terça-feira, 19 de outubro de 2021

Distrito Federal é condenado a indenizar criança que nasceu com sequelas cerebrais

 


Além da indenização, o Estado deverá pagar também pensão mensal vitalícia de 3 (três) salários mínimos vigentes à época de cada pagamento.


Número do processo: 0735973-39.2019.8.07.0001

Classe judicial: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7)

AUTOR: L. C. D. J. P., L. S. D. S., A. S. D. J. P.

REU: DISTRITO FEDERAL

SENTENÇA

Adoto como início de relatório aquele bem lançado ao ID 60476354:

“Cuida-se de ação de conhecimento ajuizada por L. C. D. J. P., L. S. D. S. e A.S.D.J.P. em desfavor do DISTRITO FEDERAL.

Narra a inicial que a segunda autora, após sentir dores de parto, deu entrada no Hospital Regional de Ceilândia no dia 14/12/2018 às 15h22, tendo recebido alta no dia seguinte, 15/12/2018, às 08h03, sem a realização do parto.

Relata que no mesmo dia, às 15h03, foi novamente hospitalizada e que somente no dia 16/12/2018, às 23h57, após mais de 48h de trabalho de parto, ocorreu o parto natural.

Assevera que a bebê, terceira requerente, já se encontrava em estado de sofrimento fetal quando do nascimento e que a demora no parto causou graves danos cerebrais à criança.

Sustenta a responsabilidade civil do Estado e o dever de reparação pelos danos morais e materiais sofridos pelos autores, ante a negligência da equipe médica em persistir com o parto normal após obter diagnóstico de PRÉ-ENCLÂMPSIA GRAVE, o qual reclama intervenção para realização de parto cesáreo.

Com a inicial vieram documentos.

Os autos vieram declinados da 8ª Vara Cível de Brasília, ID 50572369.

Tutela de urgência indeferida nos termos da decisão, ID 51457039. Na oportunidade foi deferida a gratuidade de justiça.

Ofício, ID 52284645, noticiando a interposição de agravo de instrumento e o indeferimento da tutela. recursal requerida.

Devidamente citada, a parte ré apresentou contestação, ID 54555833, para sustentar a inexistência do dever de indenizar do requerido, sob os seguintes argumentos: (i) ausência de responsabilidade civil do estado (II) ausência de comprovação do nexo causal, (III) inocorrência de erro médico ou de culpa atribuível aos agentes públicos. Posteriormente, juntou relatório médico extraído do prontuário da autora, ID 54758438.

Em réplica, ID 57491075, a autora rebateu os argumentos da contestação e reiterou os pedidos formulados na inicial.

Manifestação do Ministério Público, ID 57964955, pela manutenção do indeferimento da tutela e reabertura de prazo a parte autora em razão dos documentos acostados pelo réu, ID 54758438.

Intimadas a especificarem provas, ID 58012689, a parte autora requereu o desentranhamento dos documentos, ID’s 54758438, 54765497, sob o argumento de que foram juntados de forma intempestiva.

Pugnou julgamento do feito e procedência dos pedidos autorais. Ainda, pela eventualidade da realização de prova pericial. A parte requerida, por sua vez, requereu a realização de prova testemunhal, com a oitiva dos profissionais que atuaram no atendimento médico, ID 59410495.

Manifestação do Ministério Público pela oitiva das testemunhas arroladas pelo Distrito Federal, ID 59586671.”

A decisão saneadora de ID 60476354 indeferiu o pedido de prova testemunhal e deferiu a prova pericial.

Quesitos do Distrito Federal ao ID 54765499; quesitos dos autores ao ID 62112236.

O ofício de ID 69600676 informou o desprovimento do agravo de instrumento.

O Ministério Público apresentou quesitos ao ID 75570880.

A parte autora juntou documentos solicitados pelo perito (ID 84422247).

Laudo pericial ao ID 90758617.

A parte autora se manifestou ao ID 90896088, repisando o pedido de concessão de tutela de urgência/evidência, para determinar que o réu passe a efetuar o pagamento de pensão mensal no valor de um salário mínimo.

O Distrito Federal impugnou o laudo pericial (ID 95277860).

Laudo complementar ao ID 96926053.

Ofício informando o não conhecimento de recurso de agravo de instrumento relativo a processo diverso (ID 97052556).

Ofício relativo a este processo, informando o não conhecimento de agravo de instrumento interposto pelos autores (ID 97088047).

Os autores reiteraram o pedido de tutela provisória ao ID 97897884.

O Distrito Federal apresentou impugnação ao Laudo Pericial ao ID 99030720.

O Ministério Público oficiou pela procedência dos pedidos formulados por A.S.D.J.P.

Os autos vieram conclusos para sentença.

É o relatório. DECIDO.

De início, verifico que o ofício acostado ao ID 97052556 não se refere a estes autos, pelo que determino o desentranhamento do documento.

No mais, estão presentes os pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo. As partes são legítimas e há interesse de agir. Não há vícios a sanar.

Adentro o mérito.

Cinge-se a controvérsia à responsabilidade do Distrito Federal por erro médico ocorrido no parto da autora, consistente em conduta negligente (omissão) na verificação de sofrimento fetal, tendo por consequência os danos cerebrais irreversíveis causados à nascitura.

O artigo 37, §6º, da Constituição da República, prevê:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

No caso de alegado erro médico, revela-se aplicável a teoria da culpa anônima. Deve-se aferir, portanto, se o serviço público não funcionou, funcionou mal ou funcionou com atraso, acarretando dano direto e imediato a terceiro.

Para tanto, é preciso averiguar o elemento subjetivo da conduta, culpa, sendo indispensável perquirir se os profissionais da rede de saúde adotaram a melhor técnica para o tratamento adequado do paciente.

Nesse sentido, colhem-se os seguintes julgados:

AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO MORAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. RESPOSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MÁ PRESTAÇÃO DE SERVIÇO EM HOSPITAL PÚBLICO. NÃO CONFIGURAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1. Quanto à responsabilidade do Estado por atos omissivos, observa-se que em nosso ordenamento jurídico é aplicada a teoria da faute du service, sendo entendida a faute como elemento subjetivo, no caso, a culpa. 2. Há responsabilidade subjetiva quando para caracterizá-la é necessário que a conduta geradora de dano revele deliberação na prática do comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em uma ou outra hipótese resulta transgredido. (...) 5. Recurso conhecido e negado provimento. Acórdão n.931818, 20100111900829APC, Relator: GISLENE PINHEIRO, Revisor: J.J. COSTA CARVALHO, 2ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 30/03/2016, Publicado no DJE: 08/04/2016. Pág.: 151/209)

APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. NÃO CONHECIMENTO. SERVIÇO NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE. ERRO MÉDICO. NÃO COMPROVAÇÃO. PROCEDIMENTO ADEQUADO. NEXO DE CAUSALIDADE AFASTADO. PEDIDO INDENIZATÓRIO. INVIABILIDADE. 1. A responsabilidade do Estado por erro médico é, em regra, subjetiva, sendo indispensável a prova de que, por inobservância do dever de cuidado objetivo, os profissionais de saúde do Poder Público deixaram de adotar as técnicas adequadas para o melhor tratamento da saúde dos pacientes. Além disso, é necessária a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o dano. 2.A falta da comprovação da ocorrência de erro médico acaba por afastar o nexo de causalidade entre o serviço prestado pelos médicos da rede pública de saúde do Distrito Federal e o dano moral alegado pela Autora. 3.Negado provimento ao recurso. Unânime. (Acórdão n.1021978, 20140111895305APC, Relator: ROMEU GONZAGA NEIVA 7ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 24/05/2017, Publicado no DJE: 06/06/2017. Pág.: 887-900)

PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. DISTRITO FEDERAL. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS NÃO DEMONSTRADA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL. CIRURGIA DE CATARATA. DIABETES PREEXISTENTE. 1. Trata-se de apelação interposta em face da sentença que julgou improcedente o pedido de indenização por danos morais. 2. Não há se falar em ofensa ao Princípio da Identidade Física do Juiz quando não foi colhida prova oral em audiência. 3. A responsabilidade civil do Estado por danos causados por seus agentes a terceiros, em regra, é objetiva (art. 37, §6º da CF), sendo observada a teoria do risco administrativo, segundo a qual não se perquire a culpa, mas sim o nexo de causalidade entre o serviço público oferecido e o dano sofrido pelo administrado, devendo ser verificada a ocorrência dos seguintes elementos: i) o ato ilícito praticado pelo agente público; ii) o dano específico ao administrado; e iii) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano sofrido. Não configurados quaisquer desses requisitos, deve ser afastada a responsabilidade civil do Estado. 3. No caso de suposto erro médico na rede de saúde do Estado, a responsabilidade estatal é subjetiva, fundada na teoria da "falta do serviço", sendo imprescindível a comprovação da conduta imprudente, negligente ou imperita do profissional. (...) 5. Recurso conhecido e desprovido. (Acórdão n.1135863, 07112272720178070018, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 09/11/2018, Publicado no DJE: 13/11/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

Dito isso, passo à análise da presença dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado no caso concreto, a saber: a) conduta culposa; b) nexo causal; c) dano.

Verifico que o dano experimentado pela terceira autora é incontroverso ante o diagnóstico de paralisia cerebral, tetraplegia espástica com atraso cognitivo, microcefalia pós-natal e desdobramentos que impedem o desenvolvimento normal da autora menor, comprovados documentalmente aos ID 50545672, 50551483, 81883065 e 81883067.

A propósito, a autora menor foi considerada, por ocasião da perícia judicial, como “total e definitivamente dependente de terceiros para todas as atividades da vida diária” (ID 90758617 - Pág. 5).

Controvertem as partes especificamente quanto: a) à existência de conduta negligente dos médicos obstetras que prestaram atendimento à gestante; b) ao nexo de causalidade entre tal conduta e os danos irreversíveis experimentados pela recém-nascida.

Visto que o assunto tratado envolve termos e condutas médicas bastante específicas, inalcançáveis a este juízo por via própria, a prova pericial - sempre aliada aos demais elementos colhidos no decorrer da instrução probatória – se reveste de grande valia para a formação do convencimento motivado deste juízo.

Com base no laudo do “expert”, é possível aferir, enfim, a ocorrência ou não do alegado erro médico.

No caso dos autos, a documentação acostada (fichas e prontuários médicos da paciente) orientou as conclusões da perícia judicial. O laudo técnico, elaborado por expert em conformidade com o disposto nos artigos 473 do CPC, merece a consideração deste juízo para a formação de seu convencimento.

Com efeito, não prospera a impugnação lançada sobre o laudo pericial, pois que este se encontra devidamente fundamentado por profissional habilitado e imparcial, lastreado em todos os elementos documentais de prova colhidos nos autos.

Dito isso, é rigor o reconhecimento da conduta negligente dos médicos obstetras que atenderam a parturiente, bem como do nexo causal entre a conduta culposa e o resultado danoso, consistente nos danos irreversíveis causados à nascitura.

Por um lado, observo que não há notícia nos autos de qualquer doença prévia, detectada em exames pré-natais, que poderiam acometer a gestante e o feto.

Por outro lado, de acordo com o il. perito, “é possível afirmar que o dano cerebral permanente da criança foi originado pelo sofrimento fetal agudo”.

O sofrimento fetal, por sua vez, poderia e deveria ter sido diagnosticado pela equipe médica que, com atuação diligente por meio de exames a cada 10 minutos, pelo menos, poderia perceber o quadro e intervir imediatamente para a realização do parto.

Não se afirma aqui que a gestante não teve nenhum acompanhamento médico durante o período de internação. De fato, como apontado pelo Distrito Federal em impugnação, constam 17 registros de exames realizados junto ao binômio materno-fetal no dia 16/12/2018 (ID 50546371 - Págs. 7/14).

Apesar disso, verifica-se do prontuário que, como bem apontado pelo perito judicial, não há a realização de nenhum exame no período compreendido entre 22h37 e 23h35 (hora do parto), sendo este o lapso temporal em que se iniciou o quadro de sofrimento fetal.

Ou seja, o que se colhe da conclusão pericial é que, durante a última hora do parto, a equipe médica negligenciou a realização de exames necessários à preservação da integridade física do feto, descuidando-se de aferir o quadro de sofrimento fetal que deu ensejo ao dano cerebral permanente.

Como parte integrante desta sentença, valho-me das conclusões da perícia técnica, lançadas nos seguintes termos (ID 90758617):

“Antes do parto, não foi diagnosticada a ocorrência de sofrimento fetal agudo pela equipe da Clínica de Obstetrícia. Consta no prontuário médico que, em 16/12/2018, às 22h37min, foram auscultados pela última vez os batimentos cardíacos fetais, quando a Sra. L. se encontrava em trabalho de parto com 3 contrações uterinas em 10 minutos, colo dilatado para 9 cm e com membranas amnióticas íntegras (ID 50546371, pág. 14), portanto, sob a visão técnica Médica Pericial, o Sofrimento Fetal Agudo ocorreu entre o período de 22h37min do dia 16/12/2018 (horário que consta no prontuário médico como tendo sido auscultados pela última vez os batimentos cardíacos fetais), e 23h35min, hora do parto. Ao se verificar um quadro de sofrimento fetal, a conduta recomendada seria a indicação de cesariana, porém, o Sofrimento Fetal Agudo não foi diagnosticado pela equipe da Clínica de Obstetrícia, em virtude de não terem sido auscultados os batimentos cardíacos fetais (BCF) por período de uma hora, entre às 22h37min do dia 16/12/2018 e o momento do parto, 23h35min de 16/12/2018. Deveria ter sido instalado um aparelho de Cardiotocografia (cardiotocógrafo) para monitorar continuamente as contrações uterinas e os batimentos cardíacos fetais. Na ausência do citado equipamento, deveriam ter sido regularmente auscultados os BCF a cada 10 minutos no máximo, em virtude de terem sido utilizados 3 comprimidos de Misoprostol e de ter sido instalado soro com ocitocina na paciente (a utilização conjunta destes medicamentos acarretavam um considerável risco de ocorrer hiperestimulação uterina, polissistolia e Sofrimento Fetal Agudo). Sob a visão técnica médica pericial, é possível afirmar que o Sofrimento Fetal Agudo originou síndrome hipoxicoisquêmica neonatal, asfixia perinatal e encefalomalácia secundária.” (Grifou-se) Decorre do prontuário médico da parturiente a utilização de 3 comprimidos de Misoprostol para a indução do parto natural, além de soro com ocitocina. Confirma o perito judicial, na resposta ao quesito 6 formulado pelos autores, que a literatura médica indica que “a utilização do Misoprostol deve vir acompanhada da vigilância constante da vitalidade fetal, incluindo a realização de exames como a ‘cardiotocografia no período de uma a três horas após a inserção do Misoprostol’” (ID 57491075 - Pág. 12). Isso porque a manipulação do Misoprostol pode elevar o risco de sofrimento fetal (quesito 5), sendo necessário o acompanhamento zeloso da vitalidade fetal ao longo do tempo. Nada obstante, não consta do prontuário da paciente a realização da “constante vigilância” da vitalidade fetal entre 22h37 e 23h35 do dia 16/12/2018, o que por si só já configura a negligência na conduta adotada em relação à situação clínica da parturiente e do feto. Não bastasse, consta informação lançada pela equipe de enfermagem no prontuário eletrônico da paciente, às 00h do dia 17/12/2018, de que não havia médico pediatra presente na sala de parto, mesmo diante da delicada situação de saúde da nascitura (tônus e choro ausentes). Somente após a segunda solicitação da equipe de enfermagem o médico pediatra compareceu ao local. Confira-se: “Assisto RN, sexo feminino, de parto normal espontâneo, recebo em campo estéril clampeamento precoce. Tônus e choro ausentes. Levo para berço aquecido aspiro vias aéreas e gástica. VPP, solicito presença do pediatra serv. Divina que não comparece novamente solicito serv. S. chamar pediatra que compareceu. Seco corpo e cabeça, realizo ligadura do coto umbilical, apresentando 2 artérias e 1 veia. Identifico com pulseira após confirmação de dados com a mãe. Índice Apgar 1’: 02’:5’:07’’. Dr. J. A. avaliou RN e coloca no hood a 100% monitorado”.

Alega o Distrito Federal que não merece respaldo a alegação de que havia pediatras na sala de perto, pois a “descrição de prontuário pode comprovar a presença de pediatra na sala” (ID 95277861 - Pág. 7).

Sem razão.

A descrição do prontuário faz referência, às 23h57 do dia 16/12/2018, ao nome dos pediatras Dra. V. e Dr. J. A.. Ocorre que o lançamento seguinte (acima transcrito), às 00h do dia 17/12/2018 - ou seja, três minutos depois -, esclarece que o Dr. A. apenas compareceu à sala de parto após ser chamado por duas vezes, no momento em que a enfermeira já realizava o procedimento de aspiração das vias gástricas e aéreas da recém-nascida, notando a ausência de choro e tônus muscular.

Quanto à dra. V., não há qualquer relato de intervenção no período do parto e no momento subsequente.

Assim, tenho por comprovada a ausência de médico pediatra na sala de parto, fator este que, conforme elucidado pela perícia, pode ter agravado o estado de saúde da recém-nascida (ID 90758617):

“A ausência de Médico Pediatra na sala do parto por ocasião do nascimento da criança foi uma irregularidade que pode ter agravado ainda mais o quadro clínico da recém-nascida, por falta de atendimento apropriado nos primeiros minutos de vida, após um trabalho de parto com período expulsivo que originou importante asfixia perinatal à criança.”

Nesse contexto, está demonstrada a conduta negligente da equipe médica, seja por deixar de monitorar continuamente os sinais vitais do feto entre 22h37 e 23h35 (hora do parto), seja por não contar com pediatra presente na sala de parto, sendo necessário chamá-lo por duas vezes para que, enfim, atendesse ao quadro emergencial do recém-nascido.

No que tange ao nexo causal, o laudo pericial o torna indene de dúvidas (ID 90758617 - Pág. 20):

31) A condição do menor da presente ação tem relação direta com a assistência prestada à sua genitora durante o parto? Discorra.

RESPOSTA: Sim, conforme a visão técnica Médica-Pericial, sendo da competência do Juízo a decisão. Segundo a presente visão técnica (pois compete ao Juízo a decisão), teria ocorrido negligência por parte da equipe obstétrica na última hora do trabalho de parto da Sra. L. S. d. S., pois não consta em prontuário médico que tenha sido instalado um cardiotocógrafo na paciente, ou que na falta do citado equipamento, fosse realizada a ausculta em curtos intervalos dos batimentos cardíacos fetais (BCF) no período entre 22h37min do dia 16/12/2018 e o momento do parto, às 23h35min. Estes procedimentos, caso houvessem sido realizados, teriam evidenciado o diagnóstico de estar ocorrendo Sofrimento Fetal Agudo, fato que propiciaria uma rápida indicação de realização de operação cesariana. Sob a visão técnica médica pericial (pois compete ao Juízo a decisão), seria possível afirmar que o Sofrimento Fetal Agudo originou Síndrome Hipoxicoisquêmica Neonatal, Asfixia Perinatal que levou à Encefalomalácia Secundária. Diversos médicos pediatras da Parte Requerida anotaram no prontuário médico da menor A. S. d. J. P. que a Encefalopatia Crônica Não Evolutiva (ECNE) da paciente é secundária à Síndrome Hipoxicoisquêmica Neonatal (ID 84422251, págs. 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9). O médico oftalmologista da Parte Requerida que avaliou a criança em 23/12/2019 (ID 84422251, pág. 2), afirmou que a paciente apresentava comprometimento visual por anóxia cerebral secundária a Sofrimento Fetal Agudo, paralisia cerebral e epilepsia, portanto, sob a visão médica-pericial (pois compete ao Juízo a decisão), seria possível afirmar que o dano cerebral permanente da criança foi originado pelo Sofrimento Fetal Agudo. A ausência de Médico Pediatra na sala do parto por ocasião do nascimento da criança foi uma irregularidade que pode ter agravado ainda mais o quadro clínico da recém-nascida, por falta de atendimento apropriado nos primeiros minutos de vida, após um trabalho de parto com período expulsivo que originou importante asfixia perinatal à criança.”

Comprovados todos os elementos necessários à responsabilização civil do requerido, é rigor a reparação dos danos causados aos autores, na forma do artigo 37, 6º, da Constituição, e dos artigos 186 e 927 do Código Civil.

Passo à análise dos danos alegados.

Os autores – menor e genitores – postulam indenização por danos morais.

A Constituição da República assegura, em seu artigo 5º, inciso V, “indenização por dano material, moral ou à imagem”.

O Código Civil, por sua vez, prevê que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, fica obrigado a repará-lo (artigos 186 e 927).

O dano moral consiste em violação ao patrimônio imaterial da pessoa, consubstanciado no conjunto dos atributos da personalidade, tais como a honra, a liberdade, a saúde, a imagem e a integridade psicológica da vítima.

No caso dos autos, há que se destrinchar o dano moral sofrido por cada autor.

Em relação à autora A.S.D.J.P., o dano moral sofrido atingiu elevadíssima escala. No momento do parto, quando do início de sua existência extrauterina e da abertura das inúmeras possibilidades de vida que se põem no caminho de uma criança, a autora teve sua integridade física comprometida de forma irreversível.

A requerente é privada de fruir de todas as portas que se abrem ao gozo de sua infância, juventude e fase adulta. Não dispõe de saúde física para interagir com outras crianças, realizar atos cotidianos, formar-se enquanto pessoa independente e autônoma, tampouco para, no futuro, prover a própria subsistência. Não dispõe nem mesmo de saúde física para os mais simples atos da vida humana, como, por exemplo, deglutir adequadamente.

Tornou-se dependente, de forma permanente e irreversível, do cuidado de terceiros, sendo privada de um crescimento sadio. Foi-lhe tolhida a capacidade de sozinha descobrir-se e desenvolver-se enquanto ser humano, exercendo poderes de escolha e liberdade inerentes à vida jovem/adulta.

Certamente, é irreparável o dano sofrido. Contudo, para fins jurídicos, convém fixar indenização pecuniária no intuito de, ao menos, amenizar o sofrimento moral da requerente e, por outro lado, punir o ofensor, para que se abstenha da prática de novas condutas da mesma estirpe.

Tenho que o valor de R$ 130.000,00 se revela razoável e proporcional à gravidade do dano, por considerar que a lesão à integridade física e mental da autora a acompanhará por toda a vida e a impedirá de desfrutar das alegrias e descobertas da infância, juventude e fase adulta com toda a plenitude que era de se esperar. O valor arbitrado indica uma reparação justa ao sofrimento moral da autora, considerando-se as indenizações fixadas pela jurisprudência deste Corte de Justiça em casos de semelhante gravidade.

Quanto aos genitores da menor, ambos amargaram dano moral reflexo, na medida em que tiveram suas esferas jurídicas atingidas pela dolorosa enfermidade que acomete a filha em comum. O dano cerebral permanente da filha recém-nascida é capaz de dilacerar as expectativas que nutriam em relação à chegada da nova integrante da família. A situação vivida durante o parto – momento que, em regra, é de extrema alegria para os genitores – findou por implodir tanto os sonhos que tinham em relação à criança, quanto os desejos próprios do exercício pleno da maternidade/paternidade da forma como almejada durante a gestação.

Além disso, os cuidados permanentes com a filha impõem aos genitores adaptações perenes na rotina da família, que agora se depara com a realização de inúmeras consultas médicas, exames e tratamentos para prover o bem-estar da criança.

Nesse passo, reputo que a indenização de R$ 50.000,00 para cada genitor é adequada à reparação do sofrimento moral reflexo amargado.

Os autores também pedem a condenação do Distrito Federal ao pagamento de pensão mensal vitalícia no importe de cinco salários mínimos para A.S.D.J.P. e de um salário mínimo para os genitores da infante.

A pensão vitalícia resulta da incapacidade do ofendido de exercer seu ofício ou profissão, ou seja, trata-se de uma indenização por perda da capacidade laborativa e pela perda da capacidade de prover a própria subsistência, a teor do artigo 950 do Código Civil:

Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

A perda da capacidade laborativa de A.S.D.J.P. resta comprovada ante o diagnóstico médico de paralisia cerebral, tetraplegia espástica com atraso cognitivo, microcefalia pós-natal e desdobramentos que impedem o desenvolvimento normal da autora menor, que é “total e definitivamente dependente de terceiros para todas as atividades da vida diária” (ID 90758617 – pág. 5).

Portanto, uma vez demonstrado o nexo causal e o caráter irreversível das sequelas sofridas pela menor, deve ser fixada pensão vitalícia em valor compatível com as suas limitações e com os tratamentos necessários.

Embora a menor pleiteie o arbitramento da pensão em cinco salários mínimos, não há nos autos documentação que comprove que suas necessidades mensais alcancem tal monta.

Por outro lado, é possível se presumir que a necessidade da autora perfaz o montante de ao menos três salários mínimos.

Para tanto, há que se considerar que o valor de um salário mínimo supostamente é o suficiente para o atendimento das necessidades básicas de alimentação, vestuário, higiene, transporte, saúde básica e moradia.

Também há que se verificar que, sendo permanente o dano cerebral, é razoável crer que a autora necessite de uma cuidadora para auxiliá-la nas atividades diárias de alimentação, higiene e acompanhamento de saúde, até mesmo para que sua genitora possa se reinserir no mercado de trabalho.

Considerando que a remuneração de uma cuidadora é de pelo menos um salário mínimo, já se verificam gastos mínimos de dois salários mínimos com a subsistência da autora, sendo um para despesas básicas e outro para a cuidadora.

Ademais, a autora também possui gastos extraordinários com consultas particulares com neuropediatras, pediatras, nutricionistas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogas, conforme relatórios médicos de ID 84422250, ou, alternativamente, com o pagamento de plano de saúde, cujo valor varia, durante sua vida, entre R$ 343,00 e R$ 2.057,90.

Portanto, consideradas todas essas variáveis e as necessidades excepcionais advindas da condição clínica da requerente, reputo suficiente o arbitramento de pensão mensal no importe de 3 (três) salários mínimos, retroativamente à data do evento danoso (parto).

Quanto à pensão mensal vitalícia postulada pelos genitores, estes não se desincumbiram do ônus de comprovar que, em razão da situação da filha, não detêm mais capacidade laboral. A propósito, é informado na petição inicial que o genitor trabalha como porteiro e que apenas a mãe teria perdido a viabilidade laboral. Não há notícia, no entanto, de que a mãe já estivesse inserida no mercado de trabalho anteriormente. Ademais, nos termos da fundamentação acima, o pedido de pensão mensal para a menor já engloba as despesas com cuidadora, como relatado na inicial. Portanto, resta improcedente o pedido nesta parte.

DA TUTELA ANTECIPADA

Nos termos do artigo 300 do CPC, “a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.

A probabilidade do direito autoral já se encontra demonstrada em sede de cognição exauriente, na qual se verificou a responsabilidade civil do Distrito Federal pelos danos causados à menor.

Já o perigo da demora também está presente na situação em tela, pois que a pensão mensal arbitrada em favor da menor se presta à sua subsistência digna, considerando-se a dificuldade de seu meio familiar em prover todos os cuidados necessários à sua especial condição de saúde.

Assim, preenchidos os requisitos, DEFIRO a tutela antecipada para determinar ao Distrito Federal que promova o pagamento de pensão mensal em favor de A.S.D.J.P. no valor de três salários mínimos vigentes à época do pagamento.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE o pedido para:

a) CONDENAR o Distrito Federal ao pagamento de R$ 130.000,00 (cento e trinta mil reais), a título de reparação por dano moral, à autora A.S.D.J.P., com juros de mora pelo índice oficial da caderneta de poupança desde o evento danoso (16/12/2018) e correção monetária pelo IPCA-E desde a presente data;

b) CONDENAR o Distrito Federal ao pagamento de R$ 50.000 (cinquenta mil reais), a título de reparação por dano moral, à autora L. S. d. S., com juros de mora pelo índice oficial da caderneta de poupança desde o evento danoso (16/12/2018) e correção monetária pelo IPCA-E desde a presente data;

c) CONDENAR o Distrito Federal ao pagamento de R$ 50.000 (cinquenta mil reais), a título de reparação por dano moral, ao autor L. C. d. J. P., com juros de mora pelo índice oficial da caderneta de poupança desde o evento danoso (16/12/2018) e correção monetária pelo IPCA-E desde a presente data;

d) CONDENAR o Distrito Federal ao pagamento de pensão mensal vitalícia de 3 (três) salários mínimos vigentes à época de cada pagamento, em favor de A.S.D.J.P., retroativamente à data do evento danoso (16/12/2018), com juros de mora pelo índice oficial da caderneta de poupança e correção monetária pelo IPCA-E desde o vencimento de cada pensão, no dia 16 de cada mês, a iniciar por 16/12/2018. As parcelas vencidas deverão ser pagas de uma única vez.

Em tempo, DEFIRO a tutela antecipada de urgência par determinar ao DISTRITO FEDERAL que inicie, no prazo de 15 dias, o pagamento das parcelas vincendas relativas à pensão fixada no item “d” acima.

Declaro resolvido o mérito, na forma do art. 487, I, do CPC.

Ante a sucumbência mínima dos autores, deverá o requerido arcar integralmente com os honorários advocatícios e honorários periciais, bem como ressarcir as custas iniciais adiantadas pelos autores. Arbitro os honorários advocatícios em 8% do valor da condenação, a teor do art. 85, §3º, II, do CPC, considerando a facilidade quanto ao lugar (Brasília) e à forma (integralmente virtual) da prestação do serviço, assim como a natureza da causa, que não implica em maiores incursões em matérias jurídicas complexas.

Sem custas finais, ante a isenção legal do Distrito Federal.

Sentença sujeita ao reexame necessário, na forma do art. 496, I, do CPC.

À Secretaria: exclua-se o documento de ID 97052556, pois impertinente ao feito.

Sentença registrada. Publique-se e intimem-se.


]Jornal Jurid



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