Utilização do termo não é consenso entre médicos e entidades da área
O vazamento de um áudio em que a influenciadora digital Shantal Verdelho descreve os xingamentos que sofreu do médico Renato Kalil durante o parto de sua segunda filha trouxe à tona um assunto delicado para muitas mulheres: a violência obstétrica. Mas, afinal, o que caracteriza esse tipo de violência?
O termo refere-se a qualquer ofensa verbal ou física praticada contra mulheres gestantes, em trabalho de parto ou no período do puerpério, seja pelo médico, equipe hospitalar, familiar ou acompanhante. Em 2014, a violência obstétrica foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma questão de saúde pública que afeta diretamente as mulheres e seus bebês. Porém, utilização do termo não é consenso entre médicos e entidades da área.
Em 2017, a Defensoria Pública de São Paulo usou a definição dada pelas leis venezuelana e argentina para explicar que esse tipo de violência se caracteriza “pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres”.
— O termo violência obstétrica nos ajuda a definir as situações em que, de forma desnecessária, sem indicação técnica ou razão clínica, a mulher sofre intervenções no processo de gestação e parto, que retiram sua autonomia e impossibilitam seu protagonismo. Já outras intervenções são psicológicas mesmo, uma forma desumana de lidar com a mulher no momento de parir, aí entram as falas ofensivas, como essas que a influenciadora ouviu — afirma Julia Morelli, médica e diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Como exemplo de intervenções por vezes desnecessárias, mas que estão na cultura médica, ela cita a episiotomia (corte no períneo, região entre o ânus e a vagina, para facilitar a passagem do bebê em um parto normal), que antigamente era feita de forma rotineira, em quase todas as mulheres. Agora, no entanto, há estudos que mostram que nem sempre o procedimento é necessário. Mesmo assim, em alguns casos, o corte é fundamental para ajudar no nascimento saudável da criança:
— Não é toda mulher que passa por uma episiotomia que sofreu uma violência, porque existem casos bem específicos em que há indicação. O mesmo serve para a cesariana, que pode salvar vidas de bebês e mães.
Uso do termo não é consenso
É justamente a caracterização de procedimentos médicos como violência obstétrica que faz com que o termo não seja consenso entre entidades e profissionais da área. Em maio de 2019, o Ministério da Saúde defendeu a abolição da expressão no uso de políticas públicas, pois acredita que a mesma “tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado". No mês seguinte, a pasta reconheceu a legitimidade do termo, mas manteve a decisão de não utilizá-lo.
Para a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), violência obstétrica trata-se de uma expressão “criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto”. O maior erro do conceito, segundo a entidade, “é tentar transformar em regra a exceção, dando a impressão de que médicos e enfermeiros habitualmente tratam parturientes de modo violento”.
Na opinião do médico ginecologista e obstetra Sérgio Martins-Costa, membro da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs), há discordância quanto ao uso do termo porque ele coloca no mesmo contexto coisas que são muito diferentes.
— Uma coisa é violência de gênero, violência contra a mulher, violência contra a gestante, tratar mal, de maneira desrespeitosa, isso é algo absolutamente inadmissível e a gente concorda que seja tratado no contexto de atitude violenta. Outra coisa, que não deve ser misturada, é a questão das condutas médicas, que podem ser corretas ou erradas. A medicina está sempre evoluindo, o que hoje é considerado uma boa prática, amanhã ou depois pode não ser mais. A episiotomia é um exemplo muito claro disso — salienta.
De acordo com o especialista, casos em que o obstetra opta por procedimentos, como a episiotomia ou a cesárea, com o objetivo de apressar o parto por vontade própria, devem ser tratados como erro médico.
Em 2019, entidades como o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) apoiaram o posicionamento do Ministério da Saúde. Já a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) se manifestou contra o despacho, pois considera que o termo "tem sido utilizado para nomear uma problemática antiga e se refere ao tratamento desrespeitoso e abusivo que as mulheres podem sofrer por profissionais de saúde durante a gravidez, o parto e o período pós-parto e é utilizada para descrever e agrupar diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico".
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