quarta-feira, 25 de julho de 2018

A história que deu origem à polêmica dos exames pré-câncer suspeitos de erro em Pelotas

Caso de Ieda de Ávila está no centro da controvérsia envolvendo suspeitas sobre testes preventivos realizados por laboratório conveniado à prefeitura
Aos 51 anos, Ieda mostra dois laudos, de 2015 e 2017, que não apontaram indícios da doença

Uma das pacientes submetidas a exames pré-câncer suspeitos de erro em Pelotas, a dona de casa Ieda de Ávila, 51 anos, está assustada. Ex­-auxiliar de serviços gerais em um ferro-velho, mãe de 10 filhos, ela se submeteu a dois exames preventivos (papanicolau), com resultados negativos para câncer, mas depois, para sua surpresa, foi diagnosticada com um tumor maligno no colo do útero.

Ieda é uma das principais personagens da polêmica sobre a validade de testes feitos em 10 cidades da região sul do Estado por um laboratório conveniado. O caso dela foi citado de forma sigilosa (só com as letras iniciais do nome) em um memorando da Unidade Básica de Saúde (UBS) Bom Jesus, que levantou desconfianças sobre a autenticidade dos exames realizados entre janeiro de 2014 e junho de 2017 pelo Serviço Especializado de Ginecologia (SEG), de Pelotas.

O memorando questiona a queda para zero de casos positivos no período e abriu caminho para controvérsia envolvendo UBS, laboratório, prefeitura e, agora, órgãos de investigação. No caso de Ieda, há divergência de interpretações dos testes. O SEG afirma que, apesar de ter registrado no documento a expressão “negativo para malignidade”, também anotou a presença de “inflamação”, o que não permitiria detectar o câncer. Para o laboratório, os médicos da rede pública deveriam ler o laudo inteiro e pedir a repetição do exame. A prefeitura afirma que a conclusão induz o médico da paciente ao erro.

Há 12 anos, Ieda se trata na UBS Bom Jesus, no bairro Areal. Ela conta que há seis anos convive com o diabetes e repete a cada ano o papanicolau, sempre com resultado negativo. Em abril de 2015, o laudo do exame revelou uma inflamação, com possível presença da bactéria gardnerella, e teve como conclusão “negativo para malignidade”. Naquela época, a médica do posto teria percebido uma ferida, mas considerada nada de anormal.

"Estamos diante de um absurdo. Lembro, no sentido contrário, da pílula anticoncepcional de farinha. Ela gerava vida. Este caso está tolhendo vida."

ARTUR JARDEL SOARES - Advogado

Ieda conta que, em 2016, se submeteu à coleta de material, mas nunca viu o resultado. O laudo teria sumido. Em janeiro de 2017, voltou ao posto para novo exame. Durante a coleta, a médica percebeu alterações no colo do útero e indicou que consultasse um especialista. Mas Ieda teve de passar os dois meses seguintes em Porto Alegre, cuidando de um familiar adoentado. Voltou para Pelotas em abril e soube que funcionários da UBS estavam à procura dela.

Em maio, ao consultar um especialista, Ieda lembra que o médico solicitou biópsia e pediu para ver o exame pré-câncer realizado em janeiro. Ela ainda não tinha buscado o documento na UBS e, ao abri-lo, constatou que o resultado era igual ao de dois anos antes: inflamação, possível presença da bactéria gardnerella com conclusão “negativo para malignidade”.

O diagnóstico da biópsia, em maio de 2017, indicou “pequenos fragmentos de carcinoma epidermoíde, invasor e bem diferenciado” no colo uterino.


A partir daí, a dona de casa começou tratamento no Centro de Radioterapia e Oncologia (Ceron), da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Foi necessário outro exame, uma ressonância magnética, urgente. E Ieda diz que teve de juntar dinheiro com parentes, R$ 720, para bancar o custo.

– Como tinha de ser rápido, paguei particular. Pelo SUS, esperaria quanto tempo? Acho que já tinha morrido – lamenta.

"Fiquei muito abalada. Entre os meus filhos, é uma choradeira só."

IEDA DE ÁVILA - Dona de casa

Consulta particular e dinheiro contado


Entre julho e setembro, ela passou por 28 sessões de radioterapia, seis de quimioterapia de junho a dezembro, e mais quatro sessões de braquiterapia, em Porto Alegre. Ieda lembra que precisa coletar sangue a cada seis meses para avaliar a imunidade e se trata, além do Ceron, com uma médica particular, pagando pelas consultas e por exames de pré-câncer. Afora isso, tem despesas com medicamentos.


– Outro dia, senti uma dor no lado esquerdo da barriga e fiz uma tomografia. Gastei R$ 480 e não apareceu nada. Aí, a médica me pediu uma colonoscopia. Mas como faltou dinheiro, entrei na fila do SUS. Sabe lá, Deus, quando vão me chamar – reclama.

A dona de casa vive com a renda do marido, biscateiro, e desde novembro recebe um salário mínimo como auxílio-doença. Parte dos gastos com o tratamento é abatida porque um dos filhos adquiriu para ela um plano de saúde. 

– Fiquei abalada. Entre os meus filhos, é uma choradeira só – diz.

Advogado de Ieda, Artur Jardel de Oliveira Soares está reunindo documentos para entrar com uma ação cível nos próximos dias:

– Queremos que a Justiça apure se houve descaso ou desleixo, imperícia ou negligência dos responsáveis pelo serviços de saúde.

UBS Bom Jesus


Em julho de 2017, seis profissionais de saúde, entre médicos e enfermeiros da UBS, enviaram memorando para a Secretaria de Saúde de Pelotas,  preocupados com resultados de exames de pré-câncer analisados pelo laboratório SEG, de Pelotas. Entre janeiro de 2014 e junho de 2017, com média de 250 exames anuais, não surgiram casos de doentes, todos resultados “negativos para malignidade”. Enquanto que, entre 2006 e 2013, com média de 760 exames anuais, o número de pacientes com câncer foi em torno de 40 por ano. No documento, consta que a paciente Ieda de Ávila fez dois exames pré-câncer, em 2015 e 2017, apresentando lesão, mas cuja conclusão foi “negativo para malignidade”. Meses depois, ela foi diagnosticada com câncer de colo de útero.

Laboratório SEG


As solicitações e resultados de exames pré-câncer da rede pública são registrados no Sistema de Informação do Câncer (SISCAN), do Ministério da Saúde. De acordo com a médica Claudete Mariza Dias Correa, 75 anos, responsável técnica do Serviço Especializado de Ginecologia (SEG), todos os exames nos quais não foi possível visualizar as células por causa de inflamação ou infecção nas amostras são lançados no SISCAN como casos de “negativo para malignidade”. Conforme a médica, o SISCAN só permite duas opções para o laudo: com câncer ou sem câncer. Não há opção “inconclusivo”.Entretanto, Claudete explica que, nos casos com a presença de infecções ou inflamações, ela informa isso no laudo para que o médico trate a paciente para depois refazer o exame.

Prefeitura de Pelotas


Segundo a ginecologista da rede municipal Cristina Pereira, em caso de lâmina contaminada com hemácias (sangue), leucócitos (infecção) ou material de dessecado, a lâmina deveria ser considerada insatisfatória. O laboratório jamais deve expressar “negativo para malignidade”, que é um laudo conclusivo. Cada vez que o médico encontrar um laudo negativo para malignidade, vai considerar este um parecer conclusivo, diz Cristina. 

Esse posicionamento é baseado no Caderno de Atenção Básica número 13 do Ministério da Saúde. Quando há infecção, isso já é percebido no exame macroscópico. Nesses casos, o procedimento padrão deve ser o de não coletar e aplicar o tratamento na paciente. Depois disso, a coleta tem de ser refeita.

Gauchazh

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