sábado, 29 de setembro de 2018

Cirurgias e até químio foram feitas sem comprovar doença



Auditoria realizada pela Secretaria de Estado de Saúde (SES) no setor de oncologia do Hospital Regional de Cáceres Dr. Antônio Fontes aponta superfaturmento dos serviços entre 2012 e 2017 e ainda atividades que o secretário de Estado Luiz Soares avalia como criminosas. Ele estima que o prejuízo aos cofres públicos seja de aproximadamente R$ 78 milhões ao longo dos 5 anos.
 
Para chegar ao número, Soares levou em consideração a economia de R$ 1,3 milhão mensais feita pelo Estado após assumir a gestão da unidade, em outubro de 2017. 
 
Segundo o secretário, o resultado da auditoria indica duas possibilidades. Houve execução de procedimentos desnecessários em pacientes para alcançar mais produção e assim mais rendimentos ou o registro de atividades “fantasmas”, que existiram apenas no papel. 
 
O relatório, baseado em dados coletados dos prontuários, dos controles de produção e das notas emitidas, constatou que pacientes fizeram cirurgias de câncer e procedimentos oncológicos sem sequer ter nos registros os exames que comprovam a existência ou suspeita da doença. O fato fere as normas do Sistema Único de Saúde (SUS), além de apontar indícios de um esquema que tinha como único objetivo aumentar os rendimentos da Associação Congregação de Santa Catarina, Organização Social de Saúde que administrava a unidade, e da Empresa M.M.S Serviços de Saúde Ltda-EPP, terceirizada para atender os serviços oncológicos. 
 
Soares relata que quando a OSS entregou o hospital à administração do governo, um grupo de transição foi até unidade fazer um relatório preliminar e ficou aterrorizado com o que encontrou no setor oncológico. “Havia na lista paciente que tinha feito 5 cirurgias, um absurdo. O trabalho deles deu início a uma pesquisa minuciosa, que teve todos os resultados encaminhados para os órgãos de fiscalização e controle, como Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Conselho Regional de Medicina e Assembleia Legislativa, onde funciona a Comissão Parlamentar de Inquérito da Saúde”. 
 
Agora, o secretário diz que o Estado espera que os Ministérios Públicos assumam as questões criminais, já que tanto a Controladoria Geral do Estado como a Procuradoria Geral do Estado também estão agindo no sentido de reaver o dinheiro. 
 
O relatório 
 
O documento levanta suspeitas graves, como a de que pessoas foram para o centro cirúrgico ou passaram por quimioterapia sem necessidade. Há também a alternativa de os procedimentos registrados serem “fake” ou não realizados.
 
Foi constatada a falta de alinhamentos entre as informações administrativas e financeiras, sendo que em todos os casos, os números sempre favoreciam o recebimento da empresa administradora. 
 
Ao analisar os prontuários, os auditores identificaram que entre os anos de 2012 e 2017, 890 pessoas passaram por cirurgia oncológica sem ter comprovado por meio de laudo que a doença era câncer. Segundo o relatório, os auditores pesquisaram 2.199 prontuários de pacientes oncológicos, dos quais apenas 1.132 tinham entre os documentos o exame antomapatológico, que aponta a existência ou não da doença. Vale lembrar que a presença do laudo deveria ser uma rotina em todos os procedimentos. 
 
Na análise dos auditores, os procedimentos cirúrgicos também não ofereciam o desconto previsto em contrato. Isto era exigido porque a equipe médica usava o espaço físico, medicamentos e parte do corpo técnico do Estado. Então, estabeleceu-se uma porcentagem de abatimento. 
 
Porém, em todos os documentos, a empresa reconhecia apenas a presença de médicos na sala para cobrar o valor cheio. Como se não tivesse enfermeiras, remédios ou qualquer tipo de equipamento do Estado. 
 
A incoerência dos números foi identificada ainda na quimioterapia e ‘Day Clinics’, procedimentos de apenas um dia. A discordância entre as notas fiscais, relatório de produção e registro de pacientes é grotesca. 
 
Enquanto foram emitidas 42.121 notas fiscais, o sistema de gestão do hospital registrou 36.481 e os prontuários apenas 12.707, sendo que parte destes prontuários nem tinham um laudo que comprovasse a indicação para doença. 
 
Os auditores colocaram também no rol de ações em desacordo com o contrato as consultas extras para pacientes em quimioterapia. Conforme o acordo firmado com a SES, cada sessão já contemplava uma visita médica, sendo assim, a consulta inclusa. 
 
Ainda no que diz respeito às consultas, existem outros pontos que chamam a atenção como a cobrança de sessão de quimioterapia quando o tratamento é por comprimidos e não por via intravenosa. 
 
O contrato com a OSS estabelecia que este tratamento não poderia ser cobrado, uma vez que o paciente vai ao hospital apenas pegar o medicamento e volta para casa. Desta forma, não há necessidade nem da presença do médico ou de qualquer servidor do corpo clínico. 
 
Constatou-se ainda que não existia nenhum controle dos plantões médicos. Os auditores não encontraram as escalas diária e nem os plantões, muito menos uma comprovação da frequência do profissional entre 7h e 17h. Tudo isto acompanhado do fato da unidade sequer estar credenciada para serviços de oncologia nos primeiros anos de funcionamento.
 
Responsabilização
 
O Ministério Público do Estado em Cáceres já instaurou um inquérito civil para apurar as supostas irregularidades nos serviços de oncologia prestados ao Hospital Regional pela empresa Serviços Médicos, apontadas em relatório de auditoria. O promotor de Justiça substituto, Augusto Lopes Santos, ainda afirmou que a promotoria avalia as informações para possível propositura de ação civil pública de improbidade administrativa. 
 
O prazo do MPE, para concluir o inquérito civil, já instaurado, é longo. Um ano, prorrogável pelo mesmo prazo e quantas vezes forem necessárias, por decisão fundamentada de seu presidente, à vista da imprescindibilidade da realização ou conclusão de diligências. 
 
Já o Ministério Público Federal informou, por meio de nota, que o ofício com o relatório da auditoria realizada pela SES Saúde junto ao Hospital Regional de Cáceres foi protocolado na sede da Procuradoria da República em Mato Grosso, em Cuiabá, na segunda quinzena de agosto. Como o MPF possui uma unidade em Cáceres, o processo foi remetido para lá e no dia 21 de agosto, ganhou o status de “notícia de fato”, que é o primeiro passo da investigação. 
 
De acordo com a nota, o MPF irá apurar o que consta no relatório para, a partir de então, definir se continua ou não a investigação. O prazo para a análise da notícia de fato é de 60 dias a contar do dia 27 de agosto. 
 
Investigação arquivada 
 
O MPE em Cáceres informou que em 2014 foi instaurado inquérito civil para apurar irregularidades no uso indevido da cota de exames ambulatoriais do Sistema Único de Saúde pela Organização Congregação de Santa Catarina, também no Hospital Regional. Entretanto, o promotor Augusto Santos informou que “em virtude da ausência de elementos jurídicos autorizadores da adoção de outras medidas extrajudiciais ou a propositura de demanda metaindividual, foi promovido o arquivamento dos presentes autos e a promoção à apreciação do E. Conselho Superior do Ministério de Mato Grosso, que procedeu a homologação do arquivamento promovido em primeiro grau”.   
 
Avaliação médica   
 
Presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM), Maria de Fátima de Carvalho explica que a entidade já solicitou os prontuários médicos do Hospital Regional de Cáceres, nos quais foram encontradas as irregularidades, para iniciar o processo de investigação de questões ligadas à ética médica. 
 
Afirma que ela e os conselheiros já leram todo relatório da auditoria, mas os dados expressos não oferecem subsídios suficientes para um processo, no qual deve-se ter provas para qualquer que seja a decisão. 
 
Quanto às irregularidades, a presidente defende que é uma tragédia anunciada, uma vez que desde o início do processo de transferência das unidades para as OSSs, vários questionamentos foram realizados pela classe médica. Mesmo assim, elas se proliferam. 
 
Maria de Fátima esclarece que neste tipo de modalidade, os serviços médicos acabam não só terceirizados como até mesmo quarteirizados, como aconteceu no Hospital de Cáceres. Lá, a empresa responsável por gerir contratou outra empresa para assumir a oncologia. 
 
“Entendo que o governo não tenha condições de manter a gestão direta em todas as unidades de saúde, mas precisa melhorar o controle e as avaliações. E elas devem ser tanto quantitativas como qualitativas, para que problemas como este não se repitam”. 
 
O hospital 
 
O Hospital Regional de Cáceres foi inaugurado em 2001 e tornou-se referência de toda a região Sudoeste de Mato Grosso. Atualmente, atende a demanda de 24 municípios, que juntos têm mais de 400 mil habitantes. 
 
Entre as especialidades oferecidas estão ortopedia, pediatria, Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e clínica cirúrgica. Conforme informações da SES, a unidade conta com cerca de 600 funcionários, entre servidores e contratados no corpo técnico.   
 
Gestão dos regionais   
 
O governo do Estado está tentando repassar a gestão do Hospital Regional de Cáceres para o Consórcio Intermunicipal de Saúde, que envolve todas as prefeituras da região, mas até agora não houve acordo. A modalidade também é avaliada para atender os hospitais de Alta Floresta, Colíder e Sorriso, atualmente administrados pelo Estado. 
 
Segundo o secretário de Saúde, Luiz Soares, cada região tem sua particularidade e é preciso que todos os municípios atendidos se unam para que a pactuação seja viável. “Existem ambientes políticos diferenciados e como estamos em ano eleitoral, as coisas estão indefinidas”. 
 
Barra do Bugres, Água Boa e Peixoto de Azevedo têm os hospitais regionais geridos por consórcios de saúde e o trabalho está dando certo, avalia o secretário. 
 
Mesmo com a experiência ruim que a administração estadual teve com as Organizações Sociais de Saúde(OSS), Soares não descarta a possibilidade de manter em algumas unidades este tipo de contrato por causa da dificuldade em se articular os consórcios. 
 
O secretário frisa que a contratação da primeira OSS foi no governo Silval Barbosa, quando o secretário de Saúera o ex-parlamentar Pedro Henry. 
 
Ele complementa que das unidades entregues às OSSs, todas foram retomadas pela administração direta, sendo que duas voltaram a ser administradas pelo Instituto Gerir Saúde. São os hospitais de Rondonópolis e Sinop. 
 
Segundo Soares, a empresa administra várias unidades, como o Pronto-Socorro de Goiás, que tem a capacidade 4 vezes maior que o de Cuiabá. “Não posso dizer que a unidade atende com excelência, mas certamente é satisfatória para o setor público”. 
 
Os contratos são temporários e nos próximos meses o governo fará chamamento público para a contratação definitiva.
 
Outro lado
 
A reportagem tentou localizar representantes da empresa MMS Serviços de Saúde, mas não conseguiu contato telefônico.
 
A Associação Congregação de Santa Catarina informou, por meio de nota, que está colaborando e apresentando seu posicionamento à Secretaria de Estado de Saúde com objetivo que sejam apurados e esclarecidos todos os pontos levantados pela auditoria realizada no Hospital Regional de Cáceres. A Associação diz ainda que não comenta casos sob investigação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário