domingo, 26 de abril de 2020

Colegas de técnica de enfermagem que morreu com coronavírus relatam desamparo

Funcionários do Hospital Alberto Cavalcanti, em BH, homenagearam Maria Aparecida de Andrade nesta quinta (23) e comentaram sobre a tensão que têm vivido


Amigos e colegas de trabalho prestaram homenagens à Maria Aparecida
nesta quinta (23), no Hospital Alberto Cavalcanti, um dos locais em que trabalhava

Na linha de frente do combate à pandemia do coronavírus, os profissionais da área da saúde lidam diariamente com grande exposição, o que vem causando fatalidades a esses trabalhadores em todo o mundo. Em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a primeira morte por Covid-19 foi da técnica de enfermagem Maria Aparecida de Andrade, que tinha 53 anos, na última segunda (20). Com restrições aos velórios, as homenagens a ela se estenderam nesta quinta (23).

Amigos e colegas de trabalho de Maria se reuniram na porta do Hospital Alberto Cavalcanti, localizado no bairro Padre Eustáquio, região noroeste de Belo Horizonte. Além de trabalhar na UPA Ressaca, de Contagem, a profissional também era funcionária do hospital. Na ação, colegas levaram balões brancos, mensagens de carinho e dividiram, além de dor e luto por Maria, revolta.

"A Cida era uma funcionária exemplar, carinhosa, meiga, muito companheira. Exercia a profissão com muito carinho. Nossa indignação é com a Fhemig pela falta de cuidados conosco. A Cida tinha uma comorbidade [cardiopata, segundo relatos], ela poderia ter sido afastada. Hoje, temos colegas dessa forma trabalhando lá dentro. Nossos pacientes são oncológicos, sensíveis, e temos que ficar fortes a todo momento para que não fiquem mais fragilizados do que estão. A Fhemig só deu nota dizendo que não reconhecem o óbito da nossa amiga", aponta a técnica de enfermagem Jussara Duarte, de 56 anos, que trabalhava com a Maria Aparecida.

Colegas relatam desamparo e temor ao coronavírus

Na homenagem à companheira, profissionais do Hospital Alberto Cavalcanti relataram inúmeras situações de exposição ao coronavírus e cobraram mais apoio da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Dentre elas, o fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que, segundo relatos, não tem sido disponibilizado da forma como deveria ser. Muitos técnicos de enfermagem afirmaram que têm recebido apenas duas máscaras por turno de trabalho, de 12h, tendo que usar uma a cada 6h.

"Estamos inseguros de ficar aqui. Estamos sem EPIs. Temos direito a duas máscaras [cirúrgicas] por dia. Precisamos da N-95. A Cida esteve com a gente, positivada, e a Fhemig sequer nos procurou pra fazer testes. Temos paciente com suspeita de Covid-19. É muito complicado. A própria equipe entra em discussão porque os médicos querem proteção e estão certos por isso, mas nós também queremos. Eles conseguem, e não conseguimos para nós. Falamos para os médicos fazerem tudo o que tiverem de fazer com o paciente porque nós não vamos entrar sem equipamento de proteção", relata Jussara.

Técnico de enfermagem do Hospital Alberto Cavalcanti e diretor da Associação Sindical dos Trabalhadores em Hospitais (ASTHEMG Sindipros), Marcelino Jonas informou que há conversas e reclamações à Fhemig desde o início da pandemia, mas sem retorno. Ainda, que profissionais no grupo de risco tiveram licença cassada pela direção do hospital e que muitos utilizaram as próprias férias como medida preventiva por não tido licença concedida, sendo comunicados por e-mail da necessidade de retornar à unidade.

"A resposta da Fhemig por enquanto é zero. Eles não tomaram nenhuma providência para resolver o nosso problema e passar a segurança que o pessoal está clamando, para tirar essa onda de medo. Nós estamos desamparados, porque desde o início da preparação para receber a Covid-19 em nosso estado, estamos chamando a atenção para a falta de EPIs. Aqui no hospital, uns dez apresentaram sintomas, mas a fundação não divulga. A gente fica sabendo por acaso quando sentimos a falta do colega. Eles nem nos informam para que a possa tomar medidas precautivas", conta Marcelino.

"Estamos movendo uma ação criminal contra o Estado, contra a Fhemig e dirigentes que estão desrespeitando os trabalhadores. Quando ocorre uma fatalidade como essa, é tarde demais", completa. Os relatos são vários e dialogam entre si.

"Ontem, recebi o plantão com um paciente que foi entubado. Foi uma briga para conseguir o EPI e entubá-lo. Os técnicos estavam com seus uniformes trazidos de casa. Manipulei o paciente com uma máscara cirúrgica que trouxe de casa porque na nossa farmácia não tinha. Fizemos os devidos cuidados e só depois é que o supervisor foi liberar uma N-95 para mim. Não temos só Covid. Nossos pacientes são oncológicos. Manipulamos um aqui e vamos manipular outro ali com a mesma máscara e a mesma roupa", conta a técnica de enfermagem Carmosina de Oliveira.

"A gente vem pro serviço sem saber o que pode acontecer. Está muito pesado para nós. A gente vem pra brigar pelo paciente. Já me disseram que aqui não é referência, mas quando o paciente passa mal ele vai em qualquer lugar e temos que atender", conta a técnica de enfermagem Cleuza Cândida.

"Lá dentro, tem um paciente com suspeita. Não demos banho ainda, não pudemos participar dos procedimentos [por estar sem EPI]. A medicação está sendo feita e a assistência respiratória também porque nossa fisioterapeuta está lá, mas todos corremos risco. Se a gente não sair com coronavírus, vamos sair com problema psiquiátrico. Tenho colega que passa a semana toda no hospital porque tem filho pequeno em casa. Isso é vida?", completa Cleuza.

A reportagem consultou a Fhemig e levou todas as situações relatadas no Hospital Alberto Cavalcanti.

Nota da Fhemig ao jornal O Tempo

"A servidora Maria Aparecida Andrade (que também atuava na UPA Ressaca) apresentou os primeiros sintomas no dia 5 de abril e foi imediatamente afastada das atividades no Hospital Alberto Cavalcanti, orientada a permanecer em quarentena e a buscar atendimento médico.

Os servidores que apresentam sintomas são imediatamente afastados, com a possibilidade de exame no hospital de referência, no caso, o Hospital Eduardo de Menezes, seguindo as orientações do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde - CIEVS e do Comitê de Enfrentamento à Covid-19. No caso de grupos de risco, a orientação técnica é de que esses servidores devem se autodeclarar para serem direcionados para o teletrabalho ou remanejados dentro da própria unidade (ou outra da rede) para exercer funções que não tem contato com pacientes. 

Esclarecemos ainda que o Hospital Alberto Cavalcanti não é referenciado para atendimento aos casos de covid-19 e não possui porta aberta, somente atendimentos eletivos. Também esclarecemos que, após apuração na unidade, constatamos que a servidora não possuía histórico de cardiopatia ou hipertensão, o que foi verificado nos exames periódicos anuais realizados.

Os exames para covid-19  são realizados apenas em servidores sintomáticos, na unidade de referência - Hospital Eduardo de Menezes. Se constatada a suspeita, o servidor é imediatamente afastado para a quarentena, antes mesmo do resultado do exame. Não são realizados exames para pessoas assintomáticas e não existe exame preventivo para covid-19. A Fhemig cumpre o que está previsto nos protocolos clínicos e nas orientações técnicas do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais.

Todas as unidades da Rede Fhemig estão abastecidas com equipamentos de proteção individual e seguem as orientações das suas diretorias, amparadas pelo contingenciamento necessário estabelecido nos protocolos clínicos e nas portarias das instâncias estaduais e federais sobre a epidemia do COVID-19.

Os EPI’s estão sendo fornecidos, especialmente as máscaras, de forma responsável aos profissionais cujo seu uso no atendimento é indispensável. Sabemos que esses itens se encontram em falta no mercado e é necessário que haja um contingenciamento para evitar extravios e o uso indiscriminado, o que acarretará, realmente, em riscos para servidores e pacientes.

No HAC estão sendo fornecidos não somente os EPI's necessários e adequados para prevenção à covid-19, como também foram doadas máscaras de acrílico/ acetato que são usadas por cima da máscara cirúrgica.

Os números de afastamentos e casos suspeitos/confirmados de covid-19 estão sendo atualizados até amanhã [24 de abril]. No último levantamento, no dia 16, havia 6 casos no Hospital Alberto Cavalcanti, sendo um deles a Maria Aparecida e, os outros cinco, eram servidores que também trabalhavam no Hospital Risoleta Neves e, portanto se encaixavam nos exames falsos positivos detectados pelas autoridades sanitárias - e que serão revistos."

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