sábado, 11 de julho de 2015

DO CONTEXTO MÉDICO PERICIAL – O CORPORATIVISMO

Entrementes, para guiar o estudo da falsa perícia, sobremaneira na área médica, é mister aprofundarmos no contexto em que se dá a perícia médica e as peculiaridades deste munus , para a seguir efetuar o exame do ferramental adjetivo que podem ensejar a propositura de uma ação penal com chances de produzir uma condenação.

Uma boa definição do comportamento ardiloso de que se reveste o perito que opera com a falsidade de índole criminosa é a fornecida pelo eminente Procurador de Justiça Marco Antônio de Barros  (BARROS, Marco Antônio. A Busca da Verdade no Processo Penal. São Paulo: RT, 2002, p.205)

“O perito que falseia, oculta, distorce ou nega a verdade no laudo que subscreve, simplesmente produz o engodo que macula a sua participação no processo, aniquila a confiança que o juízo lhe depositara, prejudica sua própria carreira, e se transforma em criminoso, devendo responder pela prática do crime de falsa perícia (art. 342, §§ 1º e 2º, do CP).”

Trazendo para a seara médica a problemática enfrentada acima encontra um lamentoso eco em Célia Destri (DESTRI, Célia. A Prova Pericial e suas Conseqüências: A Manipulação ), que além de registrar a existência de um espírito de corpo na classe médica a prejudicar deliberadamente a apuração da verdade em casos de erro médico, assinala que:

“Na verdade, muitas vezes, por se valerem da confiança dos magistrados, os Peritos manipulam o laudo técnico a seu bel prazer e, infelizmente, não é hábito em nosso país que sejam processados, o que é uma lástima.”

A douta jurista, que vivenciou pessoalmente o erro médico, e continua a fazê-lo profissionalmente como advogada fundadora e Presidente da Associação das Vítimas de Erros Médicos (AVERMES), adverte ainda em sua obra (Op.cit., p.109):

“Os erros médicos são cometidos desvairadamente, porém continuam sendo exceção e não regra, mas com a indulgência de alguns juízes, não podem continuar prevalecendo em virtude de laudos periciais que escondem, maquilam, e embotam com termos técnicos, os erros grosseiros de seus colegas, porque médico é amigo sincero de médico e não de magistrado, portanto, o Perito da confiança do juízo jamais será amigo sincero deste.”

A autora aponta um fato que lança uma presunção de suspeição sobre laudos periciais médicos, em decorrência do famoso corporativismo, ou da famosa máfia de branco . O certo é que não é incomum uma ação por erro médico, que contem as evidências do erro para um olhar imparcial e relativamente bem informado no assunto, ser derrubada por um laudo tendencioso e manipulado, na melhor das hipóteses por puro esprit de corps . Agregando valor a este raciocínio é a contribuição do eminente magistrado Miguel Kfouri (Kfouri Neto, Miguel. Culpa Médica e Ônus da Prova, São Paulo: RT, 2002, pp.167-168), que traz à colação um emblemático aresto:

“É preciso inovar na questão da produção da prova médica em ações que tratam da responsabilidade dos profissionais da área da saúde (art. 1545 do CC). A culpa, elemento fundamental da responsabilidade civil (Clóvis Bevilácqua, Código Civil Comentado , Francisco Alves, 1943, V/326), passou a ser questionada e tende a sofrer um colapso pela tendência do direito contemporâneo, muito mais realista e próxima dos das vítimas do injusto. O direito do cidadão de obter um atendimento qualificado para a sua saúde deixou de ser discurso constitucional (art. 196 da Constituição da República) e passou a integrar a cartilha do consumidor que, indefeso, reclamava pela mudança do jogo de cartas marcadas que caracterizava, quase sempre, processos movidos contra médicos e hospitais."

O Judiciário precisa adaptar-se rapidamente a uma realidade assustadora, qual seja a de que estatísticas de erros médicos progridem em escala acentuada, pois somente as associações de vítimas de erros médicos do Rio de Janeiro e São Paulo têm 3100 processos na correndo na Justiça (“ Quando os médicos erram ”, Revista Veja, n.9, 83, mar.1999).

É permitido, dentro desse panorama e da tendência de valorizar a teoria da responsabilidade não apenas pelo fator ilicitude do ato objetivo que seria danoso, mas pelo conceito de dano injusto (interesse alheio violado por infração de norma jurídica), inverter o ônus da prova (art. 6º, VIII, da Lei nº 8.078/90). A Apelante da ação não necessita provar que ficou paraplégica ao procurar remédio para uma dor que parecia de torcicolo.

Os profissionais (pessoas físicas e jurídicas) que assumiram a obrigação de conferir um tratamento justo à paciente é que necessitam provar que não erraram e que a paraplegia era inevitável. A eles incumbe a explicação da conseqüência. A Apelante apresenta apenas a sua condição atual como requisito probatório. Será lícito ou humano exigir-lhe algo mais ? E ainda: seria correto obrigá-la, agora mais deserdada da fortuna material, a pagar médicos para provar que está em cadeira de rodas por erro médico ? O processo, em sendo conduzido no sistema tradicional, passa a ser autoritário, porque reduz as chances da vítima em obter uma cognição adequada.

A pessoa debilitada física e financeiramente perde o equilíbrio das armas do processo justo e isso é lamentável . Interliga-se um princípio ideológico (''''perseguir a verdade real'''') com o da igualdade substancial. Para acabar com desigualdades ou suprir inferioridades o Juiz conta com um ''''valioso instrumento corretivo'''' e que consiste ''''na possibilidade de adotar ex officio iniciativas relacionadas com a instrução do feito'''' (Barbosa Moreira, “ A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção do processo ”. RePro 37/146, RT),

A hipossuficiência de uma das partes não é um handcap porque ''''o processo não é um jogo em que o mais capaz sai vencedor, mas um instrumento de justiça com o qual se pretende encontra o verdadeiro titular de um direito'''' (José Roberto Santos Bedaque, “ Garantia da amplitude de produção probatória ”, Garantias Constitucionais do Processo Civil, obra coletiva, RT, 1999, p.175).

A decisão combatida rompe barreiras e desmistifica a posição de neutralidade do juiz, sabidamente decadente. Existe máfia branca sim, conforme denuncia Gerson Luiz Castelo Branco (“ Aspectos da responsabilidade civil e do dano médico ”, RT 733/63). Não interessa manter a tradição que não mais satisfaz e que aumenta o ceticismo popular contra a lei: importa reverter o quadro de inaptidão judiciário.” ( TJSP , AgI. nº 99.305-4/6, Rel. Juiz Ênio Santarelli Zuliani – RF 348/317)

Ou seja, este lapidar aresto reconhece plenamente a existência da máfia de branco , e, no que tange à manipulação em prova pericial médica Célia Destri (Op.cit., p.32) acrescenta:

“Na realidade, o laudo médico pericial, deve merecer uma atenção ímpar por parte dos Magistrados porque, na grande maioria das vezes vem eivados de mentiras, contradições e termos criados pelos peritos que sequer se vêem na literatura médica. Um magistrado pode ser leigo na matéria técnica, mas, jamais poderá permitir que subestimem a sua inteligência, pois tem cultura, experiência e sapiência suficientes para não permitir que determinados peritos zombem de sua ignorância na parte técnica, pelos corredores do fórum, como muitas vezes tive o desprazer de presenciar.”

Sem nos preocuparmos com o aspecto estatístico do problema (taxa de procedência de ações por erro médico sobre o total dessas ações, por evidente fuga ao escopo criminal do thema ) é um dado inerente ao problema da perícia médica o corporativismo reinante que, se detectado, é manifestação do animus necandi (o dolo) capaz de incriminar seu autor, à luz do art. 342 do CP.

Mister se faz,então, examinar os meandros da produção da prova pericial na área médica, com suas fincas no processo civil. O ínsito desembargador aposentado e advogado João Batista Lopes (LOPES, João Batista. Efetividade do processo e prova pericial. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, nº 21, dez-2004, p.93), obtempera que:

“A adoção do sistema do perito único, nomeado pelo juiz, representa inquestionável evolução, o que não significa, porém, que a prova pericial, na prática do foro, garanta a qualidade da prestação jurisdicional. Com efeito, seja pela dificuldade de se encontrarem profissionais, a um tempo, qualificados e probos , seja pelo custo de sua efetivação, seja pela freqüente morosidade em sua produção, a prova pericial tem representado, muitas vezes, fator de comprometimento da efetividade da jurisdição.”

O eminente jurista, pela prática forense que teve, também vivenciou de perto o problema da improbidade do experto como fator de prejuízo à prestação jurisdicional sem, contudo, atentar para a visão criminológica do problema. Naturalmente que esta é a atribuição precípua do juízo criminal, donde se busca agora, um julgado trazido por Alberto Silva Franco e Rui Stoco (FRANCO, Alberto Silva; STOCO,Rui. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 7ª ed. São Paulo: RT, Vol. 2, 2001, p.4163), que bem tratou do problema:

“Falsa Perícia. Caracterização. Dolo evidente. Perito que deliberadamente omitindo verdades, afirmando inverdades, elabora laudo favorecendo e inocentando os verdadeiros culpados – Recurso provido para condenar o réu à pena de dois anos de reclusão, facultando obtenção de prisão albergue, em primeira instância. (TJSP. Apel. Crim. – Rel. Adalberto Spagnuolo – RJTJSP 46/342-344)” 
Em seguida, esses juristas (Ibidem) destacam uma parte do acórdão:

“O perito que, em seu laudo, distorce a verdade, com o objetivo preciso de favorecer alguém a influir sobre a decisão judicial, pratica o crime de falsa perícia, pois para a consumação do delito basta que seja falseado o medium cruenda veritatis, surgindo daí o perigo da injustiça da decisão (Hungria, Comentários, IX/78).”

Em outra magistral obra sobre o tema do erro médico Miguel Kfouri[28] chega a recomendar o seguinte aos julgadores, para compensar a tendenciosidade natural dos laudos perícias da área médica: “Em síntese, deverá – conforme caso – sobrepor-se aos laudos periciais, escoimando-os do ranço classista e decidir, até, contra eles”.

Também a nobre Profª. Drª. Elida Séguin (SÉGUIN, Elida. Biodireito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.162), entoa o coro dos arautos a opor-se ao disseminado corporativismo, obtemperando que:

“Nosso objetivo não foi esgotar, neste capítulo, o tema iatrogenia, que sozinho merece um tratado, apenas conclamar e meditar sobre o silêncio de médicos que acobertam os erros e omissões de colegas, em nome de um corporativismo absurdo.”
Complementa, então, a douta jurista (Op.cit., p.166), embasada em sólida experiência profissional:

“A perícia é essencial na solução de litígios envolvendo o Biodireito, sendo lendária a assertiva de que os peritos médicos, por corporativismo, tendem a minimizar a responsabilidade da atuação do colega, procurando sempre enfatizar os riscos inerentes a qualquer procedimento médico e que se trata de uma relação voltada para que se empregue os melhores esforços e não a obrigação de um resultado de sucesso, fugindo ao enfrentamento do problema sob a desculpa de que não seria ético atacar o colega.”   
Leia o texto na íntegra


Eduardo de Souza Coelho - Advogado, Pós-Graduado em Direito e Processo Penal - Rio de Janeiro - RJ
texto retirado do trabalho " Da Falsidade na Perícia Médica e o Crime do Art. 342 do Código Penal"
                               

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