Uso indiscriminado do chamado kit covid pode fazer mal à saúde, alertam especialistas
O chamado "kit covid" se tornou um dos principais assuntos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga se o governo federal cometeu erros ou omissões no combate à pandemia de covid-19.
Os três ministros da Saúde de Jair Bolsonaro (sem partido) que já estiveram na CPI foram bastante questionados sobre a defesa pelo presidente deste suposto tratamento precoce, que usa medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus, como cloroquina, ivermectina e azitromicina.
Luiz Henrique Mandetta (MDB-MS), primeiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro, disse que o governo federal chegou a cogitar um decreto para mudar a bula desse remédio para que ele fosse indicado para covid-19, e essa intenção foi confirmada no depoimento do presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres.
O oncologista Nelson Teich afirmou ter pedido demissão diante da pressão para que elaborasse um protocolo de tratamento que recomendasse a adoção ampla da cloroquina.
Marcelo Queiroga, atual ocupante do cargo, reconheceu que a cloroquina não tem eficácia comprovada. Mas evitou falar contra o seu uso.
Tudo indica que o general Eduardo Pazuello, o quarto ministro a ser ouvido pela CPI, também ouvirá muitas perguntas sobre isso.
Um dos motivos de tanta atenção a esse assunto é porque há um consenso cada vez maior de que os medicamentos do chamado "kit covid" não só não funcionam, como podem fazer mal à saúde.
É o que indicam os registros da Anvisa, que nunca recebeu tantas notificações de reação adversa pelo uso destes remédios como agora (leia mais abaixo).
Esses números vão ao encontro dos relatos cada vez mais frequentes publicados na imprensa de pessoas que enfrentaram problemas de saúde por causa do "kit covid".
Em casos assim, qual é a responsabilidade do médico? Um paciente pode entrar na Justiça contra quem receitou um medicamento do chamado kit covid?
Especialistas em direito civil e da Saúde ouvidos pela reportagem divergem sobre a possibilidade deste tipo de profissional ser responsabilizado legalmente, especialmente se o tratamento tiver sido prescrito no começo da pandemia, quando ainda havia muitas dúvidas sobre a covid-19 e os efeitos dos medicamentos que compõem o "kit covid".
Mas eles concordam que, conforme a pandemia avança, fica cada vez mais difícil justificar para um juiz a prescrição desse tipo de medicamento.
Momento do tratamento pode ser crucial
André Corrêa, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que o momento em que aconteceu o tratamento é fundamental.
"Esta é uma pandemia longa, que já dura mais de um ano, e o juízo que vai se fazer da forma como um médico agiu nos primeiros três meses do surto e agora não é o mesmo", avalia Corrêa.
"Conforme crescem as evidências científicas contra a eficácia desses medicamentos e que mostram que eles são capazes de provocar efeitos colaterais, um médico que continue a prescrever isso hoje iria contra o que se chamaria de uma técnica médica adequada", afirma o professor.
O advogado Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência, concorda.
"Prescrever cloroquina quando ainda havia um desconhecimento razoável sobre esse assunto é diferente de fazer isso quando respeitadas entidades internacionais e revistas deixam claro que não tem qualquer efeito positivo", diz.
Mesmo assim, afirma Almeida, o médico deveria sempre se pautar nas informações científicas disponíveis sobre uma doença.
"É recorrente na nossa história a tentativa de achar uma cura mágica, mas um médico deve ter o cuidado de só adotar um procedimento quanto tem certeza que ele não faz mais mal do que bem."
Reações adversas ligadas ao 'kit covid' explodiram
Há registro de nove mortes ligadas à cloroquina, todas depois do início da pandemia
Os dados da Anvisa apontam que os números das reações inesperadas pelo uso dos principais medicamentos do kit covid dispararam desde o começo da pandemia, apontam os registros da agência.
Em 2019, houve 139 notificações ligadas à cloroquina ou à hidroxicloroquina, que são originalmente usadas contra lúpus, artrite reumatoide, entre outras doenças. Em 2020, foram 1084, quase oito vezes mais.
Em nove casos notificados, o paciente morreu — todos depois do início da pandemia.
Os eventos de reações adversas do antibiótico azitromicina mais do que triplicaram entre 2019 e 2020, foram 86 no ano passado. Neste ano, já são 59, com uma morte registrada.
E todos os 20 alertas que a Anvisa já recebeu sobre a ivermectina, remédio contra fungos e parasitas que entrou mais recentemente para o repertório do suposto tratamento precoce contra a covid-19, foram feitos depois de a pandemia começar. Houve uma morte.
A agência nunca tinha recebido uma notificação desse tipo para esse medicamento antes do início da pandemia.
'O cara lá da ponta vê o Bolsonaro falando besteira e se influencia'
Esses números são uma evidência clara de como o "kit covid" foi amplamente usado na pandemia.
Questionado na CPI se apoia o uso destes medicamentos, Marcelo Queiroga foi evasivo e disse que apoia a autonomia do médico em indicar o tratamento que considerar mais adequado.
Esse é o mesmo argumento usado por bastante tempo pelo Conselho Federal de Medicina quando cobrado sobre uma posição clara quanto à cloroquina.
"Mas a outra face da autonomia é ter de assumir a responsabilidade pelo o que se faz. Não me surpreenderia ver médicos condenados por não tomarem as medidas adequadas", diz André Corrêa.
Nos casos em que uma pessoa tiver problemas de saúde depois de usar um destes remédios, a primeira coisa que deve ser investigada é, claro, se o medicamento foi a causa disso.
Mas também se um tratamento ineficaz prejudicou as chances de o paciente obter o melhor resultado possível contra a doença, afirma Corrêa.
É preciso então analisar em casos assim se o médico agiu com imprudência, negligência ou imperícia, explica o médico e advogado Daniel Dourado, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP).
Em outras palavras, se o médico assumiu um risco grande demais, se deixou de fazer algo que deveria ter feito ou se não tinha os conhecimentos e habilidades necessários para agir como agiu.
No fim das contas, o que vai ser discutido é se o médico agiu com má fé, diz Dourado.
"Uma coisa é o médico que receitou porque não tinha mais nada a fazer e decidiu tentar isso, e outra é quem criou canal no YouTube para fazer propaganda e cobrar por consulta particular", afirma o pesquisador.
O advogado sanitarista acredita que a maioria dos médicos que receitaram o kit covid fizeram isso por causa do governo federal.
"O médico lá na ponta vê o ministro falando isso, vê o Bolsonaro falando um monte de besteira e se influencia", afirma Dourado.
'Médico não pode fazer experimento em humanos'
À CPI, o ministro Marcelo Queiroga esclareceu que já pediu que seja elaborado um protocolo de tratamento para a covid-19.
As recomendações que tinham sido feitas pelo governo federal até então não tinham passado pelas instâncias necessárias, e o ministro falou que está corrigindo isso.
Mas esses documentos ainda constavam no site do Ministério da Saúde até a semana passada — o que um dos senadores apontou para Queiroga durante seu depoimento.
O Ministério da Saúde tirou do ar depois disso as recomendações oficiais de tratamento precoce. Mas o termo de consentimento de paciente que os médicos devem usar ao prescrever esses remédios continua acessível.
Por meio desse documento, o doente diz que foi devidamente informado sobre os riscos, benefícios e alternativas dos medicamentos do chamado kit covid e aceita ser tratado desta forma.
Daniel Dourado acredita que ter pedido esse consentimento pode ajudar o médico a mostrar que agiu com boa-fé.
"Isso mostra que explicou os riscos para o paciente, que podia aceitar ou não. Quem agiu de boa-fé dificilmente vai ser responsabilizado", afirma Dourado.
Mas ele ressalta que isso não vale para qualquer tipo de tratamento e dá como exemplo a nebulização com cloroquina, associada à morte de pacientes com covid-19.
"Aquilo é absurdo, não existe, é como se tivessem dado detergente", afirma o pesquisador.
Paulo Almeida concorda. O advogado explica que o uso de medicamentos fora do que é prescrito em bula sempre ocorreu e é permitido, mas há limites para isso.
"Não existe termo de consentimento no mundo que permita que um médico faça experimentos científicos com humanos", afirma.
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