Suspeita é que pessoas em situação de rua tenham passado até meses em leitos aguardando vagas em abrigos da prefeitura para convalescentes. Funcionário relata morte de paciente por Covid-19 que teria sido contraída no pronto-socorro. Prefeitura nega a falta de vagas disponíveis e as contaminações relatadas.
Falta de abrigos em SP expõe os sem-teto aos riscos da Covid
O Ministério Público de São Paulo investiga a denúncia de que pacientes teriam permanecido internados por semanas, e até meses, após receberem alta médica, no Pronto-Socorro Municipal Lauro Ribas Braga, em Santana, na Zona Norte de São Paulo.
A suspeita foi incluída em um inquérito que apura a falta de vagas em abrigos municipais específicos para pessoas em período de convalescença. Os pacientes seriam pessoas em situação de rua que, por lei, precisam ser encaminhadas para abrigos municipais que acolhem e acompanham quem está em período de recuperação médica.
A denúncia ao MP partiu de um funcionário do pronto-socorro. Em entrevista exclusiva à GloboNews, ele contou que desde o início do ano "foram três pessoas que estavam de alta, foram contaminadas e vieram a óbito. Sem contar outros pacientes que também estavam de alta médica e foram contaminados. Porém, esses foram transferidos pra outro hospital".
Paciente com Covid-19 é atendido em leito de UTI em hospital de Ribeirão Preto, SP
Um desses pacientes, segundo o funcionário, teria sido infectado pelo novo coronavírus enquanto aguardava vaga em um abrigo.
"Ele estava lá já há algum tempo de alta médica e acabou contraindo Covid. Quando eu passava, eu via esse paciente lá e perguntava pro pessoal da Assistência Social, e eles diziam: "Ah, tou procurando vaga." E acabou que esse senhor foi intubado e veio a óbito".
A Prefeitura de São Paulo decidiu antecipar o próximo Censo da População de Rua para o próximo semestre. O levantamento de 2019 apontou que 24.344 pessoas viviam nas ruas da cidade de São Paulo.
Para Alderon Costa, conselheiro do Comitê Pop Rua, "é perceptível que essa população deve ter aumentado em torno de 30% durante a pandemia". Dados do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania, mostram que, em fevereiro, cerca de 37 mil famílias estavam em situação de rua na maior cidade do país.
A capital paulista oferece 93 vagas em apenas dois Centros de Acolhimento Especiais ( CAEs) para pessoas em período de convalescença. A falta de leitos disponíveis nesses abrigos específicos da prefeitura "é um problema histórico com a população em situação de rua em São Paulo", afirma Alderon.
"Esses dois projetos surgiram exatamente pela necessidade de transferência das pessoas que recebiam alta, e que estavam em situação de rua, de ir pra um espaço específico com apoio da Saúde. Mesmo assim, esses dois ainda são insuficientes, " afirma ele.
Parte dos pacientes que não conseguem vagas nos abrigos municipais tem sido absorvida pela Missão Belém, que é administrada pela Igreja Católica. Segundo o coordenador, a entidade abriga hoje cerca de 2.000 pessoas em situação de rua, 700 delas em período de convalescença.
Willamis Ponciano, da Missão Belém, afirma que recebe "diariamente sempre duas a três ligações de assistente social pedindo ajuda, que os pacientes estão de alta. Existe aquele perigo de pegar infecção hospitalar, agora no tempo da Covid".
A Prefeitura de São Paulo nega a falta de vagas disponíveis e as contaminações relatadas pelo funcionário do pronto-socorro. Afirma também que não é verdade que pacientes do hospital permaneçam internados após alta médica.
Porém, a GloboNews teve acesso a um e-mail de um hospital do governo do estado, enviado no dia 15 deste mês, que mostra o contrário. Nele, a assistente social da unidade relata a dificuldade para conseguir vaga em abrigo municipal para uma paciente em situação de rua que permanecia internada após nove dias da alta médica. A funcionária alerta para o risco de a mulher se contaminar com Covid-19 no hospital.
Tanto o Ministério da Saúde quanto o Plano Municipal de Políticas para a População em Situação de Rua de São Paulo determinam o encaminhamento de convalescentes para acompanhamento em abrigos especiais.
Para Ariel Castro, membro do Comitê Nacional de Direitos Humanos, a falta de vagas em espaços adequados para essas pessoas "é extremamente grave, configura omissão, negligência com essa população em situação de rua".
"Após a alta, eles jamais poderiam permanecer nos hospitais, até por causa do grande risco de contaminações por Covid. Essas pessoas deveriam ser levadas a essas casas de acolhida especializadas em saúde após a alta hospitalar e também para albergues especializados ou mesmo residências terapêuticas, onde existe a atuação conjunta entre a assistência social municipal e também a área de saúde", afirma.
E finaliza: "Nós podemos ter aí configurado o crime de prevaricação, que é quando quem exerce uma função pública não cumpre com seus deveres".
Referência no atendimento à população de rua de São Paulo, padre Júlio Lancellotti também diz que o problema da falta de vagas em abrigos especiais é antigo.
"[Essas pessoas são] visíveis quando incomodam e são invisíveis quando sofrem, quando eles estão doentes, quando eles precisam de cuidados. Eles não têm como ter um acompanhamento para convalescer, para superar um momento difícil de doença. Por exemplo, mesmo da Covid, onde ele vai fazer fisioterapia? Onde ele vai fazer acompanhamento, se ele teve um dano neurológico?"
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