Trio foi condenado a mais de 17 anos de prisão em julgamento em Taubaté
Os três
médicos acusados de matar quatro pacientes em um hospital de Taubaté,
no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, em 1986, foram condenados a
17 anos e 6 meses de prisão na noite desta quinta-feira (20). O juiz
Marco Montemor, porém, permitiu que eles recorram da sentença em
liberdade.
O destino do trio foi decidido por um júri
composto por quatro mulheres e três homens após quatro dias de
julgamento, realizado do Fórum Central da cidade. Os médicos foram
responsabilizados pelos quatro homicídios.
Um dos réus, o urologista Rui Noronha Sacramento,
60 anos, passou mal duas vezes durante a leitura da sentença e teve de
ser amparado por parentes para sair do fórum.
Segundo a Promotoria, além de Sacramento, o
nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas e o neurocirurgião
Mariano Fiore Júnior, de 62 anos, retiraram rins irregularmente das
vítimas como parte de um suposto esquema de tráfico de órgãos humanos.
“Muito tempo já passou, mas a justiça foi feita. O
próprio povo de Taubaté que fez o julgamento e está de parabéns por
não ter esquecido, não ter deixado o tempo apagar esse fato tão sério,
tão grave, que marcou a história da cidade”, o promotor do caso, Márcio
Augusto Friggi de Carvalho. Ele acrescentou que não irá recorrer da
sentença.
Questionado pelo fato de os condenados responderem
em liberdade, o promotor disse não se opor à decisão judicial. "O juiz
entendeu que há os pressupostos para isso e a decisão é correta. Não
vejo nenhum absurdo nisso."
Os defensores dos condenados disseram que irão
recorrer da decisão. "A pena é pesada demais, sem sombra de dúvida. O
recurso vai atacar a decisão e a pena", afirmou o advogado Sérgio
Badaró, que defende Fiore.
Romeu Goffi, que representa Sacramento e
Torrecillas, disse acreditar que o júri será anulado. "Amanhã mesmo
vamos fazer um termo de apelação e vamos apresentar as razões no prazo
legal. A possibilidade de ser anulado esse júri é de 99,99%.”
Segundo a acusação, os médicos falsificaram
prontuários de pacientes vivos, informando que estavam com morte
encefálica (sem atividade cerebral e sem respiração natural) para
convencer suas famílias a autorizar a retirada dos órgãos para doação,
de acordo com a denúncia.
Os réus responderam no exercício legal de suas
profissões pelo crime de homicídio doloso (com intenção de matar) dos
pacientes José Miguel da Silva, Alex de Lima, Irani Gobbo e José Faria
Carneiro.
Segundo a denúncia do Ministério Público, os
quatro estavam vivos quando entraram no extinto Hospital Santa Isabel
de Clínicas (Hosic), onde atualmente está localizado o Hospital
Regional de Taubaté, e morreram após a retirada de seus rins há mais de
24 anos. Segundo o promotor do caso, as vítimas morreram por outras
complicações em razão da ausência desses órgãos.
Julgamento
O júri começou na manhã de
segunda-feira (17), com o depoimento das testemunhas arroladas pela
acusação: o médico Roosevelt de Sá Kalume (que revelou o caso), a
médica Gilzélia Batista (responsável por guardar os prontuários
médicos), a enfermeira Rita Maria Pereira (que afirmou ter visto um
médico retirar os órgãos de um paciente vivo), o médico César Vilela,
Ivã Gobbo (irmão de um dos pacientes mortos), Regina Teixeira
(telefonista que trabalhava no setor de prontuários), Lenita Bueno
(médica anestesista). Também foi ouvida na segunda a testemunha de
defesa Paulo Arantes de Moura.
Na terça (18), foram ouvidas seis testemunhas
solicitadas pela defesa, outras três foram dispensadas. Nesse mesmo
dia, também aconteceu uma acareação entre a enfermeira Rita Pereira e
uma anestesista que negou ter ocorrido retirada de órgãos de paciente
vivo. Em seu interrogatório, que durou quase três horas, o réu Rui
Sacramento voltou a negar que foram retirados rins de pacientes vivos. O
médico afirmou que Kalume revelou o suposto esquema por “disputa de
poder”.
Na quarta (19), foram ouvidos os outros réus: o
nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas e o neurocirurgião
Mariano Fiore Júnior, de 62 anos.
Nesta quinta, houve o fim dos debates entre defesa e Promotoria e a reunião do júri.
Caso Kalume
Kalume, que chegou a ser
internado no início da noite de segunda no Hospital Regional de Taubaté
com taquicardia após prestar seu depoimento, foi o responsável por
revelar o caso em 1987. Então diretor da Faculdade de Medicina de
Taubaté (Unitau), o médico procurou o Conselho Regional de Medicina de
São Paulo (Cremesp) para informar que um programa ilegal de retirada de
rins de cadáveres para doação e transplantes acontecia sem o seu
conhecimento e aval.
Na época, o assunto ficou conhecido nacionalmente e
a imprensa o tratou como caso Kalume, em referência ao sobrenome do
denunciante. O escândalo culminou com a abertura de inquérito policial
em 1987 e até virou alvo em 2003 da Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) que apurava a atuação de organizações criminosas atuantes no
tráfico de órgãos no Brasil.
Os médicos foram absolvidos das acusações de
tráfico de órgãos e eutanásia nos procedimentos administrativos e
éticos do Cremesp, em 1988, e do Conselho Federal de Medicina (CFM), em
1993. Além disso, o caso em Taubaté ajudou na discussão a respeito da
elaboração da atual lei que trata sobre a regulamentação dos
transplantes de órgãos no país até hoje. Segundo o CFM, a lei é a
9.434, de 1997.
Em 1993, Kalume chegou a publicar um livro sobre o
caso. Para narrar os fatos, ele usou nomes diferentes dos personagens
da vida real. “Transplante”, no entanto, deixou de ser publicado.
Apesar disso, a obra também faz parte do processo contra os médicos.
Já em 1996, após quase dez anos de investigação, a
Polícia Civil de Taubaté concluiu o inquérito que responsabilizou
quatro médicos pelas mortes de quatro pacientes. Um dos acusados morreu
em maio deste ano.
Defesa
Antes de o início do julgamento, os réus disseram à reportagem
pessoalmente ou por meio de seus advogados serem inocentes. “Ficou
comprovado que [os pacientes] estavam em morte encefálica. Estavam
mortos. Se os indivíduos estavam mortos, não tem como eu ser acusado de
uma coisa, se eles estavam mortos. O que eu fiz...a minha participação
foi no diagnóstico da morte encefálica”, disse o neurocirurgião Mariano
Fiore Júnior.
O urologista Noronha Sacramento também rebateu as
acusações. “Nunca agi contra a vida em nenhum momento da minha
carreira. Na equipe que há vinte e tantos anos, na cidade de Taubaté,
realizou retiradas de rim, nefrectomias de cadáver para transplante
renal, e que realizou transplante renal na cidade de Taubaté e em
outras cidades lá, eu era o cirurgião responsável pela retirada do
órgão e pela colocação nos outros pacientes que precisavam do
transplante. Nunca foi feita retirada de órgão de paciente que tivesse o
menor sinal de vida.”
O advogado Romeu Correa Goffi, que defende, além
de Sacramento, o nefrologista Torrecillas, também afirmou que seus
clientes são inocentes das acusações. “Esses rapazes [médicos] estão
sendo injustiçados, profundamente injustiçados. Quando foram feitas as
retiradas dos rins, não estavam somente eles, equipe de transplante,
presentes na sala. Havia estudantes de medicina, anestesistas, havia um
grande corpo clínico, pessoas que se interessavam em conhecer o
procedimento. Então, como num contexto desse pode ter havido algo tão
grotesco?”, questionou o defensor.
Acusação
A acusação da Promotoria
contra os médicos se baseou somente no homicídio doloso. Segundo Friggi
de Carvalho, laudos do Instituto Médico-Legal (IML), da Polícia
Técnico Científica e do Cremesp concluíram que os pacientes não estavam
mortos antes da retirada dos rins.
Durante o processo, testemunhas relataram que até
uma espécie de médium foi apresentado pelos médicos aos parentes para
dizer que havia entrado em contato com o suposto morto no plano
espiritual e ele havia pedido para os familiares autorizarem a doação.
Os réus disseram que os órgãos iam para o programa
de transplantes de um convênio entre a Unitau e o Hospital das
Clínicas (HC), da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista.
Mas segundo o promotor Friggi de Carvalho, esse acordo jamais existiu.
“Não há nenhum registro disso em lugar algum”, disse. As informações
são do G1.
Nenhum comentário:
Postar um comentário