A confeiteira Raquel da Silva Afonso, de 40 anos, foi vítima de violência obstétrica em suas três gestações. A última, ficou entre a vida e a morte após um erro médico no parto, que resultou na morte de sua filha, Melissa, e a perda do útero
Raquel da Silva Afonso perdeu a filha, Melissa, e a chance de engravidar novamente (Foto: Arquivo Pessoal)
"Conheci meu primeiro namoradinho aos 16 anos e logo engravidei. Fui tratada como uma adolescente inconsequente na época e minha mãe era quem respondia por tudo relacionado à minha gestação Ela sabia tudo sobre meu bebê e o pré-natal. Durante a gravidez fui atendida de forma violenta por dois profissionais diferentes. Um médico fez um exame de toque tão bruto, sem a mínima sensibilidade, que doeu muito e fiquei dolorida por vários dias. Nunca esqueci dessa experiência.
Meu primeiro filho, Marcelo Afonso, nasceu em agosto de 1999 em um hospital particular em Indaiatuba. Era para ter sido cesárea, mas a médica estourou a minha bolsa, contra minha vontade. Escutei dela e de sua equipe que eu devia sentir dor para aprender.
Não autorizaram que gravássemos a cirurgia, nem pude ter acompanhamento de ninguém. Lembro de estar com muita dor e o anestesista gritar para eu ficar quieta. De forma muito rude, fui amarrada. Passar por uma cirurgia e ali sozinha foi bem difícil.
Aprender a ser mãe também não foi fácil, apesar de ter todo o suporte da minha mãe e da minha avó. Quando tinha consulta médica era minha mãe que entrava com meu filho. Era assustador não saber o que fazer com um bebê tão pequeno. O pai no Marcelo, também um adolescente de 16 anos, nunca me ajudou nem pagou pensão.
Em 2002 fui morar com meu filho na casa da minha avó paterna em Descalvado, no interior de São Paulo, e pude terminar meus estudos, fazer cursos de doces e tirar minha carteira de motorista. Em 2006 voltei para Indaiatuba.
Conheci meu atual marido no carnaval de 2009 e em junho já descobri que estava grávida. Tudo aconteceu muito rápido. No começo, foi difícil aceitar a gravidez. Tinha muitos traumas da minha primeira gestação, só pensava na dor que iria passar novamente. Um misto de sentimentos. Meu filho já estava com quase dez anos, ter outro bebê foi um baita choque. Mas aos poucos fui ficando mais tranquila.
Minha segunda gravidez foi bem diferente. Tive atendimentos pelo SUS e, dessa vez, ia sozinha às consultas. Me sentia como se fosse a primeira vez novamente. Com quase seis meses de gestação, nos mudamos para Florianópolis. Dessa vez, eu estava realmente preparada, acompanhando tudo.
Em fevereiro de 2010 minha bolsa estourou de madrugada e fomos para o hospital. A enfermeira disse que eu tinha apenas um centímetro de dilatação e que o bebê só nasceria à noite. Me apavorei. Gritava de dor e ela perguntava ‘quer chupar um pirulito’?, entre outras falas totalmente sem nexo. Fiz muita força para meu menino nascer, estava com muitas contrações, uma dor enlouquecedora.
Me levaram para a sala de parto, onde senti uma queimação forte, como um corte na minha vagina. Não entendi na hora, era a episiotomia. Ninguém me falou nada, foi tudo a seco. Uma médica bem grossa e estúpida entrou na sala, parou do meu lado e disse que iria me ajudar. Ela subiu na minha barriga para empurrá-la. Fiz muita força e meu filho nasceu, rápido e saudável. Mas a Manobra de Kristeller me deixou com muitas dores e novos traumas. Tudo foi na correria, sem me explicar nada, sem paciência. Na hora da dor, vulnerável, nem reação consegui ter. Só queria que meu filho, Arthur, nascesse bem.
Meus dois partos foram traumatizantes. Não esperava ter outros filhos e passar por tudo aquilo novamente. Por isso, sempre nos cuidamos muito, meu marido e eu. Cheguei a tomar anticoncepcional, mas como me sentia mal, a prevenção que optamos sempre foi a camisinha.
Meu sonho sempre foi ter uma menina. Via as minhas amigas com suas filhas e me imaginava com a minha menina, loirinha e a minha cara. Meu marido também dizia que queria ser pai de uma menina. Mas confesso que meu medo era maior do que a coragem de planejar outra gestação. Com o dia a dia, fui deixando a vida seguir e passei a não pensar mais nisso.
Em 2019, meu primogênito, Marcelo, já estava com 20 anos e o caçula, Arthur, com nove. Até que um dia a camisinha estourou. Soube ali que eu tinha engravidado. Eu senti. Chorei muito de medo, desespero, briguei com o marido. Não queria acreditar, nem fazer exames, mas sentia já no meu coração que estava grávida.
No dia 2 de janeiro de 2020 o exame deu positivo. Chorei como criança, não queria aceitar. Foi mais um choque. Foram dias tentando assimilar a ideia de estar grávida novamente. Mas logo comecei a me sentir diferente. Sentia que estava esperando uma menina. E estava mesmo.
Logo descobri que ser mãe de uma menina era a maior felicidade do mundo. Me sentia completa e a mulher mais feliz do planeta. Os problemas acabaram ficando sem importância. Meu filho Arthur, que é muito meu companheiro, já imaginava o rostinho dela, me ajudava a arrumar o enxoval da irmã. Sentia no meu coração que seu nome seria Melissa.
Raquel e o marido, à espera de Melissa (Foto: Arquivo Pessoal)
Estava com a barriga linda e bem redondinha. Amava quando ela mexia. Passei os nove meses sonhando com o rostinho da minha filha, arrumando as roupinhas e separando tudo para a sua chegada. Os medos e as angústias também me acompanhavam nessa gestação, mas era tudo tão mágico e encantador: os lacinhos, vestidinhos, sapatinhos… Nossa, eu estava realizada.
No último mês de gestação, não consegui acompanhamento com o médico devido à pandemia. Na data prevista do parto, dia 19 de agosto, ela não deu sinal. Minha filha estava vindo no tempo dela.
Alguns dias depois, tinha uma consulta com o médico que fez meu pré-natal, mas resolvi ir à maternidade para verificar o coração, a posição da bebê e a dilatação. Levei quatro horas para ser atendida. Quando me atenderam já estava com três centímetros de dilatação e começando o trabalho de parto. Nesse dia, o hospital estava uma bagunça e eu realmente queria ir embora. Mas um médico disse que não, que iria me colocar em qualquer quartinho lá e eu iria ficar até o bebê nascer.
Gosto de ter o controle de tudo, mas eu estava totalmente vulnerável e já no final da gravidez, deixei me cuidarem e confiei. Estava dentro de um hospital, então acreditei que ali teria todo o cuidado, atenção e o suporte necessário.
A indução seria feita através de uma sonda, por eu já ter uma cesárea, seria menos arriscado. Mas a sonda não fixou e o médico nem tentou muitas vezes. Estava já muito incomodada. O médico nem olhou o meu prontuário, nem os meus documentos, meus exames, nada. Apenas me fez algumas perguntas. Eu ainda o questionei várias vezes sobre o que iriam fazer, mas ele parecia estar brincando o tempo todo, e toda hora entrava alguém na sala e nos interrompia. Não quiseram nem fazer o ultrassom para ver a posição da minha bebê.
O médico ainda me fez assinar um monte de papéis, que pensei serem referentes à minha internação. Me encaminharam para o leito e não deixaram meu marido entrar. Eu estava sozinha e cheia de medo.
Às 18 horas, começaram a indução e as contrações ficaram muito rápidas. Às 21h, fui encaminhada para a sala de parto. Quanto deitei na maca, senti a bolsa estourar. Senti também um estouro forte na minha barriga do lado esquerdo. Gritei, pois mais parecia um chute forte ou uma bola estourando. A dor era insuportável é imensurável. A enfermeira, muito grossa, entrou na sala e disse que isso era normal e que se eu não colaborasse, iria sofrer mais. Mas eu sentia que algo de estranho acontecia.
Fiquei em trabalho de parto uma hora e meia, depois pararam as contrações e eu só sentia uma dor intensa no corpo, uma queimação. Não conseguia ficar com os olhos abertos. Sentia dentro de mim, literalmente, que algo estava errado. Eu dizia que minha filha precisava sair, nascer logo e respirar. Tive três atendimentos só na sala de parto e já não escutava mais o coração da minha bebê.
Melissa nasceu no dia 27 de agosto de 2020, às 00h25. Ela já nasceu sem vida. Tiveram muita dificuldade para tirar ela de dentro de mim. Não escutei seu choro. Um silêncio absoluto tomou conta da sala de parto. E um vazio profundo se instalou em mim e na minha alma naquela hora. Chamaram meu marido e quando ele voltou, me disse que nossa filha não tinha resistido. E, exatamente nessa hora, o anestesista me apagou e não vi nem ouvi mais nada.
Soube depois que estava com uma hemorragia interna gravíssima e os médicos precisavam correr para salvar minha vida. Tive uma ruptura uterina, aquela dor intensa e o estouro que senti, na verdade, era o meu útero se rompendo por causa da alta dose de ocitocina aumentada de 30 em 30 minutos com uma dose altíssima. Com isso, minha filha sufocou e não resistiu. A causa da morte dela atestada foi anoxia intrauterina. Não fizeram autópsia nela.
Meu marido viu as enfermeiras limpar, pesar, medir e colocar a roupinha na Melissa. Ele ainda pôde ficar com ela no colo e se despediu, enquanto eu estava entre a vida e a morte. Tive que fazer uma histerectomia, tiraram meu útero. Perdi muito sangue e acho que só sobrevivi por um milagre mesmo.
Quando acordei, não acreditei que tudo aquilo fosse verdade. Não aceitei a morte da minha vida filha. A médica foi até o meu leito e só me perguntou se eu estava sentindo dor. Depois me disse que eu tive uma complicação séria, que tiraram meu útero e a criança não tinha sobrevivido. Ali, minha Melissa já não tinha mais nome. Trouxeram um papel amarelo para meu marido dizendo que ele teria que sair para providenciar o enterro da filha. Não o deixei sair, porque estava com medo e em choque.
Não consegui conhecer a minha filha. Sair da maternidade sem ela nos braços foi como se eu estivesse morta por dentro. Nada mais fazia sentido. Ver que a vida continuava a mesma lá fora e eu estava sem minha filha. Ir para a nossa casa somente com as bolsas foi dilacerante! Fui chorando o caminho todo sem ela na minha barriga, nem nos meus braços. Chegar em casa foi difícil, meu filho desceu as escadas correndo perguntando ‘cadê ela?' Isso me destruiu.
Ver o berço vazio, todo o enxoval dela que estavam a esperando. Até hoje ainda não consigo acreditar em tudo que nos aconteceu. Eu só sentia que precisava fazer alguma coisa. Então, 15 dias depois, fui até a delegacia da minha cidade e a policial que me atendeu falou que se tratava de homicídio. Minhas pernas amoleceram na hora, porque eu sabia que poderia ser isso. Eu precisava de ajuda.
Desde então, luto por justiça pela minha filha. Nunca vou aceitar o fato dela nascer morta. Não tenho nenhum registro, nenhum papel sobre ela. Me pareceu que o hospital quis resolver tudo logo e apagar todos os vestígios. Eles tiraram tudo de mim.
Fiz uma petição online e criei a hasteg #JustiçaParaMelissa, com meu relato nas redes sociais. E sigo aguardando por justiça, tentando expor para informar e alertar outras mães para não passarem pelo mesmo que passei. E também para as que sofreram violência obstétrica denunciarem. Não se calarem. Violência obstétrica é crime. Mata, traumatiza e destrói vidas.
Meu filho Arthur não fala sobre. Passou a não gostar mais de crianças. Afetou a todos aqui em casa. As roupinhas dela ainda estão lá. É estranho acordar e não tê-la conosco. Voltar à vida é muito difícil. Sei que vou seguir, estou em pé pelos meus outros dois filhos para honrar a existência e a memória da minha filha. Vou lutar por justiça e por punição até o fim. Vou continuar postando sobre ela, sobre o meu amor e a minha dor de mãe. Venho, desde então, auxiliando outras mulheres que chegam até mim com suas dores também. Existem grupos de apoio aos pais enlutados. É muito importante essa rede de apoio e acolhimento. Sobreviver ao luto é uma luta diária. E eu sigo sobrevivendo."
Raquel da Silva Afonso agora busca justiça e ajudar outras mulheres levando informação sobre violência obstétrica (Foto: Arquivo Pessoal)
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