sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Errar é humano, mas pode ser fatal: o erro médico e o caminho para a denúncia

Dona Isabel, vítima de erro médico. Atualmente não tem o movimento das pernas e foi acometida por outros problemas decorrentes do erro (Foto: Maryrluce Cerqueira)
Conheça quais são os meios para denunciar e buscar a reparação em casos de erros médicos.


Ninguém está imune. Quando se necessita de cuidados médicos de qualquer natureza, principalmente quando a indicação é de um procedimento mais invasivo, todo paciente se torna uma potencial vítima de erro. Seja por negligência, imprudência ou imperícia médica (o que explicaremos mais à frente), você pode vir a ser vítima do erro ou, pode ter alguém muito próximo a correr esse risco. Casos de erro médico são, no geral, exceções, porém não deixam de ser da ordem do possível. Mas, na pior das hipóteses, suponha que isso aconteça com você. Saberia o que fazer?

Se essa pergunta tivesse sido feita aos filhos de dona Isabel Barreto após o procedimento médico que marcaria, da pior forma, a história de toda a família, eles responderiam que a única coisa que buscavam era a saúde da sua mãe. Em 14 de outubro de 2008, dona Isabel Barreto chegou, na condução do seu carro, a um hospital de Salvador, onde daria entrada para a realização de uma angioplastia, intervenção cirúrgica, pouco invasiva e simples, destinada à obstrução de artéria por conta do acúmulo de placas de gordura. Seus filhos a esperavam no local para acompanha-la no pós-operatório. A idosa, que na época tinha 70 anos, mantinha uma vida completamente ativa e jamais imaginaria que toda sua rotina seria modificada abruptamente em questão de horas.

O procedimento que, em média, dura uma hora, demorou muito mais tempo para terminar. A família via a movimentação nas proximidades da sala, o entra e sai de diversos médicos, mas nada era comunicado. Às 18h, quando não era mais possível que nenhum paciente entrasse ou saísse de umas daquelas salas de cirurgia, uma das filhas se desespera e ameaça quebrar todo hospital caso não tivesse notícia da mãe. Eis que o médico responsável aparece e diz que o estado de dona Isabel era muito grave, pedindo para que se mantivessem a calma.

O que havia acontecido? Durante o procedimento, o médico perfurou a veia aorta, a maior e mais importante artéria do sistema circulatório do corpo humano. Foi comunicado aos familiares que dona Regina tinha apenas 3% de chance de sobrevivência e que ela havia perdido o movimento das pernas. Porém, o erro nunca foi admitido pelo médico, tendo a família feito a descoberta do que realmente ocasionou o mal por meio de indagação a outros profissionais que acompanharam o caso da mãe.

“Erro médico é toda conduta médica, por ação ou por omissão, que possua um nexo de causalidade com um dano provocado no corpo do paciente”, diz Camila Vasconcelos, advogada e doutora em Bioética.

A partir desse momento, os problemas se multiplicaram: dona Isabel ficou cerca de um ano e meio no hospital, período no qual deu diversas entradas na UTI em estado gravíssimo. Contraiu uma infecção generalizada; adquiriu a Síndrome de Stevens-Jonhnson, doença rara e grave de pele, causada por alergia a medicamento, que provoca o surgimento de lesões em todo o corpo; adquiriu problema nos rins, o que a obrigou a realizar hemodiálise; foi vítima das escaras de decúbito, feridas que aparecem na pele de pessoas que permanecem muito tempo na mesma posição, que surgiu, também, em razão da falta de cuidado dos funcionários do hospital que acreditavam que a paciente não sobreviveria, segundo denunciou a filha de Isabel, Adriana Barreto. Além disso, a paciente teve os problemas de água na pleura e enfisema pulmonar. “O médico ainda iria cometer um segundo erro, dizendo que ela deveria amputar as pernas”, complementou a filha da vítima.

Adriana Barreto revelou que, no período, não levou o caso a nenhum órgão, pois, não era o foco da família diante da situação. “A gente não quis colocar na justiça porque queríamos o bem dela. A gente só queria que ela voltasse, então essa parte [da denúncia], a gente esqueceu”, relembrou a dona de casa, que hoje vive exclusivamente para cuidar da mãe que, felizmente, sobreviveu a todos os males.

O início da vida marcado pelo erro

Era 14 de novembro de 2011, meia-noite. A cidade era Serrinha, localizada a 173 km de Salvador. Naquele dia, Josiane Silva, hoje empregada doméstica, também teria sua vida marcada após o nascimento do seu filho, em um parto realizado após uma série de erros cometidos no hospital.

A grávida chegou ao único hospital da cidade com perda de líquido amniótico e sentindo as contrações do parto. A criança nasceria pré-matura e, por isso, o bebê e a mãe necessitariam de cuidados especiais, a começar pela mudança do tipo de parto: dadas as circunstâncias, uma cesariana precisaria ser realizada, mas o hospital não tinha médico nem estrutura para tal procedimento cirúrgico. Uma transferência de hospital deveria ser feita, sendo a grávida enviada para a cidade mais próxima. Contudo, Josiane foi enviada para casa e orientada a retornar àquele hospital em outro momento.

Às 4h a dor se tornou mais intensa e a grávida deu nova entrada no hospital, quando foi, finalmente, internada. A partir daí se inicia a sucessão de problemas, como descreve Josiane no áudio a seguir:

Após a alta médica, o bebê de Josiane teve diversas paradas respiratórias. Foi quando, em um desses episódios, já na emergência de um hospital de Feira de Santana (cidade vizinha) que mais um fato foi revelado pelos médicos: o pulmão de Enzo Gabriel, como foi batizado o recém-nascido, não havia amadurecido o suficiente por conta do parto pré-maturo, problema que foi agravado pelo fato de a criança não ter sido levada para a incubadora.

Quando parecia que nada mais poderia acontecer, eis que o pior dos diagnósticos é revelado à mãe: Enzo Gabriel era portador de paralisia cerebral, o que, segundo os médicos, pode ter ocorrido em decorrência do parto violento e em condições inadequadas ao qual Josiane foi submetida. Os exames revelaram que diversos vasos sanguíneos do bebê foram rompidos, porém Josiane afirma que todos os exames realizados durante o pré-natal revelavam a boa saúde da criança.

Hoje, Josiane e dona Isabel sobrevivem com a vida regida pelas consequências do erro: a idosa, dentro das suas limitações, está bem. Ainda necessita de diversos cuidados especiais; os gastos com medicamentos e fraldas são altíssimos. Nem o hospital, nem o médico que cometeu o erro nunca ajudaram com nenhuma despesa.

Já Enzo Gabriel não vive tão bem assim. A criança tem crises convulsivas diárias e repetidas, necessita do uso de diversos remédios, fraldas e monitoramento constante. A mãe e a criança se mudaram para Salvador para tentar o tratamento, mas sem sucesso, visto que o hospital que poderia auxiliar a família se recusa a fazer o acompanhamento por acreditar que o trabalho realizado será em vão.

O erro aconteceu. E agora?


É hora de se esclarecer os fatos. Nesse momento, diversas dúvidas surgem, a saúde da vítima se torna prioridade e em alguns casos, o descontrole emocional pode tomar conta. Todas as situações citadas são compreensíveis, mas é necessário ter um pouco de frieza para lidar com as circunstâncias. Isso porque erros médicos refletem em gastos no pós-trauma e garantir os direitos para poder arcar com as despesas futuras pode ser fundamental.

Porém, ir em busca do que é de direito pode ser mais fácil quando dúvidas substanciais são sanadas. Entre elas, conhecer o que se configura como erro médico pode ser essencial. Segundo a advogada Camila Vasconcelos, doutora em Bioética e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “erro médico é toda conduta médica, por ação ou por omissão, que possua um nexo de causalidade com um dano provocado no corpo do paciente”. A professora explica que, para se qualificar como erro médico, a conduta precisa, necessariamente, ser caracterizada por umas das três modalidades de culpa: a negligência, a imprudência ou a imperícia.


O erro médico é uma conduta culposa (não intencional) e, quando se diz que para se configurar como tal é preciso que haja um “nexo de causalidade”, se quer dizer que é preciso existir “uma ligação de causa e efeito entre a conduta do profissional e o dano experienciado pelo paciente”, reforça Vasconcelos. Esse dano pode ser patrimonial ou moral: o dano patrimonial é aquele que afeta os bens econômicos da vítima, quando, por exemplo, a vítima é obrigada a gastar para corrigir o erro ou com medicamentos; o dano moral está ligado ao sofrimento de alguém, no corpo ou no espírito, no qual a honra do paciente é ferida e, nesse caso, há uma estipulação de valor com cunho pedagógico, numa tentativa de restauração da dor sofrida.

Tendo conhecimento do que é o erro médico e sendo alguém vítima de um, é hora de reunir as provas: fotografias, vídeos, laudos e prontuário médicos, entre outros possíveis atestados, são indispensáveis na hora de realizar a denúncia.

O acerto de contas: caminhos para a denúncia

Em março de 2008, a dona de casa Regina Ferreira foi conduzida para uma sala de cirurgia na qual realizaria um procedimento cirúrgico para a retirada de um mioma uterino, um tumor benigno. Ainda durante a cirurgia, para a qual havia sido aplicada uma anestesia local, o que permitiu que a paciente permanecesse acordada, o médico percebeu que havia algo errado e alertou a dona de casa: diversos órgãos da paciente estavam unidos por uma única costura que havia sido realizada em outro procedimento cirúrgico. “O médico disse que minha bexiga, minhas trompas e o meu útero estavam costurados juntos e, impressionado, me questionou como eu havia sobrevivido tanto tempo com aquele erro”, relatou a vítima, que passara por uma cesariana 11 anos antes.

A dona de casa sentiu fortes dores durante todos os anos seguintes ao nascimento do seu filho, realizou exames no intuito de descobrir se existia algum problema, mas nenhum identificou a causa. O médico que revelou o real motivo, como medida de reparação, retirou seis centímetros da bexiga da paciente e orientou que ela denunciasse. Regina não realizou a denúncia por não acreditar que, após tantos anos, algo ainda pudesse ser feito.

Ela estava enganada. Dentre os três âmbitos para os quais as denúncias de casos de erro médico podem ser realizadas, a dona de casa ainda poderia recorrer a todos eles no período da descoberta. Atualmente, ela ainda pode levar ao caso para ser investigado no âmbito administrativo, junto ao Conselho Regional de Medicina da Bahia.
O Conselho Regional de Medicina da Bahia (Crem
eb) prevê que “o marco inicial para contagem do prazo prescricional pelo Cremeb ocorre a partir do conhecimento dos fatos pelo órgão”, esclarece o corregedor da autarquia federal, o conselheiro José Abelardo Meneses. Isso significa que, independentemente do tempo que se passou desde o acontecimento do erro, qualquer caso que ainda não é de conhecimento do Cremeb pode ser levado ao órgão.

A professora Camila Vasconcelos explica que o Conselho “tem por propósito proteger as normas que defendem a ética médica no país e a conduta dos profissionais nesse sentido”. Dessa forma, o lapso temporal mais ampliado para que a denúncia ocorra se dá porque “a pretensão da autarquia é avaliar os fatos conforme efetivamente aconteceram e proteger a medicina como um todo”, completa a professora. Após o conhecimento do fato pelo Cremeb, existe o prazo de até cinco anos para que o órgão comece a processar o médico.

Saiba como realizar a denúncia:


Quando a denúncia é levada ao Cremeb, é instaurada uma sindicância, que é o momento de investigação do caso, quando são identificados indícios de infração ética ou é fundamentado o arquivamento do caso diante da ausência de tais indícios. Após julgada a sindicância, se o erro for confirmado, é feita a abertura de processo ético-profissional, o momento em que se decide qual penalidade será aplicada ao médico infrator. As possibilidades de penalidade são cinco e “iniciam com a advertência confidencial em aviso reservado, passam pela censura confidencial em aviso reservado e depois para as penalidades públicas, quais sejam, censura pública em publicação oficial, suspensão do exercício profissional por até 30 dias e, nos casos mais extremos, a cassação do exercício profissional”, esclarece o corregedor José Abelardo Meneses, conforme previsto em lei.

Ainda durante o julgamento do processo, o médico poderá ter o afastamento total ou parcial, temporário ou definitivo, do seu posto de trabalho, se for comprovada a sua incapacidade de exercer a profissão, assim como fica sujeito à interdição cautelar, que ocorre quando notoriamente o médico prejudica paciente ou população, o que resulta em imediato impedimento – total ou parcial – do exercício da medicina até o julgamento final do caso.

A denúncia feita ao Cremeb não resultará na prisão do médico ou no ressarcimento da vítima. Para tais reparações, a pessoa prejudicada deve procurar o âmbito judicial, pelo qual a vítima pode recorrer numa perspectiva penal ou cível.

Na perspectiva penal, a vítima pode levar o caso ao Ministério Público. Aqui na Bahia, o órgão mantém um núcleo criado especialmente para cuidar de casos na área de saúde, o Nacres (Núcleo de Apuração de Crimes Relativos a Erros na Área de Saúde). O prazo prescricional em relação ao Nacres depende do tipo de crime: nos casos em que o paciente é vítima de lesão corporal culposa, causada por imperícia, imprudência ou negligência médica, a vítima ou seu representante tem o prazo de até seis meses, após o ocorrido ou quando se tem ciência da existência do fato, para procurar o Nacres; quando trata-se de um fato que tenha causado lesão corporal ou morte, o Promotor de Justiça ouvirá a vítima ou seu representante (cônjuge, companheiro(a), filhos, pais) e tomará as medidas apropriadas.


Confirmada a ocorrência de erro, o Nacres encaminha os autos ao Juizado Especial Criminal (JECRIM), nos casos de lesão corporal culposa, ou à Vara Crime, nos casos de homicídio culposo. Ainda, se couber reparação, a vítima ou representante será orientada a constituir advogado para que se busque ressarcimento no âmbito cível.

Porém, se a vítima quiser requerer os seus direitos diretamente na seara cível, ela deverá, necessariamente, ter o acompanhamento de um advogado particular ou procurar a Defensoria Pública, para então pleitear a reparação dos danos morais ou patrimoniais sofridos. O caso poderá ser encaminhado tanto para o juizado de pequenas causas tanto para a justiça comum. O prazo para a denúncia é de cinco anos a partir do momento que o paciente toma conhecimento do erro.


É importante lembrar que, o fato de a denúncia ter sido feita em um dos órgãos aqui citados não anula a possibilidade de se realizar a denúncia nos outros dois. A vítima ou representante pode levar o caso para os três âmbitos.  

Os casos da Bahia: conheça os números

Nenhum dos casos ouvidos para essa reportagem foi levado a algum órgão que pudesse apurar os fatos e, possivelmente, punir os infratores. Porém, a denúncia é também um sinal de cuidado com a sociedade; é uma forma de evitar novos erros, perdas e danos futuros vindos desse profissional infrator.

O Conselho Regional de Medicina da Bahia revelou que, nos últimos cinco anos, oito médicos receberam penalidade de Suspensão do Exercício Profissional por 30 dias e quatro foram penalizados com a Cassação do Exercício Profissional no estado. Mas o órgão afirmou que, nesse período, entre 2012 e 2016, o número de denúncias contra médicos vem decrescendo. Em 2017, até o início do mês de dezembro, 345 sindicâncias haviam sido instauradas.


Voltando a primeira pergunta realizada nessa reportagem, finalmente, você saberia o que fazer caso fosse vítima de um erro médico? A saúde física, mental e financeira entram em jogo nessas questões e organizar esses aspectos em ordem de prioridade é necessário para reorganizar uma vida que é abalada pelo erro.

E por fim, por mais inerente que seja a possibilidade da falha ao homem, qual o é o seu grau de tolerância ao erro? Ao ser uma potencial vítima dessas situações é importante relembrar: ninguém está imune.


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