Além do vírus, médicos, enfermeiros e demais trabalhadores do sistema de saúde enfrentam outras dificuldades, como ficar longe de filhos e risco de contaminação
Nayara Silveira fez 33 anos na última quinta-feira. O plano era comemorar com toda a família e amigos em um restaurante, mas nem um abraço ela pôde receber. Para a enfermeira, que coordena o setor de assistência de gestão de leitos do Hospital São Lucas, onde estão pacientes com Covid-19, o maior medo é levar o vírus para casa. Também é o principal receio do cardiologista Marcell Temponi, 35, da infectologista Sílvia Hees, 50, e da maioria dos profissionais de saúde. Esta é a maior preocupação, mas não é a única: saudade, cansaço, culpa e preconceito estão por trás das histórias de quem está na linha de frente no combate à pandemia.
“No dia do meu aniversário, assim que eu acordei, meus pais vieram para me abraçar, e eu tive que dizer ‘não’. Isso dói muito. Eu não tenho nenhum medo de pegar a doença, porque me sinto segura no hospital, mas tenho pavor de transmitir para minha família, principalmente porque meus pais e meu sobrinho são do grupo de risco”, afirma Nayara. Mesmo tomando todos os cuidados ao sair do hospital e ao chegar em casa, a enfermeira não arrisca e passa a maior parte do tempo sozinha, no quarto. “Minha mãe já me falou que não liga se adoecer, mas não quer ficar sem conversar comigo. Eu fico culpada em negar esse afeto, mas é para o bem deles”, conta Nayara.
Chefe de clínica médica e coordenador do plantão geral do hospital São Francisco, referência em coronavírus em Belo Horizonte, Marcell Temponi não vê a mulher, os filhos e os pais há um mês. Eles estão em uma fazenda, no interior de Minas Gerais.
“No começo, eu cheguei a fazer um teste para ter certeza de que eu não tinha a doença. Deu negativo, e fui visitá-los. Mas não tenho mais coragem de fazer isso, porque até os testes podem dar um falso-negativo. É uma decisão muito difícil, mas é para protegê-los”, conta. Entre um paciente e outro, Temponi demora, às vezes, 40 minutos para fazer toda a paramentação. O uso ininterrupto da máscara provoca feridas no rosto. Se a pressão desse Equipamento de Proteção Individual (EPI) é grande, a psicológica é ainda maior.
“Quando você entra em um hospital que é referência para Covid, você já entra preocupado. Eu penso o tempo todo na probabilidade de contrair a doença. A cada notícia que ouvimos de um colega que adoeceu no Brasil e até no exterior, dá um aperto no peito. Não temos mais momentos de relaxamento com os colegas, confraternizando. Até as reuniões são a distância, por videoconferência. A falta disso tudo dá uma sensação de que estamos trabalhando mais sozinhos”, relata Temponi.
Entre todas as dificuldades, que ainda incluem a incerteza sobre a doença, o médico afirma que o pior de tudo é a saudade. Um sentimento tão avassalador que já o fez pensar em largar tudo e ir ficar com a família. “Meus filhos são gêmeos e têm 2 anos. É uma idade que cada dia aprendem algo novo, falam uma palavra nova, fazem uma brincadeira diferente. Eu sinto que estou perdendo isso, e é algo que nunca vou recuperar. Já pensei em desistir, mas meu dever é ficar aqui, no enfrentamento. São dias duros, sofridos, mas penso que esse distanciamento é para proteger minha família, penso que depois vamos compensar e, então, fico mais tranquilo. Não posso abandonar minha turma aqui”, ressalta o coordenador do plantão do hospital São Francisco.
Quando ele sai do hospital, o medo vai junto e ganha outros companheiros, como o preconceito. “Outro dia, fui abastecer. Estava de jaleco e máscara. Quando abri a janela, o frentista levou um susto, saiu correndo e pediu para o colega dele me atender, alegando que estava sem máscara. O rapaz perguntou de longe o que eu queria, e eu até pedi um valor redondo, para não ele nem ter que me dar troco. Eu entendo que, nesse momento, é inevitável que as pessoas que sabem que a gente é da área da saúde fiquem receosas. Eu confesso que agora eu sinto na pele o peso do olhar que sentem as pessoas que sofrem qualquer tipo de preconceito”, desabafa Temponi.
Para dar suporte à equipe, que lida com toda a pressão que cerca o enfrentamento do coronavírus, o hospital São Francisco reorganizou o departamento de psicologia para ampliar o atendimento aos colaboradores. “É um momento muito difícil porque todo mundo está angustiado, mas cada um tem a sua história. Tem gente que precisou sair de casa para não expor a família, tem gente que gostaria de fazer isso, mas não tem outro lugar para morar, tem preconceito, sentimento de rejeição. Mas, em todos os meus contatos, percebo que a maior preocupação é realmente contaminar a família. Nessa hora, não tem muito o que dizer, porque não posso falar para a pessoa não ter medo porque ele é real. Então, o melhor a se fazer é ouvir, deixar que esses profissionais da linha de frente externem o que estão sentindo”, explica a coordenadora da psicologia do hospital, Graciele Simões.
A especialista conta que também tem seus medos e preocupações, como o filho de 5 anos, que tem passado os dias com os avós, também por medida de proteção. No entanto, ela afirma que o jeito é colocar a angústia no bolso, para levar acolhimento. “É tudo muito novo, mas é novo para todos. Estamos passando por isso juntos, e o tempo é de construção coletiva”, afirma Graciele.
Infectologista tem que manter distância de um metro dos filhos
A simples rotina de chegar em casa virou de ponta-cabeça. Acostumada a voltar do trabalho, abrir a porta e imediatamente abraçar os filhos, a infectologista Sílvia Hees de Carvalho, 50, tem que conviver com eles a no mínimo um metro de distância, mesmo seguindo um rigoroso ritual de desinfecção.
“Eu e o meu marido somos médicos e fizemos uma ‘área suja’ na área de serviço, onde nossos filhos estão proibidos de ir. Deixamos o sapato na porta, separamos todas as nossas roupas, tomamos banho e só depois entramos. Ainda assim, mesmo depois de fazer toda a desparamentação, não abraço meus filhos. Sempre gostei de ficar agarradinha com eles, e essa mudança não é fácil, mas é o que a gente precisa fazer”, relata Sílvia, que tem 27 anos de experiência.
No hospital, a rotina também está diferente. O processo de higienização, que sempre existiu, está ainda mais minucioso.
“O tempo que eu gasto para atender cada paciente está maior. A cada consulta, passo álcool no estetoscópio. Tenho a minha própria face shield (protetor facial) e máscara N95, mas nunca as levo para dentro de casa, elas ficam no carro e meus filhos nem entram no veículo”, explica.
Com a atenção redobrada no trabalho e com a família, Sílvia ressalta que o ambiente fica inevitavelmente mais tenso. “É muito angustiante lidar com uma doença nova, com potencial de levar a casos graves. E isso impacta negativamente a rotina dos médicos, exigindo cuidados excessivos. Nesse momento, o que nos torna mais apreensivos é estarmos diante de uma pandemia, em que se conhece muito pouco do vírus, que sofreu mutação, e para o qual não existe ainda nem vacina, nem um tratamento comprovadamente confiável”, ressalta a infectologista. (QA)
Trabalhadores exigem testes após morte da enfermeira Cida
“Se a Cida tivesse sido testada, ela poderia estar viva. O hospital sabia que outros trabalhadores tinham testado positivo, e ela teve contato com eles”, desabafa a técnica de enfermagem Jussara Duarte, 56, que trabalhava com a enfermeira Maria Aparecida Andrade, 53, no hospital Alberto Cavalcanti. Cida, que morreu com Covid-19, também trabalhava na UPA Ressaca, em Contagem. Agora, a Associação Sindical dos Trabalhadores em Hospitais (Asthemg Sindipros) luta para que todos os profissionais que tenham tido contato com algum colega com coronavírus sejam testados.
“Já havíamos pedido para realizar testes preventivos em todos os profissionais que tivessem tido contato com pacientes ou colegas infectados pela Covid-19, mas a Fhemig se recusou. Então, nós entramos com uma representação junto ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais, pedindo investigação da postura de colocar em risco esses profissionais. Esperamos que essa atitude seja criminalizada, em virtude da negligência de expor os trabalhadores, os familiares e os pacientes”, afirma o presidente da Ashtemg, Carlos Augusto Martins.
Jussara conta que Cida começou a apresentar sintomas logo depois da notícia de que 50 profissionais do Risoleta Neves tinham testado positivo. “Alguns desses profissionais também trabalham no Alberto Cavalcanti e tiveram contato com a Cida e com muitos outros profissionais. Depois, uma contraprova deu negativo para essas pessoas, mas, antes de saber disso, o certo era o hospital ter rastreado todos que tiveram contato com eles e testado todo mundo, pois eles circularam no CTI, nos corredores, no refeitório. É o que tem que ser feito agora, como todos que tiveram contato com a Cida”, ressalta Jussara.
A Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) afirma que os exames para Covid-19 são realizados apenas nos servidores sintomáticos, no Hospital Eduardo de Menezes. “Se constatada a suspeita, o servidor é imediatamente afastado para quarentena, antes mesmo do resultado”, diz a fundação. Ainda de acordo com a fundação, assim que um caso é notificado, a Vigilância Sanitária do município e o Comitê de Enfrentamento da Covid-19 tomam as medidas necessárias para abordar familiares e pessoas próximas.
Na linha de frente, profissionais também são contaminados
Uma semana depois de ter contato com um paciente que morreu com suspeita de coronavírus, a enfermeira Sara Said, 34, começou a apresentar sintomas de gripe. Durante 14 dias, ela ficou isolada no quarto, sem contato com a família. “O hospital onde eu trabalho prestou todo o atendimento, fez o teste e me afastou. O mais difícil, sem dúvida nenhuma, foi ficar longe do meu filho de 7 anos e negar um simples abraço”, conta Sara.
O resultado do paciente deu negativo. Depois, o exame dela também indicou que não era Covid-19. Mas, enquanto esperava, os dias foram tensos. “A rotina mudou totalmente no hospital e também no convívio com minha família, pois, mesmo tomando cuidados excessivos, eu tenho medo de ser um transportador do vírus. Tudo isso aumenta muito a pressão, traz sentimentos negativos para todo mundo, como solidão, tristeza e depressão”, observa.
Sara trabalha no Hospital Santa Rosália, em Teófilo Otoni, região do Vale do Mucuri. Atualmente, a unidade está com cerca de 30 profissionais afastados, e os motivos vão desde sintomas gripais a estresse ocupacional.
“Um terço desses afastamentos está relacionado a causas psiquiátricas, como ansiedade e síndrome do pânico”, explica o diretor executivo do hospital, Leonardo Seixas.
Segundo Seixas, a unidade chegou a ter 50 colaboradores afastados, incluindo os profissionais que são do grupo de risco. Para amenizar a pressão de conviver todos os dias com pacientes suspeitos, o Santa Rosália reforçou o atendimento psicológico. “Nossos psicólogos estão na retaguarda, dando suporte para nossos profissionais”, afirma Seixas.
Na avaliação de Sara, essa ajuda é fundamental. “Desde que a pandemia começou, eu sinto olhares desconfiados das pessoas ao me verem de branco. É natural que fiquem mais apreensivas e queiram manter distância, mas eu digo que hoje nós convivemos com dois tipos de vírus: a Covid-19 e o medo”, desabafa Sara. (QA)
Servidores do grupo de risco lutam por afastamento
O afastamento de profissionais da saúde acima de 60 anos ou com alguma comorbidade também faz parte da batalha da categoria. Desde o início da pandemia, 30 trabalhadores da rede pública de saúde de Minas Gerais procuraram a Associação Sindical dos Trabalhadores em Hospitais (Asthemg/Sindipros) para pedir esse licenciamento temporário. Mas ainda não conseguiram.
"Fizemos um requerimento pleiteando a relação dos trabalhadores que já solicitaram o afastamento por estarem no grupo de risco ou por terem suspeita de contaminação. Também solicitamos a quantidade e o tipo de EPI fornecido. Como não tivemos retorno, interpusemos um mandado de segurança para ter acesso a essas informações”, afirma o presidente da Asthemg/Sindipros, Carlos Augusto Martins. Eles ainda aguardam resposta.
Por meio de nota, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) informa que, até o dia 16 de abril , 16 servidores tiveram resultados positivos para coronavírus, e 11 foram registrados como casos suspeitos. Outros 95 foram afastados por apresentarem sintomas gripais. O Grupo Santa Casa (Santa Casa e Hospital São Lucas) criou uma comissão interna de enfrentamento do coronavírus, com representantes do corpo médico, dos enfermeiros, das áreas de compras, logística e gestão. Segundo a superintendente Mara Moura, que comanda esse comitê de guerra, a principal arma de combate à Covid-19 é a informação.
Desde o primeiro momento, ficou evidente que a grande dificuldade era a comunicação, já que é algo muito novo. Então, resolvemos criar a comissão para organizar e passar as informações para os funcionários”, ressalta Mara. Entre as medidas estão boletins diários de casos confirmados e suspeitos, atualização das normas e protocolos e dados sobre suprimentos, como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). (QA)
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