Empresa, investigada pela ANS por uso de cloroquina, também pressionava médicos a ofertar kit com medicamentos ineficazes para pacientes da doença e fazia lista de quem não seguisse, denuncia médico
Diego Amorim Barreto conta que o pai, Gileno Soares Barreto, morreu de covid-19, mas declaração de óbito não menciona a doença.
Em 9 de fevereiro de 2021, o servidor público Gileno Soares Barreto, de 72 anos, deu entrada com o diagnóstico de coronavírus no hospital Teresa de Lisieux, em Salvador (BA). A unidade hospitalar é administrada pela operadora de saúde Hapvida, a quarta maior do Brasil. Em 21 dias de internação Barreto viu seu quadro piorar gradativamente, foi intubado, passou por uma traqueostomia, mas não resistiu. Morreu. Na sua declaração de óbito não consta, contudo, a causa que o levou ao hospital, a covid-19. É algo semelhante ao que ocorreu em outra operadora, a Prevent Senior e que vem sendo destrinchado por investigações jornalísticas e pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia do Senado Federal.
A justificativa dada pela Hapvida para os familiares de Barreto foi: não havia espaço físico no formulário padrão que deve ser entregue para a Secretaria Municipal de Saúde. O argumento é falacioso. Conforme o documento ao qual o EL PAÍS teve acesso, das seis linhas sobre a causa da morte que poderiam ser preenchidas, apenas cinco foram. Na declaração de óbito e na certidão de óbito (essa emitida no cartório) constam que o servidor público morreu de choque séptico, infecção intestinal, infecção do trato respiratório inferior, tendo como a causa real câncer de próstata. Hipertensão arterial sistêmica consta numa segunda parte, onde se descreve outras condições significativas que contribuíram para a morte. “Fiquei sem entender porque não estava o registro de covid-19. Percebi a gravidade depois que surgiram os relatos sobre a fraude da Prevent Senior”, disse ao EL PAÍS o filho de Gileno Barreto, o técnico ambiental Diego Amorim Barreto, 37.
Desde a morte de seu pai, em 2 de março, Diego só dorme com a ajuda de remédios. Dias depois do óbito, ele foi procurado por um representante do Grupo Hapvida para falar sobre o tratamento de seu progenitor. Queixou-se que os médicos teriam usado indiscriminadamente medicamentos sabidamente ineficazes contra o coronavírus, como a cloroquina. E relatou que o câncer de próstata registrado no documento oficial estava em estágio inicial, fora descoberto havia menos de um mês. Portanto, sem grandes complicações que pudessem resultar no óbito.
O funcionário do hospital prometeu colocá-lo em contato com um representante da direção da empresa, o que não havia ocorrido até esta semana. Ele só foi procurado no dia 29 de setembro, poucos minutos depois de registrar a queixa em um site que compila reclamações de consumidores. “Foi quando me disseram sobre a falta de espaço na declaração de óbito”. Uma diretora da instituição foi além. “Ela disse que o caso do meu pai era o primeiro que eles tiveram conhecimento, mas que sabiam que outros apareceriam em breve”, relatou Diego.
De erro em erro
A declaração de óbito é o documento referência tanto para a notificação da causa da morte nas secretarias de saúde ―que vão basear as estatísticas de mortalidade do Ministério da Saúde― quanto base para obtenção da certidão de óbito nos cartórios. Se um paciente é internado por complicações da covid-19, a doença deve estar descrita no documento, explica Fátima Marinho, médica epidemiologista e consultora sênior da Vital Strategies, uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a governos.
“O médico vai certificar a causa básica, que é a verdadeira causa [do óbito], ou seja, a doença ou lesão que desencadeou a sequência de complicações que levou ao óbito. Na covid-19, a pneumonia bacteriana é uma complicação frequente, que pode causar septicemia e um choque séptico. Nesses casos, o choque séptico é o modo de morrer”, salienta Marinho, que não teve acesso ao prontuário do paciente relatado nesta reportagem.
Algumas causas associadas apontadas, como infecção respiratória, podem ser complicações do câncer, mas existe a probabilidade de serem complicações da covid-19. A orientação da OMS é que, caso o paciente seja internado pela doença causada pelo coronavírus, ela seja considerada a causa de morte mesmo que o paciente tenha câncer, desde que este não seja terminal. O câncer deve, então, ser relatado no segundo campo da declaração e não como a causa principal.
À reportagem, a assessoria do Hapvida admitiu que “houve um erro no registro da declaração de óbito”, mas que foi feita a comunicação oficial no sistema municipal de saúde, e a morte de Barreto foi registrada como covid-19.
De erros intencionais ou não ―conforme vem sendo desvelado no caso da Prevent Senior (que é investigada por suspeita de fazer pacientes de cobaias e omitir dados de seus registros de óbitos), e, agora no do Hapvida―, fica clara a existência de uma série de subnotificações de registros de óbitos por coronavírus. E, nesses casos, em hospitais particulares gerenciados por seguradoras de saúde que tinham como protocolo prescrever o comprovadamente ineficiente kit covid. Oficialmente, mais de 596.000 pessoas morreram pela doença no Brasil.
Declaração de óbito de Gileno Soares Barreto. Nela, não consta a morte por covid-19, apesar de internação pela doença
Disseminação de cloroquina
No fim de setembro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) decidiu sair da inação e começou a investigar as operadoras de saúde que passaram a disseminar o uso da cloroquina. Três são alvos de apurações distintas: a Prevent Senior, a Hapvida e a Unimed Fortaleza. Desde o fim do ano passado, o trio já vem sendo denunciado por uma série de reportagens, entre elas uma do EL PAÍS, publicada em março de 2021, quando já se sabia que a cloroquina era completamente ineficaz no tratamento da covid-19.
Ranking de “médicos ofensores”
Na Prevent Senior e no Hapvida protocolos elaborados pela diretoria pressionavam os médicos a prescreverem esses medicamentos. A direção dizia que os pacientes estavam passando por estudos que jamais foram apresentados. Tudo devidamente registrado em grupos de WhatsApp dos médicos. “Quem não seguisse os protocolos era incluído em uma lista de médicos ofensores e a punição maior seria a demissão”, contou ao EL PAÍS o médico Felipe Nobre, ex-funcionário da Hapvida. Ele conta ter sido um dos que contrariaram as orientações da chefia e acabou demitido, em maio. Dias depois, ele relatou a perseguição ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina do Ceará.
A promotoria do consumidor chegou a emitir uma multa contra o Hapvida de 469.333 reais por “impor, indistintamente a todos os médicos conveniados, que receitem determinados medicamentos no tratamento de pacientes com Covid-19″. “Uma operadora de saúde não pode determinar o que o médico tem de prescrever ao consumidor. Isso fere a autonomia do médico”, disse à reportagem o promotor Hugo Vasconcelos Xerez. A empresa recorreu da multa e não há data para o seu julgamento.
Se não bastassem os grupos de comunicação dos médicos, que comprovam as pressões e as ameaças e demissões, há farto registro do próprio Hapvida. Em um vídeo institucional de fevereiro deste ano, o presidente do plano de saúde, Jorge Pinheiro, chegou a falar em uma “visão privilegiada” desta operadora de saúde sobre o comportamento da pandemia por estar presente em todas as cinco regiões do país. E apresentou um gráfico ―com coeficientes de mortalidade da operadora e de Fortaleza― no qual apontava que o usuário Hapvida estaria 60% mais protegido que o das demais operadoras e mesmo do serviço público na cidade. Incluía entre as causas deste suposto resultado a doação do kit covid. “Há meses conseguimos levar nosso pronto-atendimento para a casa do usuário, para que ele se trate em casa. Sempre atuando de maneira precoce, doando medicações como até hoje nós fazemos”, aponta na gravação. O kit covid-19 continha remédios como cloroquina e ivermectina, sem eficácia contra a doença.
Questionada sobre as razões que a levaram a disseminar um tratamento ineficaz e nada seguro aos seus pacientes, o Hapvida disse que isso ocorreu no início da pandemia. Ainda assim, onze meses após o início da transmissão comunitária do vírus no Brasil, Jorge Pinheiro divulgava o vídeo citado. Em outubro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde se embasava em um estudo feito em 32 países que comprovava que a cloroquina não funcionava no tratamento de covid-19 para orientar o não uso desse medicamento. Ainda assim, o Hapvida persistiu na entrega dos kits covid.
Reprodução de mensagens em grupo de funcionários da Hapvida no Watsapp mostram pressão para
prescrever cloroquina contra a covid-19.
Em nota, o plano de saúde disse que tinha o objetivo de oferecer todas as possibilidades aos seus usuários e, por essa razão, “houve uma adesão relevante da nossa rede, que nunca correspondeu à maioria das prescrições”. Segue a companhia: “Nas ocasiões em que o médico acreditava que a hidroxicloroquina poderia ter eficácia, sua definição ocorria sempre durante consulta, de comum acordo entre médico e paciente, que assinava termo de consentimento específico em cada caso. Ainda assim, há meses, não se observa a prescrição dessa medicação nas nossas unidades”.
Fundado há 42 anos, o Hapvida é o maior plano de saúde das regiões Norte e Nordeste. No país, tem 2,7 milhões de beneficiários, o que representa 5,7% do mercado nacional, segundo dados da ANS. Possui 47 hospitais próprios. A empresa pertence à família Pinheiro que está lista de bilionários da Forbes como uma das mais ricas do Brasil. O fundador da companhia, Candido Pinheiro Koren de Lima, tem uma fortuna estimada em 3,7 bilhões de dólares (19,8 bilhões de reais).
Conselho conivente
Se a ANS começou a agir diante de tantas suspeitas de irregularidades, o mesmo não se pode dizer do Conselho Federal de Medicina e de seus representantes locais, os Conselhos Regionais. O CFM tem sido conivente com o uso indiscriminado da cloroquina e já emitiu parecer que dá autonomia aos médicos para prescreverem o tratamento precoce com estes medicamentos, embora o Código de Ética Médica reconheça autonomia do profissional observando o que preconiza a ciência e respeitando a legislação. Nesta sexta-feira, diante da insistência em não confrontar a prática ineficaz, o conselho se tornou alvo.
A Defensoria Pública da União ajuizou uma ação contra o CFM por chancelar o uso de cloroquina e de hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com sintomas leves, importantes ou críticos de covid-19. A ação quer que o conselho retire a orientação dessas drogas para o tratamento de coronavírus e oriente ostensivamente a comunidade médica e a população sobre a ineficácia desses medicamentos para tratar a infecção respiratória. Em nota, o órgão alegou que ainda não recebeu qualquer comunicação judicial sobre a ação. Se for acionado, oferecerá todas as informações pertinentes.
A ação pede indenização por danos morais coletivos no valor mínimo de 60 milhões de reais. O valor, se obtido, será depositado no Fundo de Direitos Difusos e pode ser direcionado a uma finalidade específica ligada ao tratamento de vítimas da covid-19 e do tratamento precoce.
No caso da denúncia feita pelo médico Felipe Nobre ao Conselho Regional de Medicina do Ceará, pouco ou quase nada andou. Em um ofício enviado à CPI da Pandemia, a entidade relatou apenas que instaurou um processo ético profissional contra o plano de saúde Hapvida, mas que não podia fornecer mais detalhes, por ele tramitar em sigilo. “Eu esperava que a saúde pública fosse prioridade, mas, pelo visto, não é”, disse o médico denunciante. A mesma busca por justiça tem o outro afetado pela Hapvida. “Não tenho intenção de divulgar a história do meu pai para obter ganhos. Se o protocolo foi falho em algum momento, quero justiça. Quero que outras pessoas se protejam”, diz o insone Diego Barreto.
Diego Amorim Barreto olha documentos do prontuário de seu pai, morto em um hospital da Hapvida em Salvador
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