sexta-feira, 4 de agosto de 2017

"Minha cunhada insistia que o feto estava fraco. Horas depois, ele morreu"

Maria Anunciada, de 47 anos, reclama da falta de transparência no atendimento e acredita ter perdido a cunhada e o sobrinho por negligência médica

“Disseram que um remédio para induzir o parto estava em falta e que não tinha vaga”
 (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA)

“O sonho do meu irmão, Gilson, era ter um casal de filhos. Minha cunhada, Lucinei, tinha 36 anos e faria 20 anos de casamento em abril. Fui madrinha de casamento, madrinha de crisma. Tenho ela como irmã que nunca tive. Para mim, ela era tudo. Ficou grávida do segundo filho, porque eles já tinham uma menina, que tem 12 anos. Descobrimos a gravidez e ela caiu na gargalhada, tinha uma risada muito gostosa. Foi uma alegria.
 
Na gravidez, ela não sentia nada. Nem o pé inchava. No fim da gestação, em dezembro, ela fez o ultrassom, o bebê estava se mexendo muito, superbem. Em janeiro, foi a uma consulta de rotina. O médico abriu os exames, tirou a pressão dela e disse que a Lucinei estava com a diabetes e a pressão altas e que deveria ser internada. A minha cunhada ficou chocada, porque não sentia nada. Até perguntou se poderia voltar no dia seguinte, e o médico permitiu. Nesse dia, ela cozinhou, comeu em casa, levou a vida normalmente. Achei estranho: se ela estava em alto risco, o médico não deveria tê-la liberado. No dia 27 de janeiro, a minha filha acompanhou a internação dela no Hospital Maternidade Interlagos.
 
Conversávamos todos os dias. A Lucinei contava que eles ficavam monitorando a diabetes, mas que ela estava confusa. Ela me disse: ‘Não entendo mais nada. Uma hora disseram que iriam me dar alta, outra que iriam induzir o meu parto, e agora acabei de tomar insulina’. Ela nunca tinha tomado insulina na vida. No dia 2 de janeiro, ela começou a sentir o bebê se mexendo lentamente e avisou a médica, que a examinou e disse que estava tudo bem. Mesmo assim, ela sentia o bebê ‘fraco’ na barriga e persistia, passou o dia reclamando. De madrugada, falei com o meu irmão ao telefone e me choquei com a voz dele. Ela tinha feito o exame à noite e deram-lhe a notícia: “O seu bebê morreu”. Simples assim. Isso aconteceu cerca de uma semana depois da internação.
 
Ela começou a chorar, ficou desesperada. Em hipótese alguma eles chegaram a pegar o telefone e ligar para o meu irmão para avisar sobre a morte do filho. Ela ficou esperando o marido chegar, até que pegou o telefone e ligou para saber o que acontecia. Já fazia horas, mas o meu irmão não sabia de nada. Não foi avisado pela maternidade. Ele foi correndo, mas quando chegou ao hospital não queriam deixar ele subir. ‘Eu vou ver minha mulher, porque ela perdeu o filho e vocês não foram capazes de me ligar. Vou subir, sim’, disse ele. Teve de brigar. Eu cheguei depois e entrei para resolver.
 
Liguei para o meu obstetra e para outro hospital, tentando uma vaga para tirá-la de lá. Ela estava em uma salinha de isolamento, que a médica me disse que era para ela ‘ficar mais confortável, para não ver outras mães com o bebê no colo’. Mesmo assim, achei aquilo desumano. O meu irmão passou a noite sentado em uma cadeirinha. Questionei a médica que ela não poderia ficar sozinha: ‘Vai ficar pensando o quê?’. Senti que minha cunhada já tinha morrido ali, naquela hora. Ela não podia ficar com a barriga para cima porque o bebê ficou um ‘toco’ na boca do estômago dela, então atrapalhava até para respirar.
 
Perguntei por que demoraram tanto para começar o parto. Disseram que um remédio para induzir o parto estava em falta e que ainda não tinha vaga. Briguei muito, até que apareceram alguns funcionários dizendo que iriam resolver. Até o meu pai, de 73 anos, estava desesperado e foi procurar saber de algo com o serviço social. Me ofereci para comprar o remédio se fosse preciso. ‘Vocês vão ficar pedindo o remédio até ela morrer?’, questionei. Eu sou assistente de saúde, então sabia até que ponto estava chegando a gravidade do problema. Exigi que arranjassem uma vaga. Até a pipoqueira na rua já sabia da situação, tinha se comovido. Uma funcionária chegou a me dizer que a minha cunhada não se cuidava e que eu precisava ter calma. Fiquei indignada. Ela fazia tudo certinho, todos os exames.
 
Depois de muito brigar pela sala, a Lucinei subiu para o centro obstétrico, quase às 19 horas. Combinamos que eu ficaria com ela durante o parto. Despediu do meu irmão. A sala ficava de frente para a rua, e eu me lembro de que ela me pediu para subir na cadeira e ver quem estava esperando por ela. Me segurei no vidro e comecei a dizer: ‘Meu pai, a sua mãe, a sua sobrinha, a sua filha, o Gilson…’. Tinha muita gente. De repente, ela começou a ficar pálida. Desci para chamar os médicos. Olharam a dilatação e viram que já estava na hora.
 
O parto foi muito difícil. Ela colocava muita força, coloquei o meu braço no pescoço dela para dar um apoio. Desde a hora que a criança morreu, ela só conseguia ficar deitada de lado. Na hora do parto, ela não respirava direito, porque ficou de barriga para cima. Eles não viram nada disso? Perguntei se não dava para fazer uma cesárea. 'Não, só em último caso', me responderam*. Disseram que é uma norma do hospital. Quando o bebê saiu, estava na segunda pele*. Os médicos achavam melhor a gente não ver, mais a minha cunhada queria uma foto do bebê para guardar de recordação. Ela estava firme para ver o filho dela.
 
Ela esticou a mão e puxou a mesinha de cirurgia onde ele estava, mesmo quando os médicos disseram que era melhor não ver. Foi uma cena muito triste. Mas bastou que ela tocasse no bebê para que começasse a passar mal. Foi muito rápido, e eles disseram que iam fazer uma ‘cesárea’ [foi uma histerectomia para retirar o útero] para remover o foco da hemorragia. Não sei se ela perdeu sangue antes ou depois. O fato é que ela estava muito pálida.
 
Saí da sala e estava muito nervosa. Depois, soube que ela tomou cerca de seis bolsas de sangue. Mesmo com as medicações, o corpo dela não reagia. Fui falar com o meu irmão. Os médicos vinham conversar com a gente, mas não eram notícias animadoras: ela não estava respondendo. Na UTI, eu pedi para vê-la, mas não me deixavam entrar. Não queriam deixar também o meu irmão, mas implorei. Depois de muita insistência, deixaram ele subir para se despedir. A minha cunhada morreu poucas horas depois da cirurgia.
 
Voltamos ao hospital mais de uma vez. Fui falar com o delegado, porque não queriam dar o prontuário médico ao meu irmão de jeito nenhum. Queriam uma ordem judicial. Só foi entregue a cópia quando fui amparada pela lei. Pedi para conversar com um responsável do hospital, diziam que estava em reunião. Levei a recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM) impressa, que é de 2014. A moça que me atendeu pegou meio com raiva as folhas e só depois protocolou o pedido. O Gilson, meu irmão, se sentia desconfortável de ir lá. Lembrava daquelas cenas, revivia tudo de novo. Quinze dias depois, ele foi buscar o documento com a minha filha.
 
Vi muita coisa errada naquele hospital. Começando pela portaria, parece que estão tratando um cachorro. Mulheres que entram lá e saem sem os filhos, e eles dizem que é normal? O sonho da mulher que entra ali é sentir o bebê nos braços. A minha cunhada havia acabado de comprar o enxoval, montaram o quarto dele nas carreiras. Todos nós sentimos muita falta dela. 
 
Fizemos um Boletim de Ocorrência. No laudo de morte deles, também não há explicações claras sobre o que aconteceu. Eles [a equipe de saúde] têm de ver o que fazer com o paciente quando ele está bem, com a esperança de sair dali com coisas boas. Não depois de uma derrota. Se eles dissessem que ela estava correndo risco de vida e não tinha condições de ficar ali, que fosse para outro hospital. Se tivessem ligado para os familiares dela, família que não ia faltar. Já começa a parte errada aí: se o paciente está com risco de vida, a gente não deixa o paciente sair do hospital e voltar no dia seguinte. A primeira coisa é procurar o familiar. E sempre deixar a par de tudo que está acontecendo.
 
O meu irmão ficou na casa de uma tia de consideração, até terminar de montar uma casinha que eles estavam construindo para morar juntos. Estavam de mudança. Ele não conseguiu ficar na casa deles. Só foi até lá junto com familiares para buscar documentos. Depois da morte dela, eu não sei mais o que é dormir. Só sossego no dia em que vier a verdade, porque tenho certeza de que foi negligência.”
 
* A cesárea não é indicada por risco de hemorragia. Esperar o processo fisiológico ou induzir o parto normal é o mais indicado para garantir a segurança da mãe, segundo a medicina baseada em evidências – mas o caso delicado demanda explicações e orientações à família. É comum a pele do bebê que morreu se soltar em casos de morte fetal mais antiga, chamado de “feto macerado”.
 
O outro lado
 
Em nota, a Secretaria da Saúde encaminhou um posicionamento do Hospital Maternidade Interlagos sobre o caso de Lucinei, cunhada de Maria Anunciada: “A Sra. Lucinei Oliveira era gestante de alto risco e deu entrada com diabetes e quadro hipertensivo descompensado. Não houve negligência. O óbito fetal intrauterino foi informado à família após devido diagnóstico. Após a constatação, foi realizado parto normal para a retirada do feto, com sangramento intenso apesar da realização de todos os procedimentos necessários.”
 

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