Jacieli Pego Ramos Bolonese, em imagem de uma gravidez anterior |
Jacieli Pego Ramos Bolonese, 31, estava grávida de 15 semanas quando sofreu um aborto espontâneo em casa, na aldeia que mora em Aracruz, no Espírito Santo. Indígena da etnia Tupiniquim, ela chegou na última sexta-feira ao hospital com o feto enrolado em uma gaze dentro de uma luva cirúrgica, embalado pela enfermeira-chefe da comunidade, que foi quem a ajudou a chamar a ambulância para percorrer os 23 km até o hospital da cidade.
Jacieli Pego Ramos Bolonese, 31, estava grávida de 15 semanas quando sofreu um aborto espontâneo em casa, na aldeia que mora em Aracruz, no Espírito Santo. Indígena da etnia Tupiniquim, ela chegou na última sexta-feira ao hospital com o feto enrolado em uma gaze dentro de uma luva cirúrgica, embalado pela enfermeira-chefe da comunidade, que foi quem a ajudou a chamar a ambulância para percorrer os 23 km até o hospital da cidade.
No dia seguinte, após a curetagem, ela teve que voltar para casa com o feto na mochila acondicionado em um frasco de soro fisiológico improvisado porque o hospital, segundo Jacieli, informou que ela que teria de dar o destino final ao feto. E, conta, não recebeu mais nenhuma explicação.
Foram dois dias com o feto em casa guardado no armário sem saber o que fazer até o marido decidir publicar um vídeo nas redes para falar da situação. Foi então que uma equipe do Hospital Maternidade São Camilo, onde ela havia sido atendida, apareceu no dia seguinte para recolher o material e informar que seria levado para exames. A instituição afirma que abriu sindicância interna para investigar o fato (leia mais abaixo).
Diagnosticada com Covid-19 e com um sangramento que não cessava, a jornada de Jacieli em busca de ajuda médica começou pelo menos dez dias antes do aborto, entre idas e vindas do hospital que fica a 23 km da aldeia. Um dia antes de abortar, a resposta que recebeu dos médicos é que tudo estava bem com o bebê. "Para o hospital era um simples feto, mas para mim era o Lucas Gabriel." Leia a seguir, o relato dela.
As idas e vindas ao hospital
"Eu sofri um aborto no dia 3 de julho, mas a história se arrasta desde o dia 21 de junho quando começaram os sangramentos e fui para o hospital pela primeira vez. Eu tinha descoberto um dia antes que estava grávida. No hospital, não me deram encaminhamento para avaliar a situação. Então voltei para casa, sangrando e indignada.
Três dias depois, eu continuava com o sangramento e acordei com os sintomas do coronavírus. Consegui o encaminhamento para ser atendida no hospital, com aquele mesmo teste que o médico disse que não aceitariam, mas aceitaram. Fiz os exames e me falaram que o bebê estava bem, com 14 semanas, e que eu tinha um deslocamento de placenta, mas que não precisava me preocupar. Fiz também o teste para o coronavírus e voltei para casa. Continuei sangrando e alguns dias depois chegou o teste positivo para Covid.
Jacieli, em imagem na aldeia durante gravidez anterior. |
Fiquei muito abalada, achando que ia morrer. Na quinta-feira, dia 2, expeli coágulos enormes, do tamanho da palma da minha mão, e senti dores muito fortes. Fui para o hospital de novo, de ambulância, cheguei lá pela manhã. À tarde saiu o resultado da ultrassonografia e me falaram que estava tudo bem e até brincaram dizendo que o bebê estava feliz da vida dentro de mim. Que era só manter o repouso que tudo iria dar certo.
Voltei para casa e no dia seguinte acordei com cólicas tão fortes que pareciam contrações. Eu já tive três bebês de parto normal e parecia que estava parindo de novo. À tarde a bolsa estourou e quando fui tirar minha roupa, o bebezinho já estava na minha peça íntima.
Comecei a chorar e a gritar porque ele se mexia, como se desse os últimos suspiros. Novamente chamei a enfermeira da aldeia, que apareceu com a ambulância. Ela pegou o feto, enrolou em gazes junto com a placenta, guardou dentro de uma luva e fomos para o hospital novamente. Chegamos lá no meio da tarde e fui conduzida para uma sala de isolamento, depois internada e tudo isso com o feto no meu colo, comigo, enrolado na gaze, na luva, do mesmo jeito que a enfermeira mandou.
"Passei a noite com o feto na mesinha da minha cama"
Fiquei deitada na cama esperando a liberação do centro cirúrgico, continuava sangrando e o feto ali comigo. Demorou bastante ainda para fazer a curetagem, saí da cirurgia à noite. Quando voltei para o quarto, o feto ainda estava lá, do mesmo jeito, na gaze, na luva.
Umas onze da noite uma enfermeira entrou no quarto, cortou um frasco de soro fisiológico no banheiro, pegou a placenta, o feto e colocou lá dentro, com formol, sem me explicar nada, mas na minha frente e eu vendo tudo. Só sei que era formol porque estava escrito no vidro. Ela lacrou o frasco com uma fita administrativa e esparadrapo e disse: 'Olha, está aqui.' Até aí, eu achava que era esse mesmo o procedimento. Passei a noite toda lá com o feto na mesinha do lado da minha cama.
No dia seguinte, a médica disse que ia me dar alta até o fim do dia. À tarde, voltou e só falou que eu precisava fazer um exame preventivo em 60 dias e cuidar da anemia porque eu tinha perdido muito sangue. Nisso eu já imaginando que tinha que levar o frasco embora. Quando chegou a técnica de enfermagem para me dar alta eu relatei sobre o feto e foi a primeira vez que tocamos no assunto. O que faço com ele?, perguntei. Ela disse que era para levar comigo e que poderia me oferecer uma sacolinha para o transporte.
Mais tarde chegou outra técnica e perguntei de novo. A resposta foi que eu sabia o que fazer e que não tinha sacola para arrumar para o transporte.
"Então, abri minha mochilinha onde estavam minhas coisas e coloquei o pote. Vim embora para casa com o feto na mochila. Até derramou um pouco de formol nas minhas roupas."
Eu e meu marido não nos alarmamos porque a gente achava que esse era o procedimento correto. Quando tirei da mochila ele só falou que não queria ver e guardei no guarda-roupa, fechadinho. Mas quando foi domingo - um dia depois de voltar para casa do hospital - comecei a pensar no que fazer. O formol ia evaporar e o bebê começaria a se decompor ali dentro.
Jacieli com seus filhos durante banho de rio. |
"Na internet, descobrimos que esse não é o procedimento".
Mais uma vez entrei em contato com a enfermeira da aldeia e perguntei o que fazer. Ela falou que não tinha conhecimento desse procedimento. Perguntou se tinha vindo algum encaminhamento do hospital, mas não me mandaram nada, nem para qual instituição levar, nada, nenhuma orientação.
Então eu e meu marido começamos a pesquisar na internet e percebemos que o hospital deveria ter encaminhado o feto para uma instituição. Ele ficou transtornado porque eu já estava pra cima e para baixo com o feto, estava me apegando. Foi aí que ele gravou o vídeo.
"Quero contar minha história porque é um grito para outras mulheres".
Resolvi contar a minha história porque é um grito. Senti os meus direitos violados por ser mulher, por ser indígena, por ser gestante, por estar com Covid-19. No vídeo que meu marido gravou eu estava muito abalada, mas essa é minha dor e vou falar. Não é só pela perda do meu filho, mas também pelo abalo psicológico de tudo o que passei.
Depois dessa repercussão, o hospital entrou em contato e vieram aqui recolher o feto [de segunda-feira]. Falaram que ia para uma instituição chamada Casa Rosa para ser submetido ao exame histopatológico [análise microscópica que pode definir as causas para o aborto]. Essa era a orientação que deveriam ter tido a sensibilidade de explicar no hospital.
Como num dia me dizem que está tudo bem e no dia seguinte eu sofro um aborto? Quero saber o que aconteceu. Esse é o meu grito para todas as indígenas. Que essa violação nunca mais aconteça com ninguém, somos povos originários, nativos e somos seres humanos. Para o hospital era um simples feto, mas para mim era o Lucas Gabriel.".
Hospital diz que abriu sindicância
Procurado, o Hospital Maternidade São Camilo, de Aracruz (ES), diz que abriu uma sindicância interna para investigar as denúncias feitas por Jacieli. A instituição diz ainda que a orientação do município é "que a família ou o paciente entregue as peças [feto] para o histopatológico na Casa Rosa (que é o serviço municipal responsável pelo envio de materiais)".
Leia o restante da nota do hospital:
"Como o hospital não é responsável pelas análises de biópsias e histopatológicos, atendemos a solicitação do município. Assim que tomamos ciência de vídeos e ligações de lideranças comunitárias, imediatamente enviamos uma equipe do hospital para recolher o feto para reduzir o constrangimento a familiares e ligamos para a secretaria de saúde para apoiar no caso.".
Acerca da entrega do feto em um frasco improvisado, é importante ressaltar que foi um fato isolado e que não é uma prática comum dentro de nosso hospital. Abrimos uma sindicância interna para apurar os fatos, para tratarmos da melhor maneira possível. Sobre essa questão da devolução do feto, de como foi realizado o procedimento, estamos averiguando internamente, por intermédio da sindicância aberta, o ocorrido para termos uma real informação do que ocorreu.".
Questionado posteriormente se o hospital também apura a denúncia de erro médico durante o atendimento, O Hospital Maternidade São Camilo disse que está "apurando todos os fatos ocorridos relacionados ao caso da Jacieli".
Para especialistas, atitude foi desumana
Segundo Raul Canal, presidente da Anadem (Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética), a atitude do hospital se trata "de um ato sem qualquer sentimento humanitário em um momento de dor". Ele afirma que é de responsabilidade do hospital dar o destino adequado ao feto na semana gestacional em que a paciente se encontrava (15). Em casos de fetos com peso a partir da vigésima, com mais de 500 gramas ou mais de 25 centímetros, é necessário fazer o sepultamento. Nos outros casos, o feto pode ser tratado como resíduo de serviço cirúrgico.
No entanto, antes é necessário a realização de exames para identificar a causa do aborto, cujo encaminhamento deve ser feito pelo hospital. O teste positivo para Covid, segundo o médico, deveria ter reforçado a necessidade dessa prática.
"Entregar dentro da garrafa para a mãe, no adjetivo mais brando, é uma atitude desumana."
"São duas as resoluções que regulamentam o tratamento a ser dado em casos de morte fetal ou aborto: A 1779/2005 do Conselho Federal de Medicina e a resolução da Anvisa 306/2004.
A ginecologista e obstetra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Carolina Ambrogini, também avalia a conduta do hospital como desumana. "É um descaso deixar a mulher que abortou ter que resolver isso. Foi descaso, e nada garante que a família vai levar o feto para um laboratório. Além do mais, essa mulher precisava ter sido acolhida do ponto de vista psicológico.".
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