Ação aponta jornadas de trabalho excessivas, falta de médicos
preceptores para orientar residentes nos pós-operatórios dos pacientes e
até a falta de registro, nos prontuários, dos procedimentos adotados
durante o atendimento médico
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública
para obrigar a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) a adotar uma
série de medidas que garantam o cumprimento das normas que constam do
Regimento Interno dos Programas de Residência Médica realizados no
Hospital das Clínicas (HC) e na sua Faculdade de Medicina.
De acordo com o MPF, foram constatadas diversas irregularidades na
residência médica do HC-UFU, como falta de médicos preceptores para
orientar residentes nos pós-operatórios dos pacientes, falta de registro
e/ou inserção de informações inverídicas, nos prontuários, quanto aos
procedimentos adotados durante o atendimento médico, assim como falta de
uniformidade nas condutas dos plantonistas.
Verificou-se também abuso de poder na relação dos preceptores com os
médicos residentes [para que estes assumam condutas das quais
discordam], jornadas de trabalho exaustivas [acima das 60 horas/semanais
regulares] e ausência de uma programação específica para as atividades
de enfermagem, ocorrências que, somadas, para o MPF, comprometem a
prestação do serviço, "lesando o direito à saúde daqueles que necessitam
de atendimento médico gratuito, efetivo e humanitário pautados em
diretrizes médicas".
"Algumas irregularidades podem até ser vistas sob o prisma da
organização administrativa do serviço, mas outras, claramente, impactam
no próprio tratamento do paciente", afirma o procurador da República
Cléber Eustáquio Neves, autor da ação.
"É o caso, por exemplo, da omissão de uma informação por um
residente, preceptor ou plantonista nos prontuários, que prejudica a
continuidade do tratamento pelos outros profissionais que vão assumir o
atendimento".
O procurador diz que as irregularidades, constantes nos últimos anos,
já levaram até pacientes à morte. Um desses casos ocorreu em 9 de junho
de 2014, com a morte de uma criança de apenas oito anos. Os
profissionais envolvidos – duas médicas do programa de residência do
HC/UFU, uma técnica de enfermagem, uma enfermeira e uma farmacêutica da
mesma unidade – foram denunciados pelo MPF em 2016 por negligência no
atendimento.
A investigação demonstrou que a morte do paciente decorreu da
administração, pelos profissionais, de dosagem de cloreto de potássio
quatro vezes maior do que o recomendado pela literatura médica, conforme
sindicância realizada pelo próprio HC/UFU. Também foram comprovadas
falhas na supervisão do trabalho das médicas residentes, uma vez que o
médico preceptor, profissional preparado e contratado pela unidade
hospitalar para acompanhar, avaliar e convalidar os diagnósticos dos
alunos do programa de residência médica, não estava presente no dia do
ocorrido.
Irregularidades – Em janeiro de 2016, a pedido do
MPF, o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG) efetuou
sindicância no HC-UFU para apurar denúncias feitas por médicos
residentes quanto às condições do programa.
O relatório apontou casos em que, diante de uma dúvida sobre qual
procedimento adotar, os médicos residentes, na ausência do preceptor,
recorriam aos médicos plantonistas contratados pelo HC/UFU. Ocorre que
esses médicos não têm ligação alguma com o programa de Residência Médica
mantido pela unidade hospitalar, contrariando a norma segundo a qual o
acompanhamento deve ser sempre discutido com os preceptores e não com
médicos assistenciais.
Houve relatos também de avaliações de pós-operatório feitas somente
por residentes, cuja pouca experiência já teria ocasionado eventos
adversos em pacientes.
Os fiscais do CRMMG também relataram a falta de alguns protocolos que
respondem pela uniformidade de conduta entre os plantonistas, situação
que tem gerado o prolongamento indevido de internações e até mesmo
tratamento inadequado de pacientes, e condutas antiéticas por parte de
alguns profissionais médicos no sentido de omitir ou inserir informações
que não retratam a verdade em prontuários, a exemplo de eventuais
sopros cardíacos e resultado de ecocardiograma com disfunções valvares
graves, impedindo que outros médicos, como os anestesiologistas, tenham
acesso a tais informações.
O relatório também confirmou as jornadas de trabalho exaustivas,
muito além das 60 horas/semanais regulares previstas pelo contrato de
residência médica, em especial na área de Cirurgia.
Para o procurador da República, se o artigo 11 do Regimento Interno
do Programa de Residência Médica da Faculdade de Medicina da UFU prevê
que são deveres dos médicos residentes dedicarem-se com zelo e senso de
responsabilidade ao cuidado dos pacientes, "é evidente que relatar as
condutas prévias em prontuários é um dever não só dos estudantes como de
seus preceptores, pois esses registros constituem um guia para o
tratamento e a falta dessas informações pode causar graves consequências
para o paciente".
O MPF ressalta que todas essas irregularidades deveriam,
obrigatoriamente, ser denunciadas e investigadas, pois é o que determina
o artigo 57 do Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina,
segundo o qual deixar de fazê-lo constitui falta grave.
"Ao contrário disso, o que vemos ao longo dos anos é que as
atividades de preparação e qualificação dos médicos residentes não vêm
atendendo corretamente à regulamentação feita pelo Regimento Interno dos
Programas de Residência Médica da UFU, sem que sejam tomadas quaisquer
providências por parte dos diretores da Faculdade de Medicina para
regularizarem a situação", afirma Cléber Neves.
Pedidos – Em setembro do ano passado, o MPF
recomendou ao reitor da UFU a publicação de um ato normativo com
regulamentações que pusessem fim às irregularidades.
"No entanto, mesmo admitindo tais irregularidades e assumindo o
compromisso de corrigi-las, até o presente momento, quase quatro meses
depois, a resposta que nos foi enviada não passou de retórica", afirma
Cléber Neves. "As medidas recomendadas pelo MPF não foram implantadas
pelas chefias dos Programas de Residência Médica do HC/UFU e nem pelo
Coreme, o que nos obrigou a procurar em juízo a solução dos problemas,
de modo a resguardar a segurança no atendimento aos pacientes".
Na ação, o Ministério Público Federal pede que a Justiça obrigue a
UFU a publicar, no prazo máximo de 30 dias, regulamento que faça cumprir
todas as normas previstas nos diversos atos normativos que regem a
Residência Médica e o próprio exercício da medicina.
Entre as regras a serem expressamente elencadas estão a previsão da
obrigatoriedade de avaliação clínica médica de todos os pacientes
internados, ao menos uma vez ao dia, em todas as unidades do HCU, com o
devido registro físico ou eletrônico no prontuário, indicação clara do
nome do médico e seu CRM; obrigatoriedade de registro no prontuário,
físico ou eletrônico, do resultado de todos e quaisquer exames
realizados no paciente, com indicação expressa do profissional
responsável pela avaliação; e publicação de escalas de trabalho para
todos os profissionais que atuam no HC e unidades a ele vinculadas, que
obedeçam ao limite de 60 horas semanais, incluídas as 24 horas de
plantão.
A ação pretende garantir também ampla transparência às escalas de
trabalho de todos os profissionais envolvidos no atendimento de
pacientes atendidos e internados no HC-UFU, incluindo as escalas de
trabalho semanal de cada médico preceptor e docente com os respectivos
nomes dos médicos residentes sob sua orientação, por meio de publicação
no site institucional e as devidas atualizações, em tempo real, para as
hipóteses de eventuais alterações.
A ação foi distribuída para a 3ª Vara Federal de Uberlândia e recebeu o nº 1002918-65.2019.4.01.3803.
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