quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Único hospital de Pacaraima vira símbolo de descaso em meio à crise

Hospital na fronteira do Brasil com a Venezuela sofre com infiltrações e esgoto na cozinha. Funcionários se viram como podem para atender a demanda                    

"Centro cirúrgico" foi transformado em sala de partos - Márcio Neves/R7/26.08.2018

Centro cirúrgico parado há quase 30 anos, convertido em sala de parto e maternidade. Cozinha desativada com o esgoto retornando pelo encanamento. Laboratório precário que realiza apenas hemogramas e dependente da doação de insumos da Venezuela. Pagamentos irregulares de salários dos profissionais da limpeza.

Essas foram algumas das precariedades encontradas pela reportagem do R7 na última sexta-feira (24) no Hospital Délio Tupinambá, em Pacaraima (Roraima), na fronteira do Brasil com a Venezuela, que está no centro de uma crise social e humanitária pelo intenso fluxo de imigrantes venezuelanos ao Brasil.

O único hospital da cidade — que conta também com dois postos de saúde — se tornou um símbolo do descaso das autoridades estaduais e federais com a região, que batem boca publicamente na disputa por milhões de reais, enquanto os profissionais de saúde, a população local e os venezuelanos se viram como podem na desestruturada unidade.

A falta de condições colocou em risco a vida do comerciante Raimundo Nonato de Oliveira, de 55 anos, que no último dia 17 foi brutalmente agredido na cabeça durante um assalto a sua residência, aparentemente por quatro venezuelanos. A violência contra Seu Raimundo gerou revolta na cidade afligida pela violência e culminou com o ataque de um grupo de brasileiros aos migrantes em situação de rua, com a expulsão de 1.200 deles para o outro lado da fronteira.

Seu Raimundo entrou na unidade com estado de saúde grave, intensa perda de sangue e necessidade urgente de transfusão. No entanto, não havia condições no hospital para estabilizar seu quadro clínico, segundo os profissionais de saúde, que não serão identificados nesta reportagem.

remoção para Boa Vista se tornou urgente, mas a única ambulância do local havia acabado de sair rumo à capital, a 200 km de distância, com um paciente que havia sofrido um infarto.

“Não há condição alguma de atender a pacientes graves”, relata um funcionário.

A unidade entrou em contato com o posto de saúde avançado do Exército — que fica na fronteira para o atendimento dos venezuelanos recém-chegados — para solicitar a ambulância do local, mas o atendimento foi negado.

“Eu saí de Pacaraima com meu carro particular e a médica me acompanhando”, conta Seu Raimundo, entrevistado uma semana após ser agredido a paulada.

A ambulância já estava retornando a Pacaraima quando cruzou com seu Raimundo na metade do caminho, concluindo seu transporte até a capital.

Horas antes do ataque aos venezuelanos, correu um boato em Pacaraima de que o comerciante havia morrido. Moradores relatam à reportagem que a notícia falsa inflamou o grupo de brasileiros que protestava contra os venezuelanos, já no sábado (18), o que contribuiu para o ataque aos refugiados. Na verdade, havia morrido o primeiro paciente transportado de ambulância, de infarto, que também tinha sido levado para o Hospital Geral de Roraima (HGR). 

Raimundo recebeu alta no dia seguinte, domingo (19), e desde então é atendido no Hospital Délio Tupinambá para cuidar dos curativos.

Sem cozinha, sem cirurgia, sem luz

“Este é um hospital de pequeno porte sem estrutura para ser referência. No laboratório, só fazemos hemogramas. Não temos condições de fazer transfusão de sangue. Nosso raio-X só está funcionando porque o hospital de Santa Elena [de Uairén, na Venezuela] nos doou o químico esta semana”, conta uma funcionária. “Precisamos de mais estrutura”.

Em uma cidade com 12 mil habitantes (e um número incerto de refugiados), o hospital assiste ao crescimento acelerado do número de atendimentos, que passou de 5.791, em 2016, para 10.368 somente no primeiro semestre deste ano — sendo 6.509 de venezuelanos, ou 63% do total.

A precariedade, no entanto, limita a capacidade do serviço. “Nós estamos deixando de internar alguns casos por falta de comida”, conta outra funcionária.

Na cozinha da unidade, desativada, é possível notar vazamento de esgoto, infiltrações nos armários e falta de limpeza dos armários. O local é usado parcialmente apenas para o preparo de café e lanches.

Atualmente, os alimentos são comprados pela direção e as refeições são preparadas na casa de uma funcionária. Almoços e jantares são servidos para a equipe e para quem já está internado, sem espaço para imprevistos. A reportagem presenciou um venezuelano levando o almoço para sua mulher, internada porque havia dado à luz naquela manhã.

No centro cirúrgico, apenas uma placa na parede indica para o que deveria ser aquele local, que nunca realizou uma cirurgia desde a fundação do hospital, em 1992, e foi transformado em sala de partos.

Para atendimentos urgentes, a unidade conta com dois kits catástrofe, obtidos recentemente, cada um formado por um desfibrilador, um ventilador, duas bombas de infusão e um monitor cardíaco. Todo atendimento mais complicado é levado para o HGR, em Boa Vista.

Sem mencionar o problema de apagões, que se tornaram rotina na vida dos roraimenses, já que a energia vem da Venezuela, onde a manutenção é feita cada vez de forma mais precária. Há exatamente duas semanas, uma venezuelana vinda em missão empresarial na fronteira, Olívia Veronica León, morreu após ter uma parada cardíaca em meio a um apagão, que durou 24 horas e não foi revertido porque os geradores não funcionaram.

“Não conseguimos dar o choque nela”, conta um funcionário. Os apagões também acabam queimando lâmpadas e aparelhos.

Apesar de todos os problemas, os pacientes entrevistados pela reportagem elogiam o atendimento, como a venezuelana Graciely Mijares, de 30 anos, mãe da pequenina Yusgrace, a nova brasileirinha que havia acabado de chegar ao mundo.

Natural de Ciudad Guayana, a 600 km de distância, ela vive há 2 anos em Pacaraima porque a situação estava “muito difícil” em sua cidade, onde “não se consegue comprar fraldas nem o leite para as crianças”.

— O hospital de lá estava todo sujo, fedia, com contaminação. Eu vim para cá e a atenção foi melhor que a de um anjo. Tudo é limpo. Me dá uma dor, e elas vêm e me atendem rápido.

Disputa política

O serviço de atendimento à saúde em Pacaraima e em toda Roraima está no meio de uma disputa política travada entre Brasília e Boa Vista, em razão da explosão de atendimentos aos venezuelanos.

Em todo o Estado, o número de venezuelanos atendidos saltou de 700, em 2014, para 50 mil no ano passado. E somente nos três primeiros meses deste ano, passou de 45 mil, segundo dados da Sesau (Secretaria de Estado da Saúde de Roraima).

A governadora Suely Campos (PP), candidata à reeleição em outubro e que responde pela gestão do hospital de Pacaraima, está em pé de guerra com o Palácio do Planalto para que a União pague R$ 184 milhões ao Estado, como ressarcimento por gastos com venezuelanos nas áreas de saúde, educação e segurança. Desse total, R$ 70 milhões correspondem aos 50 mil venezuelanos atendidos em 2017. Suely também pede a instalação de um hospital de campanha em Boa Vista.

Em visita a Pacaraima na última quinta-feira (23), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, declarou que a União já repassou mais de R$ 180 milhões a Roraima e que R$ 70 milhões ainda estavam disponíveis nos cofres estaduais.

— Quando o governo gastar aquilo que lhe foi enviado, alguma coisa em torno de 180 e poucos milhões de reais, evidentemente que estaremos dispostos a atender. Então, primeiro o governo precisa gastar aquilo que está em seus cofres.

O ministro também chegou a dizer que a cidade fronteiriça conta com um hospital de campanha do Exército, mas foi desmentido na sequência pelo coronel George Feres Kanaan, que comanda a Operação Acolhida em Pacaraima, de recepção e triagem dos imigrantes.

Segundo o Exército brasileiro, um hospital de campanha é uma unidade móvel “grande” e “moderna” com áreas de triagem, enfermaria, emergência, centro cirúrgico de urgência, UTI (Unidade de Terapia Intensiva), seção de radiologia com equipamentos de raio-X e de ultrassonografia, laboratório para exames, farmácia e banco de sangue. Serviços muito além do que o posto avançado, os dois postos de saúde e o hospital Délio Tupinambá podem oferecer à população de Pacaraima.

O R7 entrou em contato na sexta-feira, no sábado e no domingo com a Sesau, por telefone, mensagem e recado na secretária eletrônica, mas não recebeu um posicionamento até a publicação desta reportagem.

Sobre não emprestar a ambulância para socorrer seu Raimundo em Pacaraima, o Exército brasileiro respondeu apenas que o paciente chegou a Boa Vista de ambulância.


R7

Nenhum comentário:

Postar um comentário