quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Por que médicos se calam diante de um colega negligente?


É difícil não ficar com essa pulga atrás da orelha depois de ler o editorial contundente do The Lancet, publicado na semana passada. O texto destaca o "silêncio cúmplice" dos profissionais de saúde em casos de negligência médica. 

A discussão foi motivada pela reabertura do caso Ian Paterson, o cirurgião que cumpre 20 anos de prisão no Reino Unido. Especialista em câncer de mama, ele foi condenado por induzir 17 pacientes a realizar cirurgias desnecessárias. 

Entre 1993 e 2011, Paterson tratou milhares de pacientes (tanto no sistema público, quanto em hospitais privados) em West Midlands. Segundo o editorial da revista científica, ele "demonstrou uma série de atividades repugnantes e inseguras, inclusive  exageros nos diagnósticos dos pacientes para forçá-los a fazer uma cirurgia". 

E não foi só isso: "Paterson realizava sua própria versão da mastectomia (o que contraria os princípios acordados internacionalmente) e tinha uma conduta inadequada em relação aos pacientes e funcionários". 

O inquérito 

Esse é um dos casos mais chocantes de negligência médica dos últimos tempos. No final de 2017, o governo encomendou um inquérito independente sobre os fatos e localizou novas vítimas. O relatório divulgado no início de fevereiro afirma que mais de mil pacientes teriam sido operados (mulheres e alguns homens) sem necessidade. Mais de 20 procedimentos resultaram em morte. 

O documento salienta que as vítimas de Paterson não foram enganadas apenas por ele. "Um conjunto de indivíduos, organizações e instituições (hospitais, reguladores do sistema de saúde etc) deveria ter mantido a segurança dos pacientes, mas não conseguiu". 

O inquérito pede aos ministros, aos gestores do sistema público de saúde (o National Health Service) e ao setor privado que adotem medidas para reduzir o risco de que casos semelhantes se repitam. Os advogados das vítimas esperam que novos depoimentos à justiça resultem no prolongamento da sentença do médico.

Dores físicas e mentais 

Os testemunhos dos pacientes ocupam 87 das 232 páginas do relatório e revelam intenso sofrimento físico e mental. A paciente Debbie Douglas, do grupo de vítimas Breast Friends, disse ao jornal The Guardian: 

"Fiquei com apenas 50% da mama para remover um nódulo com menos de 2 cm. Fui cortada de um quadril ao outro, meu umbigo foi removido e fiz quimioterapia sem necessidade. Isso me deixou completamente marcada".

Ninguém sabe, ninguém viu 

O mais chocante nessa história é o silêncio e a conivência dos profissionais que testemunharam as práticas e o comportamento de Paterson durante tantos anos. Não há hospital capaz de funcionar sem trabalho em equipe. Ninguém opera sozinho, sem ninguém por perto. Ninguém engana pacientes por tanto tempo sem que alguém desconfie. 

O relatório chama atenção para um fato desconcertante. Houve cegueira deliberada dos colegas em relação à prática clínica de Paterson. A maioria dos que se incomodavam apenas o evitava ou mantinha a cabeça baixa. Escolheram a omissão. 

Seis colegas suspeitaram do que ele fazia e não se calaram. Decidiram denunciá-lo, mas os gestores não tomaram providências. Um comportamento que desencorajou outras pessoas a revelar o que sabiam.

Traídos pela medicina 

Nas dezenas de páginas de depoimentos dos pacientes, a dor e a decepção em relação à medicina são marcantes. Muitos disseram que tiveram a impressão de que outros médicos sabiam que havia um problema com Paterson, mas não disseram nada. 

Esse é o ponto central do editorial do The Lancet. Segundo o texto, vários médicos relataram que tinham medo de denunciar porque não queriam chamar atenção para si. Outros tentaram evitar trabalhar com Paterson. E até os novatos comentaram que a natureza incomum de sua prática cirúrgica era bem conhecida na região.

Como chegamos a esse ponto? 

A camaradagem, a confiança e a hierarquia são elementos arraigados do ensino e da prática médica. Tradições como essa são aceitáveis desde que não coloquem a segurança dos pacientes em risco. 

Nem toda tradição existe para o bem. Algumas precisam abrir espaço para a transparência, para a franqueza e para a honestidade diante das negligências que ainda afetam as instituições de saúde – no Exterior e no Brasil. 

Em 2013, o órgão regulador da prática médica no Reino Unido lançou normas que exigem que os médicos sejam francos com os pacientes sempre que um dano ocorrer ou tiver quase ocorrido.

O editorial do The Lancet termina com a pergunta: "Isso será suficiente para quebrar a nebulosa dinâmica da lealdade de um médico a seus colegas?". No cotidiano das instituições de saúde é preciso que o respeito pelos pacientes fale mais alto. Todo silêncio é cúmplice quando há vidas em jogo.


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