segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Mulher denuncia violência obstétrica em hospital de Fortaleza; Defensoria Pública acompanha o caso

 



O parto de C.R.A, 30 anos, não foi como ela havia planejado. Em 12 de maio de 2019, após decorridos os nove meses de uma gestação considerada tranquila, o dia de parir tornou-se um momento longo de sofrimento, percorrendo 16 horas de trabalho de parto e de desinformação. Após mais de um ano, a mãe ainda sofre as sequelas daquele dia, quando ela afirma que sofreu uma série de violações e negligências. A administradora entrou em contato com a Defensoria Pública do Ceará para buscar reparação jurídica. “Meu filho nasceu numa zoada, num barulho. Foi perturbador”, é assim que a assistida define o exato momento em que deu à luz. 

De acordo com pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc, iniciada em 2010, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. Muitas delas não conseguem identificar que foram submetidas a violências e, portanto, não denunciam. “Precisa ser denunciado, é necessário que, se uma mulher sofrer violência obstétrica, ela denuncie. Quanto mais essa denúncia é vista, mais temos oportunidade de aprender sobre o que é correto para o trabalho de parto”, narra a mãe. 

C.R.A conta que se preparou para ter filho em parto normal e idealizou todo o momento, ao lado do pai da criança. “Fiquei feliz que o posto de saúde perto de casa me encaminharia para um hospital particular para o momento do parto”, lembra. No dia 12 de maio, ela chegou ao hospital, localizado em Fortaleza, por volta de 5h30min, após a bolsa ter rompido. Ali, segundo relato, começou a série de violações, em um trabalho de parto que só terminou às 21h34min, quando o filho nasceu. 

“Eu vomitei, desmaiei. Foi uma sensação muito ruim. Eu não estava tendo cuidados médicos. Eu queria um profissional que dissesse pra mim o que estava acontecendo. Eu fui ficando”, rememora, ao citar que três médicos plantonistas a atenderam ao longo do dia. “O médico não ficava no espaço onde a gente estava. Se ele ficava, não me olhava. De meio-dia às quatro da tarde, eu dilatei só dois centímetros. Ali eu percebi que não estava acontecendo algo correto comigo. Fui ficando apenas com a dor. Eu estava exausta, desorientada, desmaiando. Foi um sofrimento muito grande”, define no relato. “Eu não tive forças para reclamar de nada”. Já durante o período da tarde, cerca de 12 horas de trabalho de parto, ela pediu auxílio, mas não foi atendida. “Achava que ia morrer de tanta dor. A enfermeira falou para mim algo que me marcou bastante: ‘mãezinha, a dor só vai passar quando você tiver o seu bebê’. Mas eu não tinha mais forças”. 

De acordo com a lei estadual nº 16837 de 17/01/2019, que institui e disciplina o Estatuto do Parto Humanizado, a mulher precisa ter garantido o respeito à intimidade, privacidade e ser tratada com dignidade, ser ouvida, ter suas dúvidas esclarecidas e receber todas as informações e explicações que desejar, em especial as que impedem opção pelo parto normal, ter acesso a métodos não farmacológicos para conforto e alívio da dor. 

Após 16 horas de trabalho de parto, o filho de C.R.A nasceu com a respiração comprometida e com uma infecção que alega decorrente das longas horas de trabalho de parto de forma inadequada.  “Na UTI, eu fiquei sabendo por que meu filho tinha nascido com a respiração comprometida. A médica neonatal falou que 16 horas de parto não são brincadeira. E foi caindo a ficha. Não foi seguido o protocolo. Depois, veio a informação de que meu bebê estava infectado”. 

Outro ponto da lei prevê que a mulher não deve “ser submetida, bem como seu bebê, a intervenções e procedimentos desnecessários”. Neste ponto está inclusa a laceração perineal proposital e sem aviso prévio à paciente. C.R.A. descobriu que havia sido submetida à laceração apenas depois de ter ocorrido. Em decorrência do procedimento, outros problemas surgiram com o passar dos meses, como incontinência urinária e a impossibilidade de ter relações sexuais, precisando passar por cirurgias e fisioterapia em busca de solucionar as consequências. 

A defensora pública e supervisora do Núcleo de Atendimento e Petição Inicial, Natali Massilon Pontes, acompanha o caso. “O papel da Defensoria, nesse momento, é de acolhimento, antes de mais nada. É um trauma que a assistida vivenciou. Neste momento, precisamos entender e não minimizar, fazer uma escuta diferenciada, para que ela sinta que vai encontrar um retorno”, explica.

A defensora cita a lei estadual do parto humanizado para reforçar a violação do direito à intimidade e à privacidade. “Quando ela não tem essa intimidade, essa privacidade preservada, isso é um atentado contra a dignidade humana. O que resta para essa mulher é buscar uma indenização, na perspectiva principal de evitar que outras mulheres passem por isso”. Para a defensora, falar sobre a violência obstétrica é buscar que outras mulheres e profissionais de saúde sejam conscientizados sobre o tema. “Só quando as mulheres passaram a buscar a punição é que essa violência pode cessar”. E reforça: a violência obstétrica é um assunto invisibilizado no Brasil. “Precisamos falar sobre isto”, acredita. 

Outro caso. A Defensoria Pública do Ceará também acompanha um caso que tem sido conduzido pela Defensoria Pública de São Paulo. Em 2017, L.G.S, então com 19 anos, viajou para o Ceará, ao lado de dois amigos. Moradora de São Paulo e com 22 semanas de gestação, ela começou a sentir-se mal e foi encaminhada para um hospital público na Capital, e passou a sofrer uma série de violências obstétricas. “Chegando ao hospital, a equipe médica não tinha o medicamento que havia sido receitado a ela, que iria inibir o trabalho de parto. Ela foi submetida a exames que mostraram que os bebês estariam bem. Em acesso à ficha inicial, ela era classificada como paciente de risco amarelo, ou seja, que poderia aguardar até 60 minutos para ser atendida”, explica a defensora pública paulista Paula Sant’anna Machado, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem-SP)

No entanto, quando a jovem foi colher urina para exame, ela percebeu que a bolsa amniótica havia estourado e pediu ajuda. “Foi quando iniciaram as tentativas de silenciar os pedidos dela, como o direito a acompanhante, que lhe foi negado. Depois disto, já na sala de parto, ela narra que teve as pernas amarradas com pedaços de pano. Nenhuma intervenção pode ser realizada no corpo da mulher sem que ela esteja de acordo”, expõe Paula Sant’anna. Entre outras violações, foi aplicada ocitocina (medicamento que aumenta as contrações para acelerar o trabalho de parto) sem a paciente estar de acordo. “Foi aplicado o medicamento sem o consentimento, mesmo ela, expressamente, dizendo que não queria. Foram realizados diversos exames de toque durante o momento do parto. Há evidências científicas que refutam a efetividade do exame de toque. No prontuário mostra que ela estava resistente aos toques, inclusive”. 

Entre outros pontos do relato, uma profissional de saúde sobe na maca onde estava a paciente em trabalho de parto prematuro para empurrar a barriga da jovem com o joelho. “É uma forma de violência. É muito violento contra o corpo da mulher. Ela pediu para o médico desamarrar as pernas dela, mas o médico deixou a sala de parto e disse que iria almoçar”. Os dois bebês nasceram já sem vida. 

“A violência obstétrica não é apenas um erro médico, vai englobar todo esse tratamento, desde o momento em que a gestante entra no hospital. A gente não tem uma lei nacional que define a violência obstétrica. Então, no sistema de justiça, a gente observa que casos de violência são interpretados como erro médico, muitas vezes”, comenta a coordenadora do Nudem-SP. A defensora pública reforça que a violência obstétrica é estrutural, ou seja, está em diversos setores na formação da sociedade. “É estrutural, como o racismo é. Não enxergam que as mulheres são seres humanos autônomos que podem opinar sobre seus próprios corpos”.  

O que é violência obstétrica? É um conjunto de condutas que são questionáveis e que violam os direitos da mulher. Na cartilha “Conversando sobre a Violência Obstétrica”, distribuído pela Defensoria Pública de São Paulo, explica que “todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivale a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente”. 

O manual explica que a violência obstétrica é o desrespeito à mulher, seu corpo e seus processos reprodutivos. A violência obstétrica, diz o material, pode ocorrer na gestação, no parto e no pós-parto. Além da mulher, a conduta pode ocorrer com o bebê e com seus familiares, podendo causar danos físicos, psicológicos e sexuais. 


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