quarta-feira, 14 de março de 2018

Governo quer congelar formação de novos médicos por cinco anos

Além disso, profissionais formados no exterior encontram dificuldades para validar o diploma


Com dores e suspeita de câncer, Nair dos Santos tenta, desde o início de fevereiro, ser atendida e avaliada em um hospital de Brasília(foto: Graciliano Candido/Divulgação)
Enquanto milhares de pacientes sofrem com a falta de atendimento médico nas unidades de saúde, principalmente nas cidades do interior do país, o Ministério da Educação (MEC) prepara o congelamento, por cinco anos, da abertura de cursos de medicina. A medida está pronta e deve ser publicada, em forma de decreto, pelo presidente Michel Temer nas próximas semanas. Ao mesmo tempo, médicos brasileiros que estudaram no exterior relatam dificuldades para revalidar o diploma — requisito para atuar no Brasil. Em um único processo, 200 médicos pedem na Justiça que sejam realizadas mudanças na prova do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida). O acesso restrito na rede pública e o valor elevado da mensalidade na rede particular levam brasileiros a procurar opções em outros países.

Atualmente, de acordo com dados do MEC, o Brasil tem 460 mil médicos, 1 para cada 434 habitantes. O número está dentro da quantidade de profissionais recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1 médico para cada mil. E, com base nesses índices, o ministério analisa a suspensão da abertura de graduações. O conselheiro Lúcio Flávio Gonzaga, do Conselho Federal de Medicina, destaca que o congelamento de novos cursos é uma das reivindicações da entidade para garantir a qualidade dos cursos. “Essa moratória que o governo pretende fazer, de cinco anos, atende a uma luta do conselho e das entidades médicas. Não faltam médicos no Brasil. O que ocorre é a má distribuição dos profissionais no país. A falta de investimento nas regiões do interior afasta candidatos”, afirma.

A aposentada Nair Nogueira dos Santos, 57 anos, já viveu os transtornos da falta de médicos nos hospitais. Com suspeita de câncer, ela procurou, no início de fevereiro, atendimento em um hospital público do Jardim Ingá, no Entorno do Distrito Federal. Durante semanas, ela tentou acesso a um médico, mas não conseguiu e, quando teve, a unidade de saúde não estava preparada para o tipo de atendimento. Encaminhada ao Instituto Hospital de Base, outra frustração. Nair precisou de dias para ser atendida por um oncologista. “Estou muito doente e nem consigo chegar até o hospital. Estou sentindo várias dores e não consigo atendimento para saber qual é o meu real problema. Só queria saber qual a doença que tenho para ficar melhor e voltar para a minha casa”, desabafa Nair.

Questionada sobre a situação de Nair, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informa que a paciente passou por avaliação dos profissionais da unidade. “O Instituto Hospital de Base informa que a paciente foi atendida na unidade de Proctologia, avaliada pelos médicos da unidade que solicitaram exames de imagem, retorno para biópsia e ofereceram orientação dietética. Não foi solicitada internação da paciente”, diz a nota. Criado em 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) está entre os maiores programas de atendimento público de saúde do mundo, com o desafio de atender cerca de 160 milhões de brasileiros. Pesquisa feita pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) revela que 69,7% dos brasileiros não têm plano de saúde privado e dependem do serviço público de saúde.

Prejuízos

A Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) afirma que a decisão do governo pode causar prejuízo à sociedade. O diretor executivo da entidade, Sólon Caldas, rebate as alegações de que a suspensão de novos cursos de medicina ocorre para garantir a qualidade das graduações. “Quantidade em nada tem a ver com qualidade. Existe um processo rigoroso para avaliar os cursos de medicina. O próprio MEC fiscaliza e pode punir quem não fizer os investimentos necessários. Não se pode privar a sociedade de um direito humano, que é a saúde”, afirma.

De acordo com dados do Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil tem, atualmente, 298 escolas de medicina, que possuem 28 mil vagas. O grande entrave na reposição de médicos é a quantidade de tempo que se leva para terminar o curso. Um estudante de medicina precisa de oito anos a mais de uma década para chegar ao mercado de trabalho, a partir do ingresso na faculdade. A professora Carla Pintas Marques, doutoranda em saúde coletiva pela Universidade de Brasília, afirma que mudanças nas regras dos cursos de medicina poderiam amenizar o problema. “O estudante de medicina deveria ingressar na universidade pública com a condição de que atuasse por dois anos em uma unidade de saúde do SUS após formado. Esse poderia ser o tempo de residência, em que ele auxiliaria na atividades dos hospitais, mediante remuneração, é claro”, afirma.

Revalida

Para atuar no Brasil, os médicos que se formam no exterior precisam fazer o Revalida, mesmo que sejam brasileiros. Na última edição do certame, em setembro do ano passado, 8 mil profissionais de saúde realizaram as provas. A maioria se graduou em países como Bolívia, Cuba e Estados Unidos. O alto valor da mensalidade nas universidades privadas no Brasil, que variam de R$ 3,6 mil a R$ 15,2 mil, e o acesso restrito às instituições públicas, leva muitos estudantes a deixarem o país. A atratividade é o salário depois de formado, que varia entre R$ 5,2 mil e R$ 30 mil. No entanto, pelo menos 200 médicos que fizeram o Revalida na última edição reclamam de problemas na prova — 10% das questões foram anuladas após recursos.

Os candidatos ingressaram com uma ação coletiva na Justiça alegando que o conteúdo estaria defasado, ausência de bibliografia adequada e supostos erros nas questões. Diego Brito, 26, é um deles. O clínico geral formado na Bolívia, que atua em um hospital público de Planaltina de Goiás, não passou no Revalida e só atua por causa do programa Mais Médicos. “Na Bolívia, tem mais acesso à universidade. A formação é praticamente a mesma. Quando cheguei aqui, só nos postos de saúde, faltavam 12 médicos. Esse problema é comum, e tem profissionais querendo trabalhar e não conseguem por conta de uma prova mal elaborada”, afirma.

O MEC informa que o Brasil é referência na formação de médicos e que a suspensão de novos cursos ocorre para preservar essa característica. “A medida visa a sustentabilidade da política de formação médica, preservando a qualidade do ensino. A medida não afetará os editais de abertura de cursos em andamento, assim como instituições credenciadas e cursos autorizados. A atual gestão, quando assumiu, em maio de 2016, retomou e deu agilidade aos processos que estavam morosos e até parados.”



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