sexta-feira, 31 de maio de 2019

Médicos são condenados por retirar órgãos de pacientes vivos em São Paulo

Trio foi condenado a mais de 17 anos de prisão em julgamento em Taubaté 
 
Os três médicos acusados de matar quatro pacientes em um hospital de Taubaté, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, em 1986, foram condenados a 17 anos e 6 meses de prisão na noite desta quinta-feira (20). O juiz Marco Montemor, porém, permitiu que eles recorram da sentença em liberdade.

O destino do trio foi decidido por um júri composto por quatro mulheres e três homens após quatro dias de julgamento, realizado do Fórum Central da cidade. Os médicos foram responsabilizados pelos quatro homicídios.

Um dos réus, o urologista Rui Noronha Sacramento, 60 anos, passou mal duas vezes durante a leitura da sentença e teve de ser amparado por parentes para sair do fórum.

Segundo a Promotoria, além de Sacramento, o nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas e o neurocirurgião Mariano Fiore Júnior, de 62 anos, retiraram rins irregularmente das vítimas como parte de um suposto esquema de tráfico de órgãos humanos.

“Muito tempo já passou, mas a justiça foi feita. O próprio povo de Taubaté que fez o julgamento e está de parabéns por não ter esquecido, não ter deixado o tempo apagar esse fato tão sério, tão grave, que marcou a história da cidade”, o promotor do caso, Márcio Augusto Friggi de Carvalho. Ele acrescentou que não irá recorrer da sentença.

Questionado pelo fato de os condenados responderem em liberdade, o promotor disse não se opor à decisão judicial. "O juiz entendeu que há os pressupostos para isso e a decisão é correta. Não vejo nenhum absurdo nisso."

Os defensores dos condenados disseram que irão recorrer da decisão. "A pena é pesada demais, sem sombra de dúvida. O recurso vai atacar a decisão e a pena", afirmou o advogado Sérgio Badaró, que defende Fiore.

Romeu Goffi, que representa Sacramento e Torrecillas, disse acreditar que o júri será anulado. "Amanhã mesmo vamos fazer um termo de apelação e vamos apresentar as razões no prazo legal. A possibilidade de ser anulado esse júri é de 99,99%.”

Segundo a acusação, os médicos falsificaram prontuários de pacientes vivos, informando que estavam com morte encefálica (sem atividade cerebral e sem respiração natural) para convencer suas famílias a autorizar a retirada dos órgãos para doação, de acordo com a denúncia.

Os réus responderam no exercício legal de suas profissões pelo crime de homicídio doloso (com intenção de matar) dos pacientes José Miguel da Silva, Alex de Lima, Irani Gobbo e José Faria Carneiro.

Segundo a denúncia do Ministério Público, os quatro estavam vivos quando entraram no extinto Hospital Santa Isabel de Clínicas (Hosic), onde atualmente está localizado o Hospital Regional de Taubaté, e morreram após a retirada de seus rins há mais de 24 anos. Segundo o promotor do caso, as vítimas morreram por outras complicações em razão da ausência desses órgãos.

Julgamento
 
O júri começou na manhã de segunda-feira (17), com o depoimento das testemunhas arroladas pela acusação: o médico Roosevelt de Sá Kalume (que revelou o caso), a médica Gilzélia Batista (responsável por guardar os prontuários médicos), a enfermeira Rita Maria Pereira (que afirmou ter visto um médico retirar os órgãos de um paciente vivo), o médico César Vilela, Ivã Gobbo (irmão de um dos pacientes mortos), Regina Teixeira (telefonista que trabalhava no setor de prontuários), Lenita Bueno (médica anestesista). Também foi ouvida na segunda a testemunha de defesa Paulo Arantes de Moura.

Na terça (18), foram ouvidas seis testemunhas solicitadas pela defesa, outras três foram dispensadas. Nesse mesmo dia, também aconteceu uma acareação entre a enfermeira Rita Pereira e uma anestesista que negou ter ocorrido retirada de órgãos de paciente vivo. Em seu interrogatório, que durou quase três horas, o réu Rui Sacramento voltou a negar que foram retirados rins de pacientes vivos. O médico afirmou que Kalume revelou o suposto esquema por “disputa de poder”.

Na quarta (19), foram ouvidos os outros réus: o nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas e o neurocirurgião Mariano Fiore Júnior, de 62 anos.

Nesta quinta, houve o fim dos debates entre defesa e Promotoria e a reunião do júri.

Caso Kalume
 
Kalume, que chegou a ser internado no início da noite de segunda no Hospital Regional de Taubaté com taquicardia após prestar seu depoimento, foi o responsável por revelar o caso em 1987. Então diretor da Faculdade de Medicina de Taubaté (Unitau), o médico procurou o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) para informar que um programa ilegal de retirada de rins de cadáveres para doação e transplantes acontecia sem o seu conhecimento e aval.

Na época, o assunto ficou conhecido nacionalmente e a imprensa o tratou como caso Kalume, em referência ao sobrenome do denunciante. O escândalo culminou com a abertura de inquérito policial em 1987 e até virou alvo em 2003 da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava a atuação de organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos no Brasil.

Os médicos foram absolvidos das acusações de tráfico de órgãos e eutanásia nos procedimentos administrativos e éticos do Cremesp, em 1988, e do Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1993. Além disso, o caso em Taubaté ajudou na discussão a respeito da elaboração da atual lei que trata sobre a regulamentação dos transplantes de órgãos no país até hoje. Segundo o CFM, a lei é a 9.434, de 1997.

Em 1993, Kalume chegou a publicar um livro sobre o caso. Para narrar os fatos, ele usou nomes diferentes dos personagens da vida real. “Transplante”, no entanto, deixou de ser publicado. Apesar disso, a obra também faz parte do processo contra os médicos.

Já em 1996, após quase dez anos de investigação, a Polícia Civil de Taubaté concluiu o inquérito que responsabilizou quatro médicos pelas mortes de quatro pacientes. Um dos acusados morreu em maio deste ano.

Defesa
 
Antes de o início do julgamento, os réus disseram  à reportagem pessoalmente ou por meio de seus advogados serem inocentes. “Ficou comprovado que [os pacientes] estavam em morte encefálica. Estavam mortos. Se os indivíduos estavam mortos, não tem como eu ser acusado de uma coisa, se eles estavam mortos. O que eu fiz...a minha participação foi no diagnóstico da morte encefálica”, disse o neurocirurgião Mariano Fiore Júnior.

O urologista Noronha Sacramento também rebateu as acusações. “Nunca agi contra a vida em nenhum momento da minha carreira. Na equipe que há vinte e tantos anos, na cidade de Taubaté, realizou retiradas de rim, nefrectomias de cadáver para transplante renal, e que realizou transplante renal na cidade de Taubaté e em outras cidades lá, eu era o cirurgião responsável pela retirada do órgão e pela colocação nos outros pacientes que precisavam do transplante. Nunca foi feita retirada de órgão de paciente que tivesse o menor sinal de vida.”

O advogado Romeu Correa Goffi, que defende, além de Sacramento, o nefrologista Torrecillas, também afirmou que seus clientes são inocentes das acusações. “Esses rapazes [médicos] estão sendo injustiçados, profundamente injustiçados. Quando foram feitas as retiradas dos rins, não estavam somente eles, equipe de transplante, presentes na sala. Havia estudantes de medicina, anestesistas, havia um grande corpo clínico, pessoas que se interessavam em conhecer o procedimento. Então, como num contexto desse pode ter havido algo tão grotesco?”, questionou o defensor.

Acusação
 
A acusação da Promotoria contra os médicos se baseou somente no homicídio doloso. Segundo Friggi de Carvalho, laudos do Instituto Médico-Legal (IML), da Polícia Técnico Científica e do Cremesp concluíram que os pacientes não estavam mortos antes da retirada dos rins.
Durante o processo, testemunhas relataram que até uma espécie de médium foi apresentado pelos médicos aos parentes para dizer que havia entrado em contato com o suposto morto no plano espiritual e ele havia pedido para os familiares autorizarem a doação.

Os réus disseram que os órgãos iam para o programa de transplantes de um convênio entre a Unitau e o Hospital das Clínicas (HC), da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. Mas segundo o promotor Friggi de Carvalho, esse acordo jamais existiu. “Não há nenhum registro disso em lugar algum”, disse. As informações são do G1.






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