Imagem: Carla Raiter, Projeto 1 em 4. Fonte: Observatório da Violência Obstétrica no Brasil. |
A capacidade de um juiz proferir uma sentença justa está diretamente relacionada com sua compreensão da realidade social e individual da pessoa que ele está julgando. É por esse motivo que racismo estrutural, patriarcalismo, machismo, heteronormatividade, lgbtfobia e todo tipo de preconceito são questões tão crônicas e nocivas à justiça, pois impedem que o julgador desenvolva empatia por aqueles que são diferentes dele, impedem que ele “se coloque no lugar” de quem julga e compreenda as questões sensíveis das pessoas em cujas vidas ele está interferindo diretamente.
É por esse motivo também que o primeiro curso sobre violência obstétrica para juízes, que será oferecido pela Escola Superior da Magistratura do Amazonas (Esmam), é uma ótima notícia – principalmente se considerarmos que casos de violência obstétrica geralmente são julgados por homens, devido a subrepresentação de mulheres na magistratura.
Recusa de atendimento, procedimentos médicos desnecessários, imposição de cesária, agressões verbais, impedimento de a gestante escolher a forma e o local em que o parto ocorrerá e a proibição da entrada do acompanhante no momento do parto normal são algumas das situações que configuram violência obstétrica. O termo se refere aos diversos tipos de agressão a mulheres gestantes, seja no pré-natal, no parto ou pós-parto.
Este é o primeiro curso sobre violência obstétrica credenciado pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados), no Brasil, e está sendo oferecido pela Escola da Magistratura do Amazonas, o que nos orgulha muito. Teremos a participação de magistrados da Justiça estadual e também membros da Defensoria Pública, Ministério Público, OAB, além de médicos e enfermeiros. A capacitação com todos esses profissionais vai enriquecer os debates em sala de aula, cada um acrescentando suas experiências diárias em relação ao tema.
Comentou o diretor da Esmam, desembargador Flávio Pascarelli, explicando que esse tema foi escolhido para aperfeiçoar o exercício profissional dos magistrados em relação aos processos judiciais envolvendo mulheres vítimas de violência obstétrica.
Mas o assunto ainda é muito novo no âmbito jurídico. Os processos que chegam ao Judiciário Estadual nem são classificados como violência obstétrica, uma vez que a tabela estatística elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e usada pelos tribunais na formatação dos dados dos processos não possui essa classificação. Parte deles é registrada como “erro médico”, ou como “responsabilidade civil”, “dano”, “lesão”, e até mesmo, nos casos que envolvem convênio e/ou hospitais particulares, “direito contratual” e “direito do consumidor”.
Isso, somado ao fato de que não há uma lei específica que traga uma definição jurídica do que é violência obstétrica no Brasil, ajuda a demonstrar o quanto o judiciário está despreparado para reconhecer e lidar com a questões.
Sofrer algum tipo de violência obstétrica é realidade para 1 em cada 4 mulheres no Brasil, segundo um estudo de 2010 realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC) intitulado “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”.
Segundo reportagem do Laboratório de Jornalismo Convergente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os principais casos de violência Obstétrica são:
Violência por negligência – Negar atendimento ou impor dificuldades para que a gestante receba os serviços que são seus por direito. Essa violência ocasiona uma jornada de busca por atendimento durante o pré-natal e por leito na hora do parto. Ambas são bastante perigosas e desgastantes para a futura mãe. Também diz respeito a privação do direito da mulher em ter um acompanhante, o que é garantido por lei desde de 2005.
Violência Física – Práticas e intervenções desnecessárias e violentas, sem o consentimento da mulher, como a aplicação do soro com ocitocina, lavagem intestinal (além de dolorosa e constrangedora, aumenta o risco de infecções), privação da ingestão de líquidos e alimentos, exames de toque em excesso, ruptura artificial da bolsa, raspagem dos pelos pubianos, imposição de uma posição de parto que não é a escolhida pela mulher, não oferecer alívio para a dor, episiotomia sem prescrição médica, “ponto do marido”, uso do fórceps sem indicação clínica, imobilização de braços ou pernas, manobra de Kristeller (procedimento banido pela Organização Mundial de Saúde, em 2017). A cesariana também pode ser considerada uma prática de violência obstétrica, quando utilizada sem prescrição médica e sem consentimento da mulher. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o segundo país com maior percentual de partos realizados por cesárea no mundo: enquanto a OMS orienta uma taxa ideal entre 25 e 30%, a realidade brasileira aponta que 55,6% dos partos são realizados com essa prática. O percentual é ainda mais alto na medicina privada, na qual 85,5% dos partos são feitos a partir de cesariana, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Violência verbal – Comentários constrangedores, ofensivos ou humilhantes à gestante, seja a inferiorizando por sua raça, idade, escolaridade, religião, crença, orientação sexual, condição socioeconômica, número de filhos ou estado civil, seja por ridicularizar as escolhas da paciente para seu parto, como a posição em que quer dar à luz.
Violência Psicológica – Toda ação verbal ou comportamental que cause na mulher sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, medo, instabilidade emocional e insegurança.
Violência obstétrica em casos de abortamento – Embora seja muito aliada ao parto em si, mulheres que sofreram um aborto também podem ser vítimas de violência obstétrica. Isso pode acontecer de diversas maneiras: negação ou demora no atendimento, questionamento e acusação da mulher sobre a causa do aborto, procedimentos invasivos sem explicação, consentimento ou anestesia, culpabilização e denúncia da mulher.
É importante salientar que a violência não parte apenas do médico obstetra. Ela pode ser cometida por toda a equipe de saúde e até por recepcionistas e pela administração do hospital.
O curso será ministrado pela Artemis, organização não-governamental com sede em São Paulo e custeado pelo Humaniza Coletivo Feminista, associação sem fins lucrativos com sede em Manaus e será dividido em quatro módulos:
Fisiologia Básica e recomendações nacionais e internacionais, envolvendo questões como os aspectos psicossociais da gravidez e as intervenções comuns no parto, indicações e contraindicações de cesariana, mortalidade materna e relacionamento médico-paciente;
Sensibilização e os conceitos de violência obstétrica, as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), os direitos humanos, os conceitos de violência física, verbal e moral no atendimento obstétrico, e de indução da vontade (cesariana eletiva);
A legislação brasileira sobre violência obstétrica;
A prática jurídica nos casos de violência obstétrica (o acolhimento da mulher vítima de violência obstétrica, tipificação, plano de parto, uso extrajudicial do plano de parto, prescrição, autores e réus, Justiça Especial Cível versus Justiça comum, Direito do Consumidor, dano moral, jurisprudências, direito comparado e doutrinas, perícias);
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