quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Erro médico e responsabilidade penal

 





O médico ao exercer o seu ofício está, como em toda profissão formal, submetido a um conjunto de normas que elucidam quais são os princípios basilares da sua atividade, bem como os direitos e deveres do profissional. O Código de Ética Médica, por exemplo,

contém as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive nas atividades relativas a ensino, pesquisa e administração de serviços de saúde, bem como em quaisquer outras que utilizem o conhecimento advindo do estudo da medicina. (item I do Preâmbulo do CEM).

No capítulo III do aludido Diploma estão previstas as condutas que são vedadas ao médico e, caso o profissional incorra na prática de qualquer uma das hipóteses proibidas, poderá será responsabilizado pelo Conselho Regional de Medicina.

No entanto, além de eventuais responsabilidades perante o seu órgão fiscalizador, o médico pode ainda, a depender do caso, ser responsabilizado na esfera judicial, tanto civil como penalmente. A responsabilidade no âmbito civil seria em casos de danos materiais e morais; já no âmbito do Direito Penal o médico poderá ser responsabilizado quando a sua conduta se enquadrar no conceito de algum crime.

Destaca-se o fato de todas elas serem esferas autônomas e independentes entre si, ou seja: o médico pode ser responsabilizado administrativamente e ser isento de culpa na esfera civil; da mesma forma que pode ser condenado penalmente e ser absolvido na sindicância instaurada pelo Conselho Regional de Medicina.

Há no Código Penal modalidades de crimes que só podem ser praticados por médicos, por exemplo: o crime de falsidade de atestado médico, bem como o crime de omissão de notificação de doença. Noutro giro, o denominado “erro médico” ocorre quando o profissional, de forma dolosa ou culposa, pratica os crimes de lesão corporal ou até mesmo o crime de homicídio (que são delitos comuns).

O dolo, a título explicativo, é quando o agente busca o resultado ilícito ou assume o risco de produzi-lo: seria no caso do médico, com a intenção de lesar o paciente, atingir órgão vital deliberadamente durante um procedimento cirúrgico; já a culpa é quando o agente produz o resultado ilícito de forma involuntária, que é o mais habitual no dia a dia dos hospitais.

Esta, conforme o Professor Guilherme de Souza Nucci ensina, pode ser dividida em três espécies:

imprudência caracteriza-se pela ação do agente, sem cautela; a negligência implica omissão do agente, sem observar as regras de atenção; a imperícia é a incapacidade ou a falta de conhecimento indispensável para o exercício de determinada arte, ofício ou profissão. (NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal: Partes Geral e Especial. 5ª ed. Editora Método, 2018. pág. 117).

Conforme mencionado anteriormente, as esferas administrativa, civil e penal são independentes e podem resultar em decisões contrárias entre si. Assim, ainda que em eventual sindicância o médico seja absolvido pelo Conselho, é preciso muita atenção no âmbito criminal, pois nesta esfera quem irá instaurar o inquérito policial e fazer a colheita de provas é o Delegado de Polícia; quem irá, se o caso, oferecer a denúncia é o Promotor de Justiça; e, ao final, quem decidirá se o médico deve ser responsabilizado é o Juiz de Direito.

Fato é que as autoridades mencionadas acima nem sempre possuem informações técnicas para averiguar corretamente a conduta do médico, sendo de suma importância, portanto, que a defesa apresente provas claras e robustas de que forma os fatos ocorreram: arrolando testemunhas, juntando provas documentais e, sobretudo, indicando um assistente técnico para a elaboração de um parecer.

Em uma cirurgia, o resultado morte, ou uma lesão corporal causada no paciente, muitas vezes fogem do controle do médico; simplesmente ocorrem por conta de uma comorbidade ou até mesmo em decorrência do quadro grave que o paciente se encontra. Por isso, a fim de se resguardar, é imprescindível que o médico relate tudo no prontuário: remédios ministrados, procedimentos realizados, junte descrições cirúrgicas, entre outros; só assim ele poderá comprovar, em eventual processo criminal, como os fatos ocorreram e de que forma ele (profissional) se comportou diante daquela situação.

Na teoria é válida a premissa de que na dúvida o réu deve ser absolvido, mas na prática forense nem sempre é assim, razão pela qual é importante possuir um “dossiê” do paciente, bem como dos procedimentos realizados, amenizando, dessa forma, a possibilidade do médico ser responsabilizado criminalmente com base em provas frágeis e imprecisas.

Além de outros elementos, para a configuração do crime de homicídio ou lesão corporal atribuído ao médico, deve restar demonstrado (i) a conduta perpetrada pelo agente; (ii) o resultado causado; e (iii) o nexo causal que há entre a conduta e o resultado.

Por exemplo: o paciente após passar por um procedimento cirúrgico faleceu devido a uma infecção generalizada ou em razão de uma complicação correlata. Nesse caso, temos a conduta do médico, que foi realizar a cirurgia; e tem-se o resultado morte.

Há um liame direto que liga a conduta do médico à morte do paciente? Se sim, ele pode eventualmente ser responsabilizado no âmbito criminal. Se não, ele não deve ser responsabilizado. Com base em que isso será demonstrado? Com base nas provas documentais, testemunhais e, sobremaneira, pericial – é justamente nesse ponto que se encontra o porquê o prontuário preenchido de forma minuciosa é tão importante para resguardar o profissional.

Com a intenção de aclarar a matéria trazida, colaciona-se abaixo uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que manteve a absolvição do médico, pois não restou demonstrado a causalidade entre o atendimento prestado e o resultado morte:

É cediço, que a questão posta em julgamento revela-se deveras delicada, porquanto a imputação de responsabilidade penal, nos casos de prática médica, exige prova inabalável acerca da existência da culpa stricto sensu do profissional da medicina. Em casos dessa natureza, para que o médico responda por homicídio culposo, além da comprovação da materialidade e da autoria do delito, é preciso que ele tenha praticado uma conduta (ação ou omissão) violando o seu dever de cuidado e que dessa violação tenha advindo à morte da vítima, ou seja, deve estar efetivamente demonstrado o nexo de causalidade entre o atendimento prestado pelo agente e o resultado fatal, não se admitindo presunções, por mais profundo que seja o pesar e a indignação que a morte possa causar. (APL n.º 0002660-05.2015.8.26.0369, TJSP, Rel. Des. Paulo Rossi, DJe 23/01/2018).

A nobre função exercida pelo médico, portando, possui uma bagagem significativa de responsabilidade, pois em situações de equívocos está sujeita à penalização de diversas áreas. Razão pela qual o profissional deve se precaver documentando todo procedimento realizado.


Canal Ciências Criminais

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