O médico Gregory Snyder, do Hospital Brigham and Women's, de Boston |
Quando éramos crianças, minha irmã nunca deixava nossos pais exibirem a placa azul de "pessoa com deficiência" no carro.
Nascida prematura (seis meses), com paralisia cerebral, ela usa muletas nos antebraços para se locomover. No shopping center, contudo, prefere atravessar meio quilômetro no estacionamento a usar as vagas perto da entrada, reservadas para deficientes. Isso me irrita especialmente na época das festas de fim de ano, quando um local disponível para o carro é mais precioso do que os presentes que serão comprados nas lojas.
Mas a perspectiva de menos estigma e mais apoio para pessoas com deficiências físicas foi uma das razões principais pelas quais minha família migrou para os Estados Unidos. Minha irmã nasceu no mesmo ano em que foi aprovada a Lei dos Americanos com Deficiências [ADA, ou Americans with Disabilities Act, de 1990], que reafirmou o compromisso moral e prático do país com a igualdade.
Mais de 20% dos americanos, ou quase 57 milhões de pessoas, têm algum tipo de deficiência. Entre elas estão 8% das crianças do país e 10% dos adultos não idosos. Embora a categoria médica se dedique a cuidar dos doentes, com frequência não faz o suficiente para atender às necessidades desse segmento.
As pessoas com deficiências têm probabilidade menor de receber atendimento de rotina, incluindo exames preventivos para detectar câncer, vacinas contra gripe e exames odontológicos e oftalmológicos. Elas apresentam índices mais altos de riscos cardiovasculares que não recebem atenção médica, como obesidade, tabagismo e hipertensão.
Comparados com adultos não deficientes que usam o Medicare [o programa federal de saúde dos EUA], os deficientes que usam o Medicare têm probabilidade duas vezes maior de deixar de buscar assistência devido ao custo e três vezes mais dificuldade em encontrar um médico que possa atender às suas necessidades especiais.
médico Gregory Snyder, do Hospital Brigham and Women's, de Boston |
A reação mais comum a esse tipo de situação é lançar um chamado para que o problema receba mais atenção nos currículos das escolas de medicina. Essa talvez seja parte da solução. Mas já assisti a módulos online e aulas presenciais pouco inspiradas em número suficiente para reconhecer sua utilidade limitada.
MÉDICOS COM DEFICIÊNCIAS
Para os médicos e estagiários em medicina, algo que teria impacto muito maior seria que mais estudantes de medicina, mais colegas e mais mentores tivessem deficiências eles próprios, sendo pessoas que entendem exatamente como um impedimento específico afeta ou não seu cotidiano.
Com frequência, a barreira que impede o atendimento médico não é a deficiência em si, mas um sistema de saúde mal equipado para lidar com ela: faltam transportes, equipamentos médicos acessíveis e métodos seguros de transferir pacientes. Esses problemas estruturais podem ser agravados por problemas culturais: estigma, dificuldades de comunicação e formação insuficiente de profissionais do setor.
Em um estudo recente, pesquisadores telefonaram para mais de 250 clínicas de especialidades médicas para marcar uma consulta para uma paciente fictícia que, disseram, ficara parcialmente paralisada após um derrame cerebral e não poderia se transferir sozinha da cadeira de rodas para a maca na qual seria examinada.
Mais de 20% dos consultórios se negaram a marcar uma consulta, dizendo que não tinham acesso para cadeiras de rodas, não contavam com macas de exame de altura ajustável ou, ainda, que seus profissionais não estavam treinados a transferir pacientes. Muitos dos consultórios que concordaram em marcar a consulta admitiram que não tinham os equipamentos necessários para mudar a paciente de lugar e que talvez fossem obrigados a pular partes do exame físico.
Ainda mais preocupantes são evidências recentes de que pacientes com deficiências nem sempre recebem o mesmo tratamento por condições médicas iguais.
Um estudo comparou o tratamento de câncer de mama oferecido a pacientes com ou sem deficiências. Os pesquisadores descobriram que as mulheres com deficiências tinham chance muito menor de serem submetidas a cirurgias de conservação da mama, em vez de mastectomias completas.
Aquelas que de fato recebiam a cirurgia que preserva a mama tiveram probabilidade menor de receber radiação depois, procedimento necessário para eliminar células cancerosas residuais. Ao todo, as pacientes com deficiências físicas tinham probabilidade 30% maior de morrer de câncer.
Também são mais altas as chances de as pessoas com deficiência sentirem que seus médicos não lhes dão ouvidos, não os tratam com respeito ou não lhes dão explicações adequadas.
Os médicos com frequência fazem suposições falsas sobre pacientes com deficiências. Por exemplo, não conversam sobre contracepção com mulheres que têm dificuldade de andar nem lhes oferecem tantos exames preventivos de câncer cervical, em parte por presumirem que elas não sejam sexualmente ativas.
Quando fazem seus check-ups médicos anuais, os pacientes com deficiências têm 20% menos chances de serem aconselhados a parar de fumar.
Mais de 20% da população americana convive com alguma deficiência, mas esse é o caso de menos de 2% dos médicos que atendem pacientes –e a grande maioria deles tornou-se deficiente depois de concluir a formação acadêmica.
Poucas pessoas com deficiências são aceitas em escolas de medicina. Os estudantes de medicina com deficiências abandonam mais os estudos que os não deficientes, uma vez que nem sempre recebem o apoio de que necessitam.
Um estudo publicado no ano passado examinou os chamados "padrões técnicos" –as habilidades cognitivas e físicas esperadas– que as escolas de medicina exigem para a admissão de estudantes (as escolas têm liberdade para definir esses padrões, desde que respeitados os parâmetros estabelecidos pela legislação).
Os pesquisadores descobriram que, apesar de a maioria das escolas de medicina divulgar essas exigências em seus sites, muitas delas não facilitam a localização desses requisitos na internet e apenas um terço das escolas afirma explicitamente que oferece alojamento para pessoas com deficiências. Mais de 60% não informavam quem seria responsável pelos alojamentos, se seria o estudante ou a escola.
ATENDIMENTOS MELHORES
E, no entanto, cada vez mais os médicos com deficiências estão transformando o atendimento. Uma médica residente no Hospital de Massachusetts, C. Lee Cohen, sofre de um problema que provocou perda parcial da audição nos dois ouvidos. Ela usa um estetoscópio amplificado para escutar o coração e os pulmões dos pacientes. Na escola de medicina, usava um aparelho transmissor de FM para ouvir as aulas com mais clareza.
"Eu sou melhor em me comunicar com pacientes mais velhos que já tenham alguma perda auditiva", diz Cohen. "Devido à minha experiência própria, sei que, quando a gente não ouve bem, nosso cérebro decompõe as palavras e sílabas de certa maneira. Em vez de pedir às pessoas que repitam o que disseram, peço que repitam o que disseram em outras palavras. Quando meus pacientes têm deficiência auditiva, sei com quais sons eles têm dificuldade. Explico as coisas em outras palavras, para que eles possam compreender."
O médico Gregory Snyder, do hospital Brigham and Women's, em Boston, tem paralisia nas pernas desde que sofreu uma lesão na espinha enquanto cursava medicina. Ele usa cadeira de rodas e afirma que, quando está trabalhando, às vezes é confundido com um paciente. Mas isso não é necessariamente algo negativo.
"Isso nos lembra de que todos nós seremos pacientes em algum momento da vida", diz. "Talvez na hora em que a gente menos imagina."
A maioria de nós vai adquirir uma deficiência ao longo da vida. Mais de dois terços dos americanos com mais de 80 anos apresenta algum grau de deficiência motora, sensorial ou cognitiva.
Snyder se recorda da dificuldade em adaptar-se à vida como paciente depois de sofrer seu acidente e do longo caminho da recuperação. Mas ele afirma que sua deficiência motora e o processo de reabilitação transformaram fundamentalmente –para melhor– o modo como ele atende seus pacientes.
"Antes eu teria sido esse médico caucasiano, loiro, de olhos azuis e 1,80 metro de pé ao lado da cama usando avental branco", afirma. "Agora sou um sujeito numa cadeira de rodas, sentado bem ao lado dos meus pacientes. Eles sabem que eu já estive deitado naquele leito, como eles. Acho que isso significa alguma coisa."
Existem bons motivos para considerar que uma força de trabalho mais diversificada, que incluísse médicos com deficiências, beneficiaria pacientes e médicos. Os pacientes de origens diversas tendem a se sentir mais à vontade com médicos como eles, e a mesma coisa se aplica às pessoas com deficiências.
Ter mentores e colegas com deficiências fomenta o entendimento de capacidades e pontos de vistas distintos e cria um ambiente que contesta o viés negativo em relação a esses grupos. Minha irmã, para oferecer apenas um exemplo, se beneficiou de políticas (a ADA) e de uma comunidade que lhe permitiram desenvolver seu potencial. Ela se formou recentemente em medicina e está se especializando em radioterapia oncológica.
DHRUV KHULLAR é médico no hospital presbiteriano de Nova York e pesquisador do Departamento de Políticas Públicas e Pesquisas em Saúde da Escola de Medicina Weill Cornell.
Tradução de CLARA ALLAIN
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