"A minha filha nasceu e eu só vim tocar na sua mão quando ela tinha três meses. Eu chorava muito porque queria segurá-la no colo e não deixavam" (Foto: Julia Rodrigues/ÉPOCA) |
“Meu pré-natal foi feito próximo à minha casa, na UBS Jardim Eliana. Eu estava com 38 semanas quando fui à Maternidade Interlagos, no dia 2 de dezembro de 2014. Eles me examinaram e falaram que seria uma cesárea. A minha bebê estava sentada. ‘Faremos o parto em três dias’, disseram. Esperei até o dia 7 de dezembro. Antes de eu subir para a sala de pré-parto, tiraram o ultrassom. A Vitória continuava sentada e a médica disse que logo voltaria do almoço para fazer a cesárea. Me deixaram na sala e as dores foram aumentando. Horas se passaram e começaram a dizer que eu tinha de fazer um parto normal, e eu pedia pelo amor de Deus que não.
Por fim, a médica que ia fazer a cesárea não apareceu. A bebê começou a vir. Enfiaram a mão lá dentro e a puxaram pelas nádegas. Tinha umas dez pessoas naquela sala, todos estavam perdidos. Eu só conseguia chorar, porque sabia que tudo estava errado. Sentia forçarem a minha barriga. Quando puxaram a minha filha, ela nasceu semimorta por dez minutos e não chorou. Os médicos na sala disseram que era normal. Não era.
Quando o pediatra apareceu na sala, ele me disse que tinha feito o possível para reanimá-la. ‘O estado dela é muito grave’, disse. O meu marido, Leonardo, e a minha filha, Thais, estavam lá embaixo brigando para subir. A gente tem direito de um acompanhante na hora do parto, só que não deixaram nenhum subir. A cabecinha da minha filha ficou amassada, ela teve lesão no cérebro. A Vitória vive no oxigênio 24h, tem convulsões e se alimenta por sonda. Ela nunca vai falar, porque fez uma cirurgia de desconexão de garganta e traqueostomia.
Quando a minha filha mais velha conseguiu subir, já chegou desesperada. Os médicos começaram a justificar, dizendo que não tinham culpa, que não havia uma sala para fazer a cesárea. Abri um processo contra o hospital. Descobri, por meio do meu advogado, que a minha cirurgia não foi feita porque a diretora do hospital não autorizou. Não tive suporte nenhum. Deram alta para a minha filha quando ela completou dez meses de internação, saí de lá com duas latas de leite e alguns pacotes de fralda. Foi só isso que fizeram, mais nada.
O hospital diz que não teve erro médico. Eu vivia chorando pelos cantos, exigindo uma explicação. Só depois de quatro meses a direção me procurou. Tentaram me convencer de que foi tudo normal. Ninguém me deu explicação declarada nenhuma. A Vitória teve a clavícula fraturada e só descobri quando ela pegou alta, porque depois de uma semana em casa ela já passou mal de novo. Quando a levei no Hospital Grajáu, tiraram um raio-x e descobrimos a fratura do lado esquerdo. Ninguém tinha me falado a verdade naquela maternidade. Eu já tinha visto o bracinho roxo, mas me diziam que era porque “tinham pegado um acesso”.
A minha filha nasceu e eu só vim tocar na sua mão quando ela tinha três meses. Eu chorava muito porque queria segurá-la no colo e não deixavam. O primeiro beijinho que dei nela foi porque enfiei a mão dentro da encubadora, arrastei um pouquinho para baixo e coloquei o pezinho no buraco. Era essa a forma que eu tinha de dar carinho para a Vitória. Muitas vezes eles me pegaram fazendo isso e levei bronca, saía chorando dali. Pegaram uma implicância muito grande comigo. Um dia, a diretora do hospital me repreendeu e eu disse que se estivesse errada, ela poderia chamar a polícia.
Eu me dedico exclusivamente à Vitória, que toma quase quatorze tipos de medicamento. É uma internação atrás da outra. O leite dela é muito caro e já chegou a faltar. Ela já perdeu 1,5kg por isso, nós também já chegamos a ficar sem comer. Consegui o benefício LOAS [Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social] pela Defensoria Pública, de R$ 930 por mês. Mas só consegui porque pedi um laudo completo em outro hospital – a Maternidade Interlagos não me deu um encaminhamento correto. Eu e o pai dela estamos desempregados, porque temos de cuidar dela. Não dá pra suprir tudo com esse dinheiro, sempre falta.
A minha vida é presa com ela dentro do hospital ou dentro de casa. No total, ela não ficou em casa três meses. Ela pega alta, vai e volta da UTI. A Vitória é uma criança presa, não sabe o que é tomar um solzinho. Como eu vou sair com um oxigênio enorme para ela tomar sol? O oxigênio de transporte dura pouco e é emergencial, para levá-la ao médico.
Naquele hospital eu vi muita coisa errada. O que eu tenho para mim é que aquele lugar não é uma maternidade, é um matadouro. Conheci outras mães na mesma situação que eu. Muitas vezes eu chegava lá e a Vitória estava cheia de saliva, toda roxa. Eu chamava a enfermeira para aspirar e ela dizia: “Aqui não tem só a sua filha, tem várias crianças”. Encontrava a minha filha de cocô, de xixi. Eu descia na ouvidoria, arrumava confusão. Cheguei a dizer que se não me ensinassem a aspirar, chamaria a polícia. Quando aprendi, passei a ajudar a cuidar dela. Ajudava a colocar leite na sonda, dar a medicação.
Quando a Vitória teve de fazer a cirurgia para colocar a sonda na barriga, cheguei a dormir nos bancos da maternidade esperando dar o horário marcado, às 4h da manhã, para não perder a vaga para fazer o procedimento em outro hospital. A ambulância atrasou, chegou somente às 9h. Atravessamos São Paulo. Quando chegamos lá, o cirurgião olhou para ela e falou: "Sua filha está muito ruim. Se fizer a cirurgia, pode vir a óbito". Nem tiraram ela da ambulância. Perdemos mais duas horas de viagem para voltar. Por que não viram isso antes? Fizeram a Vitória ir até lá para sofrer e depois voltar! Nesse dia, saí de lá tão revoltada que fui direto para a delegacia.
Desde a época que a Vitória nasceu, até hoje não fiz um papanicolau. Cheguei a entrar em depressão, fiquei muito mal. Era muita briga ali dentro, eles não entendiam a minha dor, ninguém se colocava no meu lugar por cinco minutos. Desabafei muito com a assistente social e começaram a dar o braço a torcer. Quando eu chegava lá era sempre cara feia, patada. Eu cheguei a dizer que qualquer hora daria um fim na minha vida, porque além de passar por tudo isso me tratavam muito mal. No começo levei nome, levei xingão. Até o café que eu tomava a mais achavam ruim. Foi muita humilhação. Meu marido não podia almoçar: só um podia comer. Eu pegava a mistura, colocava dentro de um pãozinho, escondia na bolsa e levava para ele comer lá fora.
Quando ela fez dois aninhos, comprei um bolinho. Coloquei ela no balcãozinho com o oxigênio do lado, a gente cantou parabéns. Foi a primeira e a última vez. A gente faz um aniversário, a felicidade da mãe ver é a criança comendo e se lambuzando com o bolo. Meu sonho era ver minha filha comer uma sopinha, experimentar um iogurte. Andar. Ela é uma criança ativa, mexe mão e perna. O que eu mais queria era um tratamento para ela. Se eu pudesse vender tudo e ir morar de aluguel ou num barraco de madeira para fazer um tratamento… Eu faria. Só que a gente é pobre, é humilde. A gente não tem como fazer.”
*Vitória, filha de Silvane, morreu durante a produção desta reportagem, aos 2 anos de idade, em 1º de junho, por uma infecção. Uma decisão judicial havia determinado que o Estado fornecesse a ela atendimento domiciliar Home Care. A criança não chegou a usufruir do cuidado. Silvane, agora, quer encontrar uma forma de ajudar mães que passam pelo mesmo problema, e pretende criar uma ONG. O projeto deu início à doação de antigos pertences, remédios e outros aportes de Vitória.
O outro lado
Em nota, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo encaminhou um posicionamento do Hospital Maternidade Interlagos, no município de São Paulo, onde ocorreu o episódio, sobre o caso de Silvane: "O caso passou por apuração preliminar com constatação de que havia sim disponibilidade de sala para a realização do parto. Doi encaminhado à Comissão de Ética Médica que analisou direcionou ao Conselho Regional de Medicina para providências. Os três profissionais envolvidos na queixa não atuam mais na unidade. A bebê recebeu toda a assistência, durante os nove meses de internação. A alta hospitalar foi feita com suporte de equipe multidisciplinar para a família e encaminhamento do caso para a atenção básica, responsável por encaminhar pacientes para assistência especializada."
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