quinta-feira, 14 de março de 2019

Em vez de “silêncio, hospital”, a necessidade de se comunicar melhor

Série especial do portal OP9 aborda a difícil relação ocorrida em hospitais e consultórios de Alagoas envolvendo 140 mil deficientes auditivos
Em vez do tradicional símbolo de silêncio, o gesto de “falar” em Libras no hospital.

Há os que desistem das consultas porque se angustiam ao verem que não estão sendo compreendidos. Há aqueles que nem chegam a ir ao consultório e há ainda os que desistem já estando frente a frente com o profissional da saúde. Quando decidem permanecer nas consultas e realizações de exames, algumas das maneiras encontradas são as gesticulações, a comunicação por escrita ou a companhia de algum conhecido.

Nenhuma das alternativas é considerada apropriada pelos cerca de 140 mil deficientes auditivos de Alagoas. O drama da falta de um atendimento humanizado e a ausência de profissionais de saúde capacitados em Libras – a Língua Brasileira de Sinais – é tema da nova série especial do OP9.

A leitura labial e a escrita são os métodos encontrados por Bruno Silva Pedra Rocha, de 35 anos, que é surdo e professor de educação física para alunos com surdez e professor de Libras para famílias surdas. Para ele, a dificuldade na comunicação começa já na recepção, principalmente quando aguarda pela sua vez de ser chamado.

Bruno Silva Pedra Rocha revela que a dificuldade começa com o medo de não perceber quando é chamado para o atendimento. 
“Preciso ficar perguntando constantemente para um e para outro se já chamaram pelo meu nome. Por isso, acabo ficando nervoso e angustiado. Quando passo pela recepção e chego no médico, ele também não sabe a língua de sinais, escreve e eu não entendo o significado de algumas palavras”, conta.

Diante dessa barreira de comunicação, os relatos apontam que os profissionais da saúde acabam emitindo um diagnóstico simples, para que o paciente seja liberado rapidamente. “Geralmente o médico não tem paciência e me libera da consulta rapidamente, então vou embora”, afirma Bruno, que deixou a família em Salvador e mora sozinho em Maceió. Apesar de primar pela sua independência, quando há uma emergência ele afirma que precisa chamar por um amigo para que este acione o serviço.

Um intérprete em cada hospital ou Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou o conhecimento do profissional da saúde para a Língua Brasileira de Sinais são as únicas alternativas consideradas por Bruno como eficazes para um atendimento médico de qualidade aos pacientes surdos. “Acredito que precisa ter pelo menos um intérprete nas UPAs. Eu não posso pagar por um e às vezes o amigo não pode me acompanhar”, complementa.

Os relatos de pessoas surdas consultadas pelo OP9 são unânimes sobre a forma como os atendimentos acontecem. Ou por que eles não acontecem. Nenhum deficiente auditivo conheceu ao longo da vida um médico que soubesse a Língua Brasileira de Sinais (Libras). O máximo encontrado foi o funcionário da recepção ou algum enfermeiro que mal sabiam o básico da língua, insuficiente para um atendimento adequado.

Por causa disso, algumas das maneiras encontradas para se comunicarem são as gesticulações – que não têm nada a ver com a língua de sinais -, a escrita por meio de bilhetes – sendo que muitos surdos não conhecem a língua portuguesa em sua plenitude -, ou levam algum amigo, familiar ou até mesmo um intérprete, prejudicando a privacidade e o estímulo à independência da pessoa surda. Há até aqueles que, quando vão sozinhos ao médico, pedem assistência a algum conhecido através do WhatsApp. O remédio ideal mesmo é que os profissionais da saúde saibam a língua de sinais.


1) Quando a falta de informação agrava ainda mais o quadro de saúde

Ele (o nome não será revelado a pedido da família) descobriu que é diabético na adolescência. Do surgimento da doença até a fase adulta, quando chegou a ficar cego em 2016, aos 30 anos, e ter somente 25% de um dos rins funcionando, nunca foi a uma consulta médica acompanhado por alguém fluente em Libras. A falta de comunicação acessível fez com que a diabetes se agravasse a este ponto e dificultasse ainda mais o contato.

Aline Trindade Pinho e Silva, psicóloga bilíngue e coordenadora do setor de empregabilidade para a pessoa com deficiência do Instinto Bilíngue de Qualificação e Referência em Surdez (Ires), recomendou o Libras Tátil, quando o surdo-cego coloca a sua mão sobre a mão do interlocutor, que precisa ter conhecimento em Libras, para entender o que está sendo dito.

O método foi usado quando ele precisou se submeter a cirurgias arriscadas, como a de um catéter de hemodiálise em uma veia do pescoço. A Central de Intérprete de Libras (CIL), coordenada pela Secretaria dos Direitos Humanos e da Mulher do governo estadual, disponibilizou um intérprete para acompanhar o paciente.

“O psicólogo do hospital ficou ao lado do intérprete, passando qual seria o procedimento e orientação para ele ficar tranquilo”, conta Aline. Segundo ela, mesmo assim ele foi para o centro cirúrgico “praticamente sem muita noção do que estava acontecendo”.

Depois desse processo, ele, atualmente com 32 anos, conseguiu fazer a cirurgia dos olhos e voltou a enxergar. O caso dele é crônico, delicado e se não manter adesão rigorosa ao tratamento, ele corre o risco de morte.

“Por onde passamos quase não se veem pessoas que possam se comunicar diretamente com ele, só através de mim. Percebo que ele fica triste e desinteressado em frequentar estes lugares [hospitais]”, desabafa a irmã.

2) Barreira de linguagem encurta a relação médico-paciente

“O maior medo do deficiente auditivo é chegar na consulta, não conseguir se comunicar e o problema se agravar”, revela Arnaldo Nascimento, de 40 anos, surdo desde quando ainda engatinhava. Um temor com fundamento. Ele lembra de um conhecido que morreu após o seu problema de saúde se agravar porque não teve um atendimento inicial adequado pela falta de comunicação com os médicos. Arnaldo perdeu a audição após uma queda de uma escada ainda bebê. Por causa de uma inflamação, teve meningite. A visão não foi afetada e nem o aparelho fonador. Mas ele explica que não fala porque teve o aparelho auditivo prejudicado.

O governo estadual fornece intérpretes para a população surda que necessita de serviços em órgãos públicos. Mais são apenas três profissionais. Há intérpretes de Libras que fornecem o serviço particular, mas cada hora custa em média de R$ 80 a R$ 100. “O sentimento é de preocupação e angústia. Se acontecer uma emergência, preciso contar com a sorte. O Samu [Serviço de Atendimento Médico de Urgência], por exemplo, precisa criar mecanismos, aplicativos para que o usuário surdo mostre a sua localização quando ele estiver passando mal. Até serviços de pizzarias têm aplicativo e os de saúde não. Muito complicado”, lamenta Arnaldo, que também é instrutor em um centro de referência para surdos.

Ele diz que já levou pai, mãe, intérprete para as consultas e a situação é sempre constrangedora. “Sempre coloco minha vida particular para o intérprete. Já aconteceu de eu não querer ir para a consulta, porque é vergonhoso ter que explicar suas coisas para quem você não conhece. É uma dependência grande, porque pago pela consulta, pago pelo intérprete e mesmo assim não estou sendo atendido adequadamente”, complementa.

3) A internet se torna uma referência pela falta de esclarecimento no consultório

Isabel Alvim Souza Ferreira, de 29 anos, tem o costume de conversar com os médicos por escrita ou através de desenhos. Ela não sabe fazer leitura labial. Também não gosta de ir acompanhada. Quase sempre sai das consultas médicas “sem entender bem o que foi dito”. Por causa disso, ela guarda todos as anotações feitas durante o encontro com o profissional de saúde, leva-as para casa para fazer uma pesquisa minuciosa até entender o que se passa com a sua saúde.

Se seguir as regras de tratamento para uma doença é um dos requisitos imprescindíveis para retomar à saúde, o que dizer quando o paciente não entende sequer a hora que deve tomar os remédios? “Não entendi o que tinha na receita. E não entendi quando ela [médica] me disse como tomar. Meu vizinho foi quem me ajudou”, conta Isabel.

As consultas acabam também sendo um jogo de mímicas. Até uma médica precisou se acocorar para avisar a Isabel de que ela precisava fazer exames de fezes. No entanto, os detalhes sobre seu estado de saúde ou do porquê de precisar fazer os exames não foram compreendidos. Na ocasião, Isabel conta que desistiu de perguntar e foi embora. “Percebi que ela estava sem paciência”.

Isabel também reconhece que, apesar de as unidades particulares não disporem de intérpretes ou médicos que falem a língua de sinais, é no Sistema Único de Saúde (SUS) que a situação piora com as filas e falta de sinalização. “Uma vez cheguei cedo, era para ser uma das primeiras atendida, esperei o dia todo porque eu não sabia que já tinham me chamado, sendo que avisei na recepção que dessem um sinal porque eu sou deficiente auditiva”, finaliza.

4) A palavra escrita é pouco para uma situação de emergência

Uma prática comum enfrentada por Anne Karine Silva de Goes, de 32 anos, é ligar para a irmã por vídeo através do aplicativo WhatsApp no momento da consulta. Ela conta que uma das vezes em que isso aconteceu foi na sua ida ao dentista. “Foi a primeira vez que tinha ido para ele, e ele não compreendia nada do que eu estava tentando dizer e eu não o entendia. Liguei para minha irmã por vídeo pelo WhatsApp e foi quando passamos a nos comunicar”, diz Anne Karine, que nasceu ouvinte e também por causa de uma meningite perdeu a audição aos dois anos.

Mas é também na escrita que ela encontra um meio para entender e ser compreendida. Entretanto, nem sempre o método funciona. “Uma vez fui ao médico com uma dor nos seios. Ao chegar lá, tentei me comunicar com a médica e precisei gesticular, porque ela não sabia a língua de sinais. Ela começou a me detalhar a situação por escrita, mas muitas palavras eu não conhecia e pedia para ela simplificar”, conta, lembrando de outra situação da qual precisou desistir da consulta porque o médico não entendia Libras.

Os serviços de urgência e emergência do estado são acionados por meio de ligação telefônica, algo impossível para um deficiente auditivo. Se ele precisa do serviço pela madrugada, a situação piora, principalmente se mora sozinho. É o caso da Anne Karine. “Se é uma emergência e não tenho como chamar um familiar ou um amigo, eu preciso ir para a rua e pegar um táxi”, afirma e acrescenta: “Tenho uma filha ouvinte de nove anos e fico pensando se acontecer algo com ela, de madrugada principalmente, não terei como ligar”.




















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