quinta-feira, 11 de junho de 2015

Falta de cadáveres nas universidades aumenta chance de erros médicos

Para aumentar oferta, universidades fazem campanha por 'doação voluntária de corpos'; além de facilitar imperícia, falta de cadáveres atravanca pesquisa para elucidação de doenças
Nos cinco primeiros meses de 2015, a Universidade de São Paulo (USP) recebeu cinco cadáveres para estudo científico. Muito pouco para a demanda – o ideal é um corpo por ano para cada grupo de seis alunos e na USP, atualmente, são 180 estudantes para cada um dos exemplares disponíveis – mas um número razoável diante da carência. Em toda a década passada, a instituição recebeu apenas dez corpos: um por ano. Em 2015, a média está sendo de um por mês.

Entidades acreditam que erro médico tem origem na formação acadêmica deficitária
Entidades acreditam que erro médico tem
 origem na formação acadêmica deficitária
O aumento da oferta, acreditam os pesquisadores, depende de as pessoas saberem da existência do serviço e, mais ainda, de compreenderem a utilidade da 'doação voluntária de corpos'. 
Entre os principais problemas dessa carência de cadáveres nas universidades brasileiras, estão os números assustadores de erros médicos e a falta de perspectiva na elucidação e cura de algumas doenças.
"Sem ter "treinado" em um corpo humano, a chance de um residente cometer uma imperícia em um paciente é muito maior", afirma a professora Thelma Parada, responsável pelo Programa de Doação Voluntária de Corpos para Estudo Anatômico do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e que escreveu uma tese sobre o tema.




Em quatro anos, o número de processos movidos por erro médico que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça cresceu 140%. Em 2010, foram 260 ações; em 2014, 626 processos. "Parte deles poderia ter sido evitada se o profissional tivesse segurança para fazer o procedimento."

Recentemente, conta Thelma, ela aconselhou o marido de uma moça de 24 anos que teria morrido após uma parada cardíaca durante uma intervenção de retirada de pedra no rim a pedir que o corpo fosse encaminhado para o Instituto Médico Legal. O laudo apontou: a jovem teve o órgão perfurado. "Imperícia. Será que esse cirurgião tinha experiência suficiente? Como deve ter sido a formação dele? Com humanos ou bonecos e animais? O estudo em cadáver possibilita o treino para esse tipo de situação", afirma.

Sem corpos, doenças continuam misteriosas

Além dos erros em procedimentos, a falta de corpos também atravanca o desenvolvimento da ciência. E isso não é uma conversa que passa longe do dia-a-dia e que fica restrita a cientistas presos em laboratórios e que examinam moléculas que darão resultados após séculos de estudo.

Um exemplo clássico da utilidade do estudo em cadáveres para o aperfeiçoamento da medicina, explica Thelma, é o mistério que cerca a "morte súbita" de bebês. Os casos se repetem, especulam-se alguns dos motivos, mas não existe, ainda, causa definida. "Foi o coração? Será que a criança se asfixiou? Por que a gente não sabe? Porque praticamente inexistem pais que doam o corpo do filho de seis, sete meses para pesquisa", afirma Thelma. 

A fala da pesquisadora chama a atenção para a importância da diversidade de corpos a serem estudados. Além de o Brasil precisar aumentar o número de doadores – o perfil no País é de pessoas solitárias com idade entre 40 a 60 anos –, é necessário que o crescimento se dê em todas as faixas etárias. E sem restrição a doenças preexistentes ou qualquer outro tipo de filtro. "Precisamos de crianças, jovens e idosos. E os corpos podem chegar em qualquer situação. Se doou todos os órgãos e sobrou um pé, doe o pé. Se sobrou apenas o pulmão, ceda ele para estudo"

Brasil não tem tradição em doar

Por tradição religiosa ou pela "proibição oculta" de falar da morte, muitas famílias não conversam sobre o paradeiro do corpo. É como se todos soubessem que enterrar é o caminho óbvio. No máximo, surgiu recentemente a opção pela cremação. 
Por muito tempo, como no mundo todo a provisão de corpos para estudos advinha de "cadáveres não reclamados", isto é, de mortos tidos como indigentes, pouco se falava sobre a necessidade de conscientizar a população sobre o assunto. A "oferta" diminuiu nas últimas décadas, com a melhoria na qualidade de vida e o avanço tecnológico, que facilitou o encontro de desaparecidos. 
Fotos da família e flores adornam os restos mortais dos doadores de corpos na Universidade de Medicina de Indiana
Fotos da família e flores adornam os restos mortais dos doadores de corpos na Universidade de Medicina de Indiana

Nesse cenário de carência é que surgiram os programas de conscientização de doação voluntária. No Brasil, a prática é regulamentada pelo Código Civil. Qualquer pessoa maior de 18 anos pode doar o seu corpo ou parte dele às instituições de pesquisa e estudo científicos, sem obter qualquer ganho.


Para doar o corpo, é preciso deixar um documento em que expressa a vontade. Os familiares também podem fazer essa opção, mas, nesse caso, é preciso providenciar a documentação no dia do óbito.

O trabalho de angariar adeptos tem sido conduzido pelas próprias instituições de ensino. Além da USP, o Departamento de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre possui, desde 2008, seu programa de doação de corpos. Nos últimos cinco anos, foram 147 doações.
Em Belo Horizonte, a Universidade Federal de Minas Gerais criou o programa “Vida após a vida”. Em 10 anos, 300 pessoas se inscreveram como doadoras e 30 cadáveres já estão no laboratório de anatomia.

É um avanço, mas ainda tímido perto do que se vê em outros países. Nos EUA, por exemplo, desde 1968, todos os estados criaram o direito do cidadão de doar o seu próprio corpo para a educação em ciência médica. Na Universidade de Indiana, quando os estudantes encerram os estudos praticados em cadáveres, se juntam às famílias no laboratório e leem cartas de agradecimento sobre os doadores. Em 2007, a Universidade de Massachussets exibia uma lista de 4.500 pessoas dispostas a doarem seus corpos para pesquisa.


"O desprendimento é tão grande que há quem doe o corpo para ficar jogado em uma fazenda para que estudantes possam estudar os tipos de larvas que atuam na decomposição do cadáver. É por isso que eles têm tecnologia", relaciona Thelma. "Não quer ser doador, não exija saúde de ponta."

Faça o que eu fiz

A frase da pesquisadora é forte e provocativa, mas reverbera o que ela pratica. Em 2008, como estudante da USP, Thelma dissecou o corpo da avó paterna, Eunice Simão. A avó havia assinado o documento havia muito tempo, no ano em que a neta nasceu. Quando foi realizar a vontade de Eunice, Thelma se deu conta da burocracia e decidiu lutar para que o processo fosse simplificado e que o assunto caísse na boca dos vivos. Tem dado certo. 
"Quem doa um ente para ser mexido. Uma coisa é você falar, outra coisa é ir lá e fazer", afirma F., que doou o corpo do pai no início do ano, após contato com Thelma. A decisão não foi fácil. Apesar de o ancião já ter manifestado seu desejo às filhas – ele morreu aos 72 anos, após sofrer sete anos vítima de um derrame –, parte dos familiares foram e continuam contrários à doação. Até por isso F. prefere não dizer o nome.
"Na cabeça deles, jogamos o corpo do nosso pai fora. Mas sabemos que fizemos exatamente o contrário. Em vez de deixar que apodrecesse em poucos dias, demos utilidade". Uma forma, talvez, de prorrogar a vida dos que morreram.

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