O caso foi denunciado ao MPF, a Delegacia Interativa da Polícia Civil e a Defensoria Pública da União |
Manaus (AM) – A Pastoral do Migrante denunciou ao Ministério Público Federal que uma equipe do Hospital-Pronto Socorro 28 de Agosto abandonou um imigrante haitiano na calçada da Paróquia São Geraldo, na zona centro-sul de Manaus. O caso aconteceu na manhã de quarta-feira (28 de novembro). Icles Dorvil, de 36 anos, que sofre de transtorno mental, ficou internado no hospital do dia 11 a 27 de novembro para tratar a fratura da perna direita provocada por um atropelamento.
De acordo com a denúncia, a equipe de saúde desceu de uma ambulância e colocou Icles em uma cadeira de rodas. Na perna direita, Icles estava com os pinos e hastes de metal colocados na cirurgia a que foi submetido no hospital. Nas mãos, ele segurava uma sacola com os encaminhamentos médicos, inclusive, para o tratamento psiquiátrico.
Sem procurar um responsável da igreja, ainda segundo a denúncia, o haitiano foi entregue pela equipe para outros imigrantes, que o acolheram num banco do salão da paróquia. Depois, foi levado para um cômodo da igreja e deitado numa cama sem lençóis, onde dormiu. A denúncia diz que o imigrante estava com fome.
“A atitude deles [da equipe de saúde] de colocar na ambulância e deixar lá [na calçada] como se fosse uma mercadoria para que os outros cuidassem, acho que foi um ato desumano”, afirma o pároco da Igreja São Geraldo, padre Valdecir Molinari à Amazônia Real.
Além de denunciar ao MPF, a Pastoral do Migrante registrou um Boletim de Ocorrência na Delegacia Interativa da Polícia Civil, dando queixa por abandono de incapaz contra o Hospital-Pronto Socorro 28 de Agosto. Também apresentou denúncia à Defensoria Pública da União (DPU). A instituição humanitária busca imagens de câmeras de segurança para identificar a ambulância do 28 de Agosto, na qual estava a equipe de saúde que transportou o paciente até a paróquia.
Segundo a Pastoral do Migrante, na sacola deixada com Icles pela equipe de saúde estava um encaminhamento do hospital para que ele fosse atendido por um psicotrópico e psiquiátrico. Segundo o documento, o atendimento é necessário “em razão da presença de sintomas psicóticos (alucinações e comportamentos desadaptados).”
O que diz a Susam?
A Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) nega que o imigrante Icles Dorvil tenha sido abandonado. Em nota de esclarecimento enviada à agência Amazônia Real, a Susam afirma que uma gerente de enfermagem da unidade e uma assistente social acompanharam, pessoalmente, a remoção do paciente até a casa paroquial, onde foi entregue a uma funcionária. Os nomes da enfermeira e da assistente social não foram informados pela Susam.
“A gerente de enfermagem da unidade e uma assistente social acompanharam, pessoalmente, a remoção do paciente até a casa paroquial, onde ele ficou, entregue à referida funcionária, com a prescrição e medicamentos, conforme fotos em anexo”, diz a nota. A assessoria enviou à reportagem uma foto por meio da rede social Whatsapp.
Na nota enviada à reportagem, a Susam procura justificar a entrega de Icles Dorvil na paróquia. “Durante sua internação, o serviço social do hospital identificou que o paciente era egresso da casa paroquial da Igreja São Geraldo, onde trabalhou na fábrica de picolé, instalada no local”, explica a nota.
Em outro trecho do comunicado, a Susam afirma que a paróquia já havia dado apoio ao haitiano, quando ele precisou de atendimento psiquiátrico. “A paróquia foi contatada e uma funcionária da casa paroquial chegou a acompanhar o paciente em uma consulta que fez no Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, enquanto estava internado no 28 de Agosto”, diz a nota.
Os funcionários da Pastoral do Migrante não reconheceram o homem que aparece na fotografia, enviada à reportagem pela Susam. Conforme a instituição humanitária, a pessoa que a Susam trata também como funcionária, que recebeu a equipe de saúde, é uma haitiana que trabalha na fábrica de picolé da paróquia e não é responsável pelos imigrantes.
“Os responsáveis são o padre Valdecir, e depois dele, tem os funcionários: secretária, assistentes sociais. Nenhuma pessoa da paróquia foi procurada pela equipe de saúde informando da alta médica [no dia 28 de novembro]”, diz a coordenadora da Pastoral do Migrante, Rosana Nascimento.
“A paróquia não é residência de nenhum desses migrantes, onde está a responsabilidade da equipe que simplesmente deixou o rapaz com uma pessoa sem checar se era parente, onde mora, entre outras coisas?”, protesta a coordenadora da Pastoral.
A legislação da imigração brasileira (Lei 13.445/2017) garante ações de assistência médica e atendimento de saúde na rede pública aos estrangeiros. “O acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória.”
A Amazônia Real entrou em contato com o Conselho Estadual de Direitos Humanos, para saber qual seria o procedimento adequado em uma situação semelhante. A presidente em exercício do conselho, a defensora pública Karoline Santos, disse que iria buscar mais informações sobre o caso. Ela criticou a possibilidade de abandono do paciente.
“Não é para ser dessa maneira, até porque a gente tem instituições de acolhimento. Nesse caso, vamos procurar uma situação individual. Mas se verificarmos que é uma situação que se repete, podemos abrir uma investigação”, afirmou Karoline.
Segundo a Susam, Icles Dorvil sofreu fratura na tíbia, após ser atropelado em Iranduba, município que fica na região metropolitana de Manaus. A data do atropelamento não foi informada pelo hospital.
De acordo com a secretaria, no dia 11 de novembro, o haitiano foi transferido de Iranduba para o Hospital-Pronto Socorro 28 de Agosto, que fica na zona centro-sul da capital. “Atendido na emergência, ele apresentava confusão mental e só se comunicava em crioulo, uma das línguas faladas no Haiti”, diz a nota enviada à reportagem pela Susam.
Conforme a nota, a avaliação dos médicos constatou, por meio de exames de imagem, que Icles havia sofrido uma fratura na tíbia. O paciente foi operado para colocação de um fixador externo (hastes de metal) e ficou internado até o dia 14 de novembro, quando recebeu alta. A Susam diz, ainda, que ele precisa de atendimento ambulatorial, devido à fratura na tíbia e aos pinos que recebeu na perna. Mesmo com a liberação, o haitiano permaneceu no hospital até a manhã do dia 28 de novembro, quando foi removido para a Paróquia.
O padre Valdecir Molinari disse que, no dia 13 de novembro, recebeu um telefonema do Hospital-Pronto Socorro 28 de Agosto. Ele disse que era uma funcionária informando que um haitiano havia sido socorrido e perguntando sobre a possibilidade dele ser abrigado na paróquia. “Eu falei que nós não temos casa nem estrutura para poder receber uma pessoa na situação em que ele está, com as pernas com aparelhos”, conta o padre.
Ele disse que na ocasião não pediu o nome da funcionária que havia ligado para a igreja. “Falei que era impossível para nós, socorrer. Era preciso ver um local onde pudesse atender no poder público!”
Enquanto ficou internado no Hospital 28 de Agosto, Icles recebeu visitas de colegas haitianos que trabalham da fábrica de picolés, um deles é a imigrante, que segundo a Susam recebeu o paciente na paróquia.
Após receberem ligações do hospital, os dois foram até ao hospital na segunda-feira (26 de novembro), mas segundo informações da casa paroquial, eles também disseram não ter condições de abrigar o paciente.
De acordo com a denúncia apresentada ao MPF, a haitiana que foi visitar Icles no Hospital-Pronto Socorro 28 de Agosto chegou a acompanhá-lo em uma ambulância ao Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, mas não conseguiu que ele fosse atendido ou internado ali. “No dia 28 de novembro (quarta-feira)ocorreu o abandono do imigrante incapaz”, diz a denúncia.
Icles Dorvil migrou do Haiti para o Brasil em 2010. E viajou até a fronteira da Colômbia com Tabatinga, cidade amazonense distante a mais 1.100 quilômetros de Manaus. Na capital, chegou em viagem de barco pelo rio Solimões. Em março do ano seguinte, ele conseguiu a autorização de permanência definitiva no país.
O haitiano trabalhou na venda de picolés, organizada pela Pastoral do Migrante, mas segundo informações da Paróquia São Geraldo, com o tempo ele passou a apresentar sintomas de distúrbio mental. “Ele tem o mundo dele em que medo e perigo não tem muito sentido para ele”, explica Rosana Nascimento, coordenadora dessa pastoral.
Em 2012, Icles foi detido e em seguida liberado, por causar tumulto no Aeroporto Internacional de Manaus. Segundo reportagem do Jornal Em Tempo, depois dele passar três dias pedindo passagem a turistas e agências no saguão, ele causou uma confusão. Policiais ouvidos pela reportagem do jornal disseram que a intenção do haitiano era ser extraditado para o Haiti.
Rosana Nascimento conta que a Pastoral do Migrante já acompanha a situação de Icles Dorvil e relata outro caso de abandono do imigrante por funcionários da saúde. “A primeira vez que ele foi abandonado, foi após ser encontrado perambulando pela Secretaria Estadual de Justiça (Sejus) na Ponte Rio Negro. Ele foi deixado aqui na paróquia”, lembra Rosana, sem dizer a data do fato.
Ela contou que, na época, o haitiano foi levado ao hospital Eduardo Ribeiro, referência no atendimento psiquiátrico em Manaus. Após, receber alta, ele voltou para a rua e chegou a ser atendido em uma clínica do bairro Parque Dez, na zona centro sul da cidade.
Segundo informações da Pastoral do Migrante, 16 mil migraram para Manaus desde o início de 2011, após o grande terremoto que atingiu o Haiti em 2010. Mas apenas 3 mil ficaram residindo na capital do Amazonas. O maior fluxo da imigração ocorreu até o ano de 2015, sendo que mais de 30 mil pessoas entraram pela fronteira do Peru e da Bolívia para o estado do Acre. Muitos haitianos se deslocaram para cidades das regiões Sudeste e Sul do país em busca de emprego.
A coordenadora da Pastoral do Migrante, Rosana Nascimento, afirma que o fluxo de haitianos chegando a Manaus é bem menor do que em 2011. A instituição humanitária oferece aos imigrantes aulas de português e cursos de geração de renda. Entre as iniciativas, está a criação de uma fábrica de picolés. O objetivo é complementar a renda das famílias. Atualmente, segundo Rosana, 65 famílias se beneficiam da venda dos picolés.
O lucro da fábrica também é usado em benefício dos migrantes, diz Rosana. O dinheiro mantém uma creche, que atualmente atende a 32 crianças de 3 meses a 4 anos de idade. Com os recursos, também são realizados encontros cívicos e atividades religiosas, com celebrações em espanhol e francês, uma das línguas oficiais do Haiti.
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