Foi o crescimento repentino do número de casos de Covid-19 registados no concelho do Porto que fez soar o alarme. No domingo, o relatório da DGS registava 417 casos naquele município. Na segunda-feira, o número disparou para 941 — mais do dobro do dia anterior. Esta terça-feira, porém, o número voltou a cair, para 462.
O problema? Uma duplicação de dados devido à multiplicação de fontes de informação.
Para
o resolver, a Direção-Geral da Saúde decidiu que, a partir de agora,
apenas vão ser considerados os dados reportados através do Sistema
Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) — o sistema informático
onde os médicos devem registar todos os casos — confirmados ou suspeitos
— de doenças infecciosas. Mas esta decisão tem o potencial de pôr ainda mais em causa a fiabilidade dos dados, de acordo com infecciologistas com conhecimento do funcionamento do sistema ouvidos pelo Observador.
Na conferência de imprensa diária desta terça-feira, o sub-diretor-geral da Saúde, Diogo Cruz, explicou o que se tinha passado na segunda-feira e confirmou a revelação que havia sido feita, horas antes, pelo Jornal de Notícias: tinha havido uma duplicação da contagem dos casos de Covid-19 no concelho do Porto, resultado da soma indevida dos dados reportados diretamente pelos médicos através do SINAVE e das informações comunicadas à DGS a nível regional pela Administração Regional da Saúde (ARS) do Norte.
“Houve aqui uma tentativa de dar o maior número de números possível e
houve duplicação de valores no número de ontem, porque houve uma
confluência entre os dados reportados da região e os dados reportados
via SINAVE”, admitiu Diogo Cruz, para logo acrescentar que “o boletim, a partir de hoje, vai ter apenas dados do SINAVE, para não haver duplicações“.
Isto
significa, como admitiu o próprio responsável, que dificilmente
existirão, daqui para a frente, dados completos sobre a distribuição
geográfica dos casos de Covid-19 em Portugal. “Vamos ter, eventualmente, alguns missings [dados em falta] que não estejam no SINAVE“, assumiu Diogo Cruz, sublinhando que o número de casos com informação completa sobre o local de residência e outros detalhes deverá rondar os 70% do número total de casos confirmados.
Isto acontece porque o SINAVE é um sistema de notificação
ativado pelos médicos e nele fica, automaticamente, registada a região
onde é feita essa notificação. “Tem sempre o sítio onde foi notificado pelo médico”, mas “pode não ter exatamente onde mora” — sobretudo nas “grandes zonas urbanas”, explicou o sub-diretor-geral da Saúde.
Ao Observador, a DGS esclareceu que são os dados por concelho que voltaram “a
ter por base os registos da plataforma SINAVE, deixando de depender da
informação reportada pelas Administrações Regionais de Saúde” —
mesmo que isto queira dizer que os dados divulgados pela DGS não
acompanhem as informações reportadas pelas autarquias nem sejam
relativos ao número total de casos.
“Isto significa que estão agora [nesta terça-feira] disponíveis 78% dos dados por concelho,
que são os que foram registados na plataforma SINAVE. Os restantes
serão colocados nas atualizações subsequentes, quando for feita essa
notificação”, detalha a DGS, assegurando que “estas mudanças em nada
alteram os dados nacionais, que estão na primeira página do boletim e
que estão e têm estado corretos”.
Reportar um caso é como preencher o IRS. Mas pior
É preciso recuar onze anos para encontrar as origens do SINAVE. Em 2009, com Ana Jorge como ministra da Saúde, o Governo decidiu criar um “sistema
de vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco,
recolhe, atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças
transmissíveis e outros riscos em saúde pública“.
Mais tarde, foi aprovada a lista das doenças transmissíveis de notificação obrigatória.
Trata-se de uma lista de mais de meia centena de doenças cuja eventual
disseminação as autoridades de saúde querem ter permanentemente
controlada. Isto implica que todos os médicos portugueses que se
deparem com um caso suspeito de qualquer uma destas doenças têm a
obrigação de reportar esta suspeita através do SINAVE.
Ao sistema têm acesso os médicos e os laboratórios. É a estes
segundos que cabe validar ou não validar cada um dos casos consoante o
resultado dos testes complementares que venham a ser feitos depois da
identificação do caso suspeito.
Entre as doenças que constam da
lista incluem-se o botulismo, a brucelose, a cólera, a dengue, a
difteria, a lepra, a doença dos legionários, o ébola, as hepatites A, B,
C e E, a infeção pelo vírus zika, a malária, a peste, a raiva, a
tuberculose, a varíola, e infeções sexualmente transmissíveis como a
sida, a sífilis ou a gonorreia. A esta lista a DGS juntou recentemente a
Covid-19.
Na teoria, isto quer dizer que todos os casos suspeitos de Covid-19 têm de ser reportados no SINAVE e posteriormente validados ou não como confirmados,
dependendo de se o teste dá positivo ou negativo. E é a partir dos
dados do SINAVE que a DGS espera compilar as estatísticas diárias sobre a
infeção pelo coronavírus.
Na prática, contudo, este sistema pode vir a revelar-se ineficaz na tarefa de recolher todos os dados sobre a pandemia.
Isto porque, como afirmam infecciologistas ouvidos pelo Observador, há,
no mínimo, muito espaço para melhorar a forma como os casos são
reportados através do sistema.
Jaime Nina, especialista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical e
médico infecciologista do hospital Egas Moniz, em Lisboa, classifica o
SINAVE como “um pesadelo burocrático” e teme as consequências de colocar
toda a estatística da Covid-19 nas mãos do sistema. “Colocar tudo dependente do SINAVE significa que vamos deixar de ter dados“, vaticina.
Segundo explica Jaime Nina, habituado a trabalhar com o SINAVE para reportar casos de várias doenças contagiosas, “está tudo dependente de as coisas informáticas funcionarem perfeitamente, e não costumam funcionar nos hospitais“.
“Desde que começou a informatização do meu hospital, não houve um único
dia em que funcionasse tudo. Quando funcionam as receitas, não
funcionam as análises, quando funcionam as análises, não funciona a o
SINAVE”, exemplifica o médico.
O infecciologista faz uma comparação: “É como quando preenchemos o IRS. Mas o IRS é mais rápido, deve ter 100 vezes a capacidade da rede do Ministério da Saúde. E mesmo que haja um erro, aquilo diz-nos qual é o erro. O SINAVE bloqueia e, se houver um erro, não sabemos qual é”.
Registar apenas os positivos para não perder tempo
No hospital de São João, no Porto, que está desde o primeiro dia na linha da frente no combate à Covid-19, os médicos já desistiram de reportar os casos suspeitos no SINAVE, diz ao Observador a médica infecciologista Margarida Tavares.
"É como quando preenchemos o IRS. Mas o IRS é mais
rápido, deve ter 100 vezes a capacidade da rede do Ministério da Saúde"
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