores narram que tinham o desejo de aumentar a família constituída pelo casal, A. e A., e pelo filho de 12 anos, J. P., o que motivou a busca por um especialista em endometriose, o Dr. C., na C.S., para possibilitar a realização do sonho.
Afirma que agendou o procedimento cirúrgico via laparoscópica para o tratamento de endometriose peritoneal, mas que 10 dias depois do procedimento teve diversas dores abdominais e sangramento que a fez retornar ao consultório.
Aduz que, após a realização de diversos exames constatou-se que o médico fez procedimento diverso do agendado, pois ao invés de fazer a cirurgia para o tratamento da endometriose, lhe foi retirado o útero.
Sustenta que, mesmo que não tivesse êxito no procedimento para endometriose, ainda poderia tentar nova gestação por meio de inseminação artificial, mas todas as possibilidades foram eliminadas com a retirada do útero, o que causou profunda frustação na família.
Relata que o próprio médico assumiu o erro em uma consulta pós-operatória e confessou que tal fato nunca deveria ter acontecido.
Requer a condenação do réu ao pagamento de dano moral à autora A., no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais); ao marido, A., de R$ 100.000,00 (cem mil reais) e ao filho, J. P., de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
O réu V.V. apresentou contestação (ID 39600870). Suscita preliminar de ilegitimidade passiva. Nega a existência de relação jurídica com a autora, pois a cirurgia não foi realizada na clínica, mas sim no H.S.L. e afirma que nada recebeu de pagamento pelo procedimento.
O réu, C.V., também apresentou contestação (ID 39602741). Afirma que a autora foi inicialmente atendida na C.O., realizou diversos exames e foi diagnosticada com endometriose profunda. Relata que no dia 04/04/2018, a mesma compareceu à C.V. para buscar um relatório médico para a solicitação de autorização do procedimento junto ao plano de saúde.
Sustenta que a cirurgia foi realizada no H.S.L. e transcorreu sem intercorrência ou sequela. Defende que não houve erro médico, mas mudança de conduta para histerectomia em virtude dos achados intra-operatórios em face da endometriose profunda, cuja recomendação é a histerectomia total, não restando caracterizada conduta negligente, imperita ou imprudente.
Impugnou os áudios produzidos unilateralmente e de forma clandestina, caracterizando-os como prova ilícita, bem como o valor do dano moral pretendido.
Réplica (ID 41199262).
Os autores (ID 42582421) e os réus (ID 42624585) dispensaram a produção de outras provas.
Parecer do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios oficiando pelo julgamento de procedência em relação à primeira e ao segundo autores e de improcedência em relação ao menor.
Os autos foram conclusos para sentença (ID 45382565).
É o relato do necessário. DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Procedo ao julgamento conforme o estado do processo, nos moldes do artigo 354 do CPC, pois não há a necessidade de produção de outras provas, o que atrai a normatividade do artigo 355, inciso I, do Novo Código de Processo Civil.
No mais, o Juiz, como destinatário final das provas, tem o dever de apreciá-las independentemente do sujeito que as tiver promovido, indicando na decisão as razões da formação de seu convencimento consoante disposição do artigo 371 do CPC, ficando incumbido de indeferir as provas inúteis ou protelatórias consoante dicção do artigo 370, parágrafo único, do mesmo diploma normativo.
A sua efetiva realização não configura cerceamento de defesa, não sendo faculdade do Magistrado, e sim dever, a corroborar com o princípio constitucional da razoável duração do processo – artigo 5º, inciso LXXVIII da CF c/c artigos 1º e 4º do CPC.
A legitimidade ad causam ordinária, uma das três condições da ação, faz-se presente quando há a pertinência subjetiva da ação, ou seja, quando os titulares da relação jurídica material são transpostos para a relação jurídica processual.
À luz da teoria da asserção, a análise das condições da ação deve ser feita à luz das afirmações do demandante contidas em sua petição inicial. A correspondência entre a afirmação autoral e a realidade vertente dos autos constitui, pois, questão afeta ao mérito, a ser enfrentada em sede de eventual procedência ou improcedência da pretensão autoral.
No caso, os autores afirmam que uma das consultas anteriores ao procedimento foi realizada na C.S., que é o nome fantasia da ré V.V.M.A.L., de modo a integrar a cadeia de consumo e, nos termos do art. 7º, parágrafo único, do CDC, possuir legitimidade para responder civilmente em face do consumidor.
A análise acerca da sua responsabilidade, ou não, é questão de mérito, mas que não afasta a sua legitimidade para figurar no polo passivo da demanda.
Assim, rejeito a preliminar.
Não há outras questões preliminares ou de ordem processual pendentes de apreciação. Por outro lado, constato a presença dos pressupostos de constituição e desenvolvimento da relação processual, do interesse processual e da legitimidade das partes, razão pela qual avanço à matéria de fundo.
Ressalto que a demanda deve ser solucionada à luz do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), uma vez que a relação jurídica estabelecida entre as partes deriva do fornecimento de produtos e serviços. Os profissionais liberais que atuam como prestadores de serviços, tal como ocorre com o requerido, não estão fora da disciplina do Código de Defesa do Consumidor.
Em relação ao fornecedor de serviço em geral, como no caso da clínica, vigora a responsabilidade objetiva a que se refere o caput do art. 14 do CDC. Todavia, quanto ao médico demandado, deve ser aplicada a ressalva contida no § 4º do art. 14 daquele código, que reza que "a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa".
De fato, o tratamento legal dado à matéria permite divisar dois tipos distintos de responsabilidade: a do profissional liberal, de natureza subjetiva, a depender da verificação de culpa (art. 14, § 4º, CDC) e a dos demais fornecedores de serviço, de natureza objetiva (art. 14, caput, CDC), ou seja, independentemente de culpa.
Assim, se o profissional provar que não agiu com dolo ou culpa (imperícia, imprudência ou negligência) ou que ocorreu alguma das excludentes de nexo de causalidade (caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da paciente) afasta-se a sua responsabilidade e, consequentemente, o dever de indenizar.
É incontroverso nos autos que a requerente após algumas consultas, dentre as quais, a realizada nas dependências da clínica ré, foi submetida a procedimento cirúrgico realizado pelo requerido Cláudio, que culminou com a retirada do útero. Houve, também, consulta pós cirúrgica no estabelecimento da clínica ré.
Também dúvidas não há quanto ao ato praticado pelo réu C. e o respectivo nexo causal em relação ao resultado não almejado, uma vez nos procedimentos acertados não havia qualquer previsão de retirada do útero, conforme relatórios médicos subscritos pelo próprio réu Cláudio (ID 35629030 - Págs. 3/4) e solicitação de procedimento (ID 35629030 - Pág. 2).
No tocante à responsabilidade civil subjetiva do profissional liberal, os relatórios médicos são claros quanto ao procedimento para o tratamento de endometriose peritoneal que seria realizado (ID 35629030 - Págs. 3/4) e, também, indicado na solicitação de cirurgia (ID 35629030 - Pág. 2).
Após a cirurgia, o réu Cláudio emitiu, também, o relatório médico de atendimento, em que relatou as datas das consultas anteriores, o diagnóstico da paciente e o procedimento de videolaproscopia para endometriose sem intercorrências cirúrgicas (ID 35633542), que ele acreditava ter realizado.
Ou seja, até aquela data o próprio médico ainda não havia se dado conta de que tinha realizado o procedimento errado na paciente.
De posse do resultado dos exames pós cirúrgicos, foi que o médico constatou o erro e conversou com a autora, em consulta acompanhada de terceira pessoa, na qual foram gravados os áudios juntados aos autos.
Neles, o réu afirma, categoricamente, que o procedimento não deveria ter sido realizado e que não foram verificadas intercorrências que justificassem a retirada do útero. Tal prova foi impugnada pelo réu.
Contudo, diferentemente da tese defendida pelo réu, “É lícita como meio de prova a gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro (RE nº 583937, STF) (...)”. (Acórdão 1101639, 20140111602000APC, Relator: DIAULAS COSTA RIBEIRO, 8ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 7/6/2018, publicado no DJE: 11/6/2018. Pág.: 684/688).
Nesse passo, considerando que o réu não protestou pela produção de outras provas com o condão de comprovar tese de que a retirada era o procedimento adequado ao caso apto a justificar a histerectomia (ID 42624585), restou caracterizada a conduta negligente do mesmo que, por descuido ou desatenção, resultou na desnecessária retirada o útero da autora.
Em relação à segunda ré, “A responsabilidade da clínica é, em tese, objetiva, lastreada no risco da atividade, amparada no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, pois se encaixa no conceito de fornecedor, bastando a demonstração da falha na prestação de serviços, conexa à lesão sofrida, para ensejar a indenização. (...) Conforme o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, caracterizada a culpa do médico, o hospital responde de forma objetiva e solidária.” (Acórdão 1145446, 07126853320178070001, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, 2ª Turma Cível, data de julgamento: 23/1/2019, publicado no DJE: 31/1/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
Como já consignado, constata-se que a autora foi até a Clínica para fazer consultas pré e pós-operatória, conforme os se observa dos relatórios médicos juntados aos autos com a sua logomarca (ID 35629030 - Págs. 3/4 e 35633542).
Assim, independente do fato de não ter recebido qualquer pagamento pelo procedimento cirúrgico, pois realizado em outro local, além de integrar a cadeia de consumo, tem o réu como participante do seu quadro clínico e principal sócio, de modo a caracterizar o nexo de causalidade entre a conduta pessoal do médico, o serviço por ela intermediado e o resultado danoso, apto a impor à clínica o dever de reparar o dano solidariamente.
Presentes os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva do médico e objetiva da clínica, passo à análise do dano moral alegado.
No caso em apreço, conforme se extrai do áudio (ID 35631825), a autora tinha procurado o réu com a intenção de engravidar. Tal fato foi mencionado pelo próprio médico na conversa.
A intenção manifestada pela autora A. está diretamente relacionada ao planejamento familiar e ao princípio da dignidade humana (art. 226, § 7º, da CF), cuja violação atinge o direito da personalidade dela, do seu esposo, o segundo autor, e de seu filho, com o condão de caracterizar o dano moral alegado em relação a eles.
Ressalte-se que "quanto ao dano moral, em si mesmo, não há falar em prova; o que se deve comprovar é o fato que gerou a dor, o sofrimento. Provado o fato, impõe-se a condenação, pois, nesses casos, em regra, considera-se o dano in re ipsa" (AgRg no AREsp 259.222/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2013, DJe 28/02/2013).
No particular, destaco que o direito fundamental vilipendiado diz respeito à família como um todo, independentemente da expectativa do filho.
Assim, caracterizado o dever dos réus de reparar os danos morais compensáveis em relação aos autores, passo ao arbitramento do quantum.
Como premissa básica, o quantum indenizatório tem o condão de compensar o dano moral sofrido, bem como punir o agente responsável. Todavia, deve haver cautela na quantificação indenizatória, de modo a evitar perspectiva de enriquecimento sem causa para aquele que o pleiteia.
O valor da indenização deve ser proporcional ao dano moral efetivamente sofrido, sem olvidar-se, entretanto, de outras variáveis como o grau de culpa e a capacidade econômica dos responsáveis.
Deste modo, atento à extensão do dano, ao direito de personalidade violado, às condições das partes envolvidas e atendendo a um critério de razoabilidade e equidade, tenho como adequado à compensação dos danos morais suportados pela parte autora A., o valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e aos autores A. e J. P. B. o montante de R$ 7.000,00 (sete mil reais).
Referida quantia, frente à gravidade e consequência da conduta no caso concreto, além de não ser apta a configurar enriquecimento sem causa do autor, se afigura suficiente a impor reprimenda à desarrazoada conduta ilícita praticada pelos réus, para que noutras ocasiões não caia em recidiva, e viole, novamente, o ordenamento jurídico pátrio.
Gizadas estas razões, outro caminho não há senão o da parcial procedência dos pedidos aduzidos na inicial.
E é justamente o que faço.
Ressalto que os precedentes e/ou enunciados de Súmulas acima citados, apenas corroboram, como reforço argumentativo, os fundamentos adotados nessa sentença como razão de decidir. Não se limitando a sentença à adoção de precedente como razão única da decisão, desnecessário se torna demonstrar os fundamentos determinantes do precedente e sua inter-relação com o caso em julgamento, consoante exigência trazida pela nova ordem processual civil, no artigo 489, § 1º, incisos I e V.
III – DISPOSITIVO
Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados A.C.R. e A.E.B. em desfavor de C.V. e V.M.A.L. para CONDENAR, solidariamente, os réus ao pagamento do valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e aos autores A. e J. P. B. o montante de R$ 7.000,00 (sete mil reais), a título de danos morais, todos acrescidos de correção monetária pelo INPC a contar desta data e de juros de mora de 1% ao mês a contar da citação.
Declaro, pois, resolvido o mérito, nos termos do art. 487, inciso I, CPC.
Em razão da sucumbência condeno a parte requerida ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios, estes arbitrados em 10% do valor da condenação, na forma do art. 85, § 2º, do CPC.
Após o trânsito em julgado, não havendo outros requerimentos e recolhidas as custas processuais, dê-se baixa e arquivem-se os autos, com as cautelas de estilo.
Derradeiramente, considerando o conteúdo do art. 6º do CPC, em especial o dever de cooperação que permeia o processo civil brasileiro, concito as partes para que, diante da publicação da presente sentença, zelem pelo bom desenvolvimento processual, observando, especialmente no que tange o recurso de Embargos de Declaração, o exato conteúdo do art. 1.022 do diploma processual, evitando, desse modo, a interposição de recurso incabível.
Diante de tal ponderação, ficam advertidas as partes, desde já, que a oposição de Embargos de Declaração manifestamente protelatórios, em especial os que visem unicamente a reanálise de provas ou o rejulgamento da causa, será alvo de sancionamento, na forma do art. 1.026, § 2º do mesmo diploma, na esteira dos precedentes do Eg. TJDFT (Acórdãos 1165374, 1164817, 1159367, entre outros).
Sentença prolatada em atuação no Núcleo Permanente de Gestão de Metas do Primeiro Grau – NUPMETAS - 1, instituído pela Portaria Conjunta nº 33, de 13/05/2013.

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